Papa Francisco
Papa FranciscoEPA/ANGELO CARCONI

As concordatas de Francisco: olha para o que eu digo, não para o que eu faço

Malgrado discurso do papa sobre o imperativo de expor a verdade e compensar as vítimas, concordatas assinadas no seu reino impõem que justiça "avise" hierarquia de investigações contra membros do clero, "barricam" arquivos e - caso de Angola -, restringem as responsabilidades civil e criminal "à pessoa física" dos eclesiásticos condenados, para evitar pagar indemnizações.
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"Por toda a denúncia, informação ou inquérito relativo a um membro do clero ou um religioso, com motivo em eventuais comportamentos incompatíveis com as leis civis ou penais do país, as autoridades judiciárias darão conhecimento ao bispo responsável pela área, antecipadamente e de maneira confidencial. Se esses procedimentos respeitarem a um bispo ou alguém com semelhante estatuto em termos do Direito canónico, a Santa Sé será também informada, através da Nunciatura Apostólica."

Estes são os termos dos números 1 e 2 do artigo nono do "acordo-quadro", ou concordata, assinado entre o Benim, pequeno país de 12,5 milhões de habitantes da África ocidental, e a Igreja Católica, através da entidade jurídica "Santa Sé" (distinta do país Vaticano), a 21 de outubro de 2016, três anos depois de Francisco ser entronizado e quando por todo o mundo se sucediam processos criminais e inquéritos sobre abusos sexuais por membros da Igreja Católica.

A disposição concordatária estabelece assim que caso alguém apresente uma denúncia contra um religioso ou padre a organização Igreja Católica terá de ser imediatamente avisada - no texto original, em francês, a expressão usada é au préalable, que quer dizer "antes de qualquer ação" ou "antes de qualquer outra coisa".

Esta evidente intromissão no processo judicial, que não se encontra por exemplo nem na celebrada com Portugal em 2004 (segundo opinião de penalistas ouvidos pelo jornal, uma disposição deste tipo seria inconstitucional) nem em várias outras assinadas por países europeus, está, em diferentes graduações, presente em recentes acordos da Santa Sé com vários países africanos - República Centro-Africana (2016) República do Congo (2017), Angola e Burquina Faso (2019) - e também com Timor-Leste (2015).

Só em três dos acordos - Timor-Leste, Angola e Burquina Faso - se efetua a ressalva de que o aviso à hierarquia apenas pode dar-se desde que "não implique prejuízos para as finalidades do procedimento", ou seja, não prejudique a investigação (no caso de Angola refere-se também a necessidade de não haver prejuízo para o segredo de justiça). E apenas no do Burquina Faso e da República Centro-Africana se exceptuam os casos de flagrante delito.

É na concordata com este último país que se vai mais longe nas garantias dadas em caso de investigações com clérigos católicos como objeto, estabelecendo aquilo a que se dá o nome de "foro privilegiado" e que se aplica, na generalidade dos países, apenas às mais altas figuras do Estado: "No caso de um bispo ou de padre exercendo uma jurisdição equivalente, é necessária [querendo dizer que nada se pode fazer antes disso] a autorização prévia do Procurador-Geral e a Santa Sé será logo informada pelas autoridades centro-africanas via Nunciatura Apostólica."

De resto, o desígnio de limitar a independência do poder judicial e o escopo da sua ação no que respeita à Igreja Católica não se atem, nos acordos mencionados, ao "aviso" obrigatório: inclui a exclusão de acesso às instalações, arquivos e registos desta entidade, como se se tratasse, em todos os casos, de território estrangeiro, com o estatuto de embaixada, ao qual as autoridades locais estão impedidas de aceder sem convite ou autorização; o direito de recusa de testemunho para os seus membros, alegando sigilo profissional; e até a isenção indemnizatória para a instituição, que em dois dos países em causa recusa assumir qualquer responsabilidade face às vítimas.

Especialmente curioso é pois que por exemplo o acordo com o Benim tenha sido festejado pelo papa, em janeiro de 2019, numa alocução dirigida ao corpo diplomático acreditado no Vaticano, na qual aludiu também ao abuso de menores, caracterizando-o como "uma das pragas do nosso tempo, que tristemente envolve também alguns membros do clero", "um dos mais vis e hediondos crimes concebíveis", que causa "danos irreparáveis para a vida", e assegurando: "A Santa Sé e a Igreja no seu todo estão a trabalhar para combater e prevenir esses crimes e o seu encobrimento, de modo a chegar à verdade dos factos que envolvem eclesiásticos e para assegurar justiça aos menores que sofreram a violência sexual agravada pelo abuso de poder (...)."

Ora nos acordos recentes analisados pelo DN (nenhum dos quais, refira-se, está disponível na página do site do Vaticano onde se encontram as concordatas) o que salta à vista não é o trabalho da Santa Sé para "combater e prevenir" os crimes de abuso sexual e "o seu encobrimento", e "assegurar justiça" às vítimas.

