Clemente e Ornelas, impunidade ilimitada

A reação de Manuel Clemente e José Ornelas ao relatório da comissão independente é, para além de um desalmado insulto às vítimas e à comissão, um compêndio de pecados capitais. Mentira na afirmação de que não se podem suspender clérigos face a alegações de abuso, avareza na recusa de sequer admitir indemnizações, soberba na presunção de que, como sempre, se safarão desta.

"Em qualquer altura, o bispo diocesano tem o poder executivo de governo, dentro dos parâmetros da lei universal da Igreja, de, através de um ato administrativo, retirar o clérigo do serviço (...), ou limitar o seu exercício do ministério."

A citação é retirada do documento de 2018 "Normas essenciais para as políticas diocesanas para lidar com as alegações de abuso sexual de menores por padres e diáconos", da Conferência Episcopal de Bispos Católicos dos EUA, e remete para o cânone 1722 (norma da lei canónica), que estabelece as "medidas de precaução" que podem ser adotadas enquanto decorra um processo ou averiguações.

No mesmo site, o da Conferência Episcopal Americana, encontra-se um "perguntas e respostas" no qual se clarifica o facto de esta suspensão não dever pôr em causa a presunção da inocência da pessoa contra a qual foram apresentadas alegações: "Um bispo pode em qualquer altura retirar um clérigo do ministério enquanto decorre uma investigação da alegação. Isto é feito para, em primeiro lugar, assegurar que não há crianças colocadas em perigo, caso se venha a provar que o clérigo cometeu atos de abuso. Ao mesmo tempo, deve ser enfatizado que o clérigo goza da presunção de inocência. Isto deve ser tornado claro pela diocese junto do público. Se a alegação foi infundada, o bispo deve esforçar-se por reparar qualquer dano ilegítimo à boa reputação do padre ou diácono".

Estas normas e o cânone citado contradizem em absoluto o que foi afirmado publicamente, em reação ao relatório da Comissão Independente (CI) nomeada pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) para avaliar os abusos sexuais de menores na Igreja Católica nacional e à lista de alegados abusadores que a mesma comissão entregou à CEP, quer pelo presidente desta, José Ornelas, quer pelo cardeal de Lisboa, Manuel Clemente.

Este domingo, Clemente afirmou que não é possível suspender padres "sem que haja factos comprovados, sujeitos a contraditório" e um processo canónico instruído pela Santa Sé, garantindo até que a suspensão é "uma pena muito grave e não é uma coisa que um bispo possa fazer por si". Também Ornelas afastou "para já" tal medida em relação aos nomeados na lista que a comissão entregou: "Não posso tirar uma pessoa do ministério porque chegou alguém que disse "este senhor abusou de alguém". Quem foi que disse? Em que lugar? Quando? Tirar um padre do ministério é uma coisa grave, enquanto não for minimamente provado, a pessoa mantém a sua credibilidade."

Estas afirmações foram entretanto refutadas pela comissão, que garante saberem os bispos quais os factos relacionados com os nomes da lista.

"A lista de nomes é o ponto de chegada de um longo processo que envolveu testemunhos e as reuniões do Grupo de Investigação Histórica com cada bispo e superior/a [de ordens religiosas]", explica a socióloga Ana Nunes de Almeida, que fez parte da CI, e que no Twitter reagiu com irritação à conferência de imprensa da CEP. "Nessas reuniões os casos foram devidamente referenciados em todo o detalhe que o anonimato das vítimas permitia. Os casos foram anotados, muitas vezes aturadamente aprofundados, com os responsáveis hierárquicos, incluindo datas e locais de abuso, modalidades de abuso, etc. A metodologia consta do relatório (basta ler)."

Os bispos, comenta ainda Ana Nunes de Almeida, "não precisaram da lista para começar a desencadear investigações prévias. Alguns estão a fazê-lo desde que fixaram os nomes com o GIH. Outros pelos vistos não".

As afirmações de Clemente e Ornelas foram também já contraditadas até pelo bispo auxiliar de Braga, Nuno Almeida, em declarações ao Público: "O bispo deve acolher, analisar, avaliar e aprofundar, com a devida atenção, todas as denúncias, independentemente da forma ou do canal utilizado. Deverá dar todo o apoio e proteção possíveis às vítimas e retirar as consequências necessárias, nomeadamente (...) tomar medidas de tipo administrativo contra a pessoa denunciada, que poderão levar a limitações no ministério."

