O maior milagre da Igreja Católica portuguesa

Nos outros países, investigações descobrem milhares de vítimas de abuso por padres; cá, os bispos acham que não vale a pena investigar porque "há poucos casos". Era de rir se não fosse de enraivecer.

"O número de casos de abuso sexual de menores por membros do clero católico em Portugal não é comparável ao de outros países."

Ouvi a frase, no telejornal da SIC de 15 de novembro, a um jornalista que resumia uma intervenção de Manuel Clemente, o bispo e cardeal português que preside à Conferência Episcopal, numa conferência de Imprensa naquele dia. Teria sido parte da resposta que o prelado deu a uma pergunta sobre a ação da hierarquia da Igreja Católica portuguesa face ao fenómeno. Clemente, que esclareceu não se terem, em três dias de reunião plenária, os bispos debruçado sobre o tema, adiantou também que "para já não está em cima da mesa qualquer levantamento nacional sobre casos de abuso sexual de menores dentro da IC". Tal poderá ser feito, prosseguiu, "se for necessário".

Infelizmente, a ninguém na conferência de Imprensa - que se saiba - terá ocorrido perguntar ao cardeal o que teria de acontecer para que ele e os colegas considerassem "necessário" avançar com esse levantamento. Ou questioná-lo sobre como pode comparar o número de casos contabilizados em países onde existiram investigações com os de um lugar - este -- onde nada se fez para descobrir a verdade. E ainda, já agora, que explicação encontra para, como parece crer, Portugal ser um milagroso oásis face a todos os países onde, ao escavar, se encontra uma miríade de vítimas mais a comprovação de uma criminosa cultura de encobrimento que, transversal a toda a hierarquia, permitiu a prelados denunciados por abuso serem transferidos de paróquia em paróquia e diocese em diocese, furtando-os a qualquer consequência e propiciando a continuação da sua carreira de abuso.

Ninguém se terá lembrado de perguntar ao cardeal Clemente que explicação encontra para, como parece crer, Portugal ser um milagroso oásis face a todos os países onde, ao escavar, se encontra uma miríade de vítimas mais a comprovação de uma criminosa cultura de encobrimento.

Uma cultura de encobrimento, de impunidade e licenciosidade no crime - ou seja, uma cultura de deboche -- que, a crer nas investigações e nas acusações criminais em curso, terá chegado aos mais altos cargos do Vaticano. É só lembrar que o cardeal australiano George Pell, número três do governo papal, no qual detinha a pasta das finanças, foi em abril formalmente acusado de agressões sexuais a menores e seminaristas entre 1979 e 1990 pelas quais será julgado em 2019; em 2016 já fora acusado de encobrimento durante as audições da Comissão Real que investigou o abuso sexual de crianças nas instituições australianas. E que o número dois, cardeal Luis Francisco Ladaria Ferrer, será também em 2019 inquirido no julgamento do cardeal francês Philippe Barbarin, acusado de encobrimento de abusos sexuais, sendo Ferrer suspeito do mesmo. Pormenor: Ferrer dirige a Congregação da Doutrina da Fé, que tem no Vaticano a incumbência de investigar as denúncias de abuso sexual.

As afirmações de Manuel Clemente certificam aquilo que há muito deveria ser evidente: a necessidade de que o Estado lance uma investigação ao abuso sexual de menores nas instituições católicas portuguesas.

É verdadeiramente espantoso que face a isto e a tudo o resto que se sabe - o pavoroso relatório da Pensilvânia, com mais de mil vítimas e 301 acusados; o escândalo no Chile, onde a Conferência Episcopal foi alvo de buscas; uma investigação de cinco anos na Austrália que concluiu terem sido 7% dos padres, entre 1950 e 2010, acusados de abuso - os bispos portugueses tenham o topete, e já agora a falta de humildade cristã, de declarar Portugal uma exceção mundial. Não espanta pois - faz aliás todo o sentido - que na mesma ocasião Manuel Clemente tenha refutado o caráter endémico do problema: "Tenhamos cuidado num ponto: neste campo tudo é mau, mas não é tudo igual e cada caso é um caso e apresentá-lo no conjunto pode incorrer nesta distorção de generalizar aquilo que acontece individualmente e pessoalmente."

Nada de "apresentações de conjunto", pois claro. Depois de o padrão revelado em 2002 pelas reportagens do Boston Globe e pelo subsequente relatório da procuradoria-geral da capital do Massachusetts, o de que "a vitimização sexual de crianças por membros da IC era "generalizada" e conhecida pela hierarquia", se ter confirmado em todas as investigações, as afirmações de Manuel Clemente certificam aquilo que há muito deveria ser evidente. A saber, a necessidade de que em Portugal o Estado siga o exemplo dos seus congéneres britânico, irlandês, australiano e americano e lance uma investigação ao abuso sexual de menores nas instituições católicas portuguesas. A não ser que também quem governa acredite em milagres.

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