Pelo contrário, aliás: quanto mais recentes são estes instrumentos legais, mais as disposições neles constantes avançam no sentido de dificultar o trabalho das autoridades judiciárias ou de outras instâncias de investigação (recorde-se que em vários países, como a Irlanda e a Austrália, os governos nomearam comissões para investigar os abusos cometidos no seio da Igreja Católica) e de impossibilitar a assunção de responsabilidades por parte das dioceses.

É nos dois últimos, o do Burquina Faso e Angola, ambos de 2019, que surge a deliberação de furtar a organização Igreja Católica a responsabilidades civis (indemnizações) e criminais (por encobrimento, por exemplo) nos casos em que os seus membros sejam condenados.

"A responsabilidade civil ou criminal relativa aos delitos civis e aos crimes cometidos por eclesiásticos é exclusivamente pessoal. As sanções resultantes dos mesmos só podem ser impostas às pessoas físicas que os cometeram. Além disso, apenas essas pessoas físicas responderão com os seus bens pessoais aos danos materiais, imateriais ou morais ligados ao delito civil ou ao crime", impõe a Concordata angolana no numero 4 do artigo oitavo, cuja epigrafe é "Causas contra eclesiásticos".

No acordo do Burquina Faso, que antecede o angolano em alguns meses, ressalvam-se desta desresponsabilização geral os casos de "cumplicidade comprovada": "Em todos os casos, a responsabilidade penal e os efeitos civis que decorrem dos processos são sempre pessoais e, salvo cumplicidade comprovada, não implicam nem a instituição a que pertence o faltoso nem os seus responsáveis hierárquicos. Acresce que só as pessoas físicas que cometeram a infração penal respondem, com os seus bens pessoais, pelos correspondentes danos materiais, imateriais ou morais."

Visa assim a Santa Sé que as vítimas de crimes cometidos pelos religiosos da Igreja Católica ou por leigos ao seu serviço não possam demandar as dioceses para obter uma compensação, limitando-se aos bens dos autores materiais dos crimes, individualmente considerados - se estes os não tiverem, paciência.

Percebe-se o cuidado: em todo o mundo a Igreja Católica (IC) tem sido obrigada a pagar avultadas indemnizações às vítimas dos crimes dos seus membros, tendo várias dioceses, nomeadamente nos EUA, entrado em falência (a última contabilidade é de 28 dioceses americanas falidas ou em vias de, mais três ordens religiosas na mesma situação) devido a essas reparações. Reparações cujo direito se tem fundado sobretudo na prova, obtida nos arquivos, de que a hierarquia, tendo conhecimento de denúncias, ou não as valorizava, ou tentava calar e descredibilizar as vítimas ou, ciente de que o clérigo ou religioso em causa era "problemático", limitava-se a mudá-lo de paróquia ou mesmo de país - muitas vezes para países do chamado "terceiro mundo", onde a capacidade de denúncia e reação de eventuais novas vítimas seria ainda menor.

Logo em 2003, um relatório do gabinete do procurador-geral de Boston, em resultado da investigação inspirada pelas reportagens do jornal The Boston Globe sobre abuso sexual por membros da diocese local, concluía que a vitimização sexual de crianças por membros da IC era "generalizada" e conhecida pela hierarquia.

Seguiram-se escândalos em catadupa. Em 2018, o chamado Relatório da Pensilvânia (1400 páginas publicadas a 14 de agosto desse ano, analisando sete décadas de abuso sexual por sacerdotes católicos daquele estado americano) descrevia o modus operandi, ou "livro de estilo", da hierarquia católica face às denúncias de abuso, tal como caracterizado pelo FBI: nunca se falava, nos registos escritos, de violação nem de abuso, sendo usadas expressões mais suaves, "brancas", como "contacto inapropriado"; para inquirir de uma denúncia eram escolhidos padres sem qualquer experiência na condução de inquéritos de abuso sexual; se um padre acusado era retirado de um posto nunca se informava a comunidade das razões desse afastamento. E certamente nunca se informavam as autoridades policiais ou judiciais - quando muito mandavam-nos para centros da Igreja para serem "avaliados".

O que nos conduz à "inviolabilidade dos arquivos", que a Santa Sé quis garantir nos acordos analisados.

Encontramo-la no acordo-quadro com a República Centro-Africana, no artigo seis, número 2, misturada com a dos locais de culto: "No quadro da sua legislação, a República Centro-Africana assegura a inviolabilidade dos locais de culto: igrejas, capelas, oratórios, cemitérios e suas dependências, em particular os presbitérios, os conventos e os arquivos eclesiásticos. A força pública pode aceder a estes lugares: por convite da Autoridade eclesiástica competente; ou ainda depois de notificação da mesma Autoridade, para executar um mandado judiciário contra pessoas acusadas de delitos cometidos no território do Estado."

Esta redação, que coloca todos os lugares enumerados fora da autoridade do Estado, como se de território estrangeiro se tratasse, não se limita a pretender retirar os arquivos do alcance da justiça. Ao restringir a execução de mandados nesses locais àqueles que se refiram a "pessoas acusadas de delitos cometidos no território do Estado" pode ser interpretada como querendo dizer que eventuais crimes cometidos nesses mesmos lugares não estão abrangidos pela autoridade do dito Estado, mas sim pela da Igreja Católica - reivindicação que esta entidade tem apresentado, sob outras vestes, noutras paragens (por exemplo no acordo do Burquina Faso estabelece-se que "pertence exclusivamente à Autoridade eclesiástica a fixação livre das leis e regulamentos e todos os atos jurídicos nos domínios da sua competência", deixando dúvidas sobre quais serão, no entendimento da Santa Sé, esses domínios; como se verá mais à frente, há situações, como na Argentina, em que a Igreja Católica afirma não ter de se submeter ao Estado constitucional de Direito, recusando cumprir ordens de tribunal).

Nenhum dos textos analisados pelo DN tem disposições tão extremas como o da República Centro-Africana, mas a inviolabilidade dos arquivos está em todos, à exceção do mais antigo, o de Timor-Leste.

No do Benim, além de se assegurar que "o segredo da confissão sacramental" é "absoluto e inviolável" - uma garantia que se encontra em todas estas concordatas e é comum aos ordenamentos jurídicos de vários países, incluindo Portugal -, também se lê: "Os arquivos eclesiásticos são invioláveis e beneficiam de proteção especial".
Acrescenta-se ainda: "Os bispos, os padres e os religiosos têm o direito ao respeito pela sua obrigação ao segredo ligado ao seu estado."

O texto relativo ao Burquina Faso coloca o segredo profissional destas categorias em pé de igualdade com "o segredo profissional de profissões similares", mas de seguida estabelece que "a inviolabilidade do segredo relativo ao ministério espiritual estende-se aos arquivos submetidos à jurisdição eclesiástica."

O de Angola, sob a epígrafe "Lugares de cultos" (artigo 6º) fixa a inviolabilidade destes mas também de "residências episcopais, mosteiros (...), seminários, noviciados, residências de sacerdotes, conventos, bem como obras sociais." Tudo o que é propriedade da Igreja Católica assume assim o caráter de "inviolável". Caso ficassem dúvidas sobre os arquivos, há um artigo sobre eles, o 8º ("Sigilo sacramental, segredo profissional e inviolabilidade dos arquivos"): "A República de Angola garante a inviolabilidade dos arquivos, registos e outros documentos que pertençam à Igreja Católica", e "respeita o segredo profissional dos sacerdotes, dos religiosos e das religiosas. Eles não podem ser obrigados a responder aos magistrados, ou a outras autoridades, sobre matérias de que tiveram conhecimento no exercício do seu ministério ou do foro interno."

Já no de Timor-Leste assegura-se que "os clérigos e os religiosos podem recusar-se a depor sobre os factos de que tomaram conhecimento na Confissão ou no exercício do ministério sacerdotal."

Refira-se que neste aspeto, o do "segredo profissional" eclesiástico, a Concordata de 2004 com Portugal vai mais longe, repetindo quase palavra por palavra a disposição da de 1940, assinada por Salazar (a qual, recorde-se, conferia aos membros da Igreja Católica a "proteção do Estado, nos mesmos termos que as autoridades públicas"), e proibindo até a pergunta: "Os eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério."

Curioso de resto constatar que concordatas tão recentes recuperam disposições que se encontram num acordo com 68 anos - o celebrado em 1954 com a República Dominicana, um país com religião oficial católica -, tornando-as ainda mais favoráveis à Igreja Católica.

"Em caso de que se levante acusação penal contra alguma pessoa eclesiástica ou religiosa, a jurisdição do Estado a cargo do assunto deverá informar oportunamente o Ordinário [bispo] competente da zona e transmitir ao mesmo os resultados da instrução e, em caso de existir, comunicar-lhe a sentença tanto da primeira instância como de recurso ou revisão", dispõe o artigo 13º do acordo com este país da América do Sul, que, como a concordata de 1940 com Portugal, assegura a proteção do Estado aos clérigos católicos. Note-se porém que "acusação penal" pode ser interpretado como correspondendo a acusação formal, ou seja à fase final da investigação, que é por definição pública, enquanto as concordatas recentes impõem que o aviso seja efetuado logo no início do processo, quando ocorre a denúncia. Por outro lado, "oportunamente" é muito menos impositivo e mais vago que o "antes de qualquer ação" que encontramos por exemplo no acordo com o Benim.

Neste acordo com a República Dominicana, assinado durante a ditadura de Trujillo Molina, e cuja constitucionalidade