A possibilidade de se proceder a suspensão logo após conhecimento de uma alegação é certificada, por exemplo, na página da diocese de Brooklyn (Nova Iorque, EUA) na qual se descreve a respetiva política e procedimentos no que respeita a abuso sexual de menores: "O bispo, em qualquer altura depois de uma alegação ser conhecida, pode impor uma imediata, mesmo que temporária, suspensão administrativa do padre ou diácono, de modo a proteger fiéis que possam estar em risco."

Aliás a alegação em causa, como se explica na página desta diocese, pode ser recebida através da linha azul por ela criada em 2003 para receber denúncias deste tipo. Quem nela atende as chamadas são, informa-se, juristas, que não prestam serviço legal à diocese - querendo dizer que não são contratados para a defender - e transmitem as denúncias quer às autoridades judiciais quer aos representantes da diocese. Na página da diocese, contudo, o apelo à denúncia de abuso sexual de menores torna clara a hierarquia em matéria de apuramento de responsabilidades e autoridade: menciona em primeiro lugar o número de emergência nacional (911, o nosso 112), seguido da linha de emergência do estado de Nova Iorque, e só depois o número azul da diocese, em relação ao qual se garante que as denúncias são automaticamente comunicadas às autoridades judiciais e policiais, e que não há envolvimento da diocese no atendimento, "para assegurar que tudo é efetuado em conformidade".

Além de criar esta linha, a diocese de Brooklyn, ficamos também a saber, nomeou um "coordenador da assistência às vítimas", ao qual cabe o "cuidado pastoral imediato" de pessoas que aleguem ter sido vítimas, enquanto menores, de abuso sexual perpetrado por padres ou diáconos; coordenador através do qual o bispo proporá reunir pessoalmente com essas pessoas. Mas, para além desse serviço, a diocese providenciará (leia-se custeará) o apoio profissional escolhido pela pessoa que faz a alegação. E diz porquê: "Muitas vítimas sofreram durante anos o efeito duradouro do abuso sexual. Esta oferta de aconselhamento profissional procura proporcionar um apoio e é uma manifestação da preocupação pastoral com a vítima do alegado abuso."

Uma linha azul para denúncias de abuso sexual em funcionamento há duas décadas e o custear de apoio profissional para quem alegue ser vítima: eis uma forma de reconhecer a gravidade do problema e de centrar a atenção nos danos causados que suscitará suores frios aos bispos portugueses - os mesmos que ainda ontem certificavam não se justificar em Portugal sequer uma investigação a esta realidade, e que agora, perante o resultado, alegam a necessidade de "processos com contraditório", "respeito pela presunção de inocência" e "recurso aos tribunais civis" para a atribuição de indemnizações.

Que dizer então de uma iniciativa como a da diocese de Dromore, na Irlanda do Norte? Esta anunciou em 2021 oferecer compensações, num máximo de 80 mil libras (mais de 100 mil euros), para as vítimas cujo abuso sexual por padres tenha ocorrido sob a sua autoridade, afirmando estar disposta a nessa empresa "exaurir os seus recursos". Em causa está sobretudo o abuso sexual perpetrado por um sacerdote, Malachy Finnegan, que morreu em 2002 e em relação ao qual há acusações de crimes ao longo de quatro décadas. Numa declaração datada de setembro de 2021 na qual pede perdão às vítimas, a diocese explica querer "assegurar um processo nelas centrado, com o objetivo de lhes providenciar reconhecimento e uma compensação razoável, sem a necessidade de investigações demoradas e de litigância."

Não mais do que a obrigação de uma organização que se proclama a representante terrestre de uma divindade misericordiosa cujo filho se teria oferecido em sacrifício por amor à humanidade e se apresenta como um exemplo de verdade, justiça e despojamento de bens materiais? Certo - acrescendo que, nesta matéria, não raro há dissonância entre os anúncios da Igreja Católica e a realidade, e Dromore pode ser mais um caso.

Impossível porém não anotar que o discurso da diocese norte-irlandesa é o avesso daquilo que ouvimos e vimos da parte de Ornelas e Clemente. O primeiro frisando que indemnizações só poderão ser pagas pelos padres culpados (em sintonia com as disposições de concordatas recentes assinadas pelo Vaticano, que procuram assim salvaguardar os bens da Igreja Católica e exonerá-la de quaisquer responsabilidades financeiras face às vítimas) e o segundo remetendo a questão para os tribunais civis - para o dia de são nunca, portanto - chegando ao topete de qualificar de "insultuoso para as vítimas" a menção a compensações financeiras.

"Por que raio quiseram estas almas uma investigação", perguntar-se-á. A resposta é simples: nunca quiseram. Era - é - só uma manobra de relações públicas. Mas nem nisso são capazes.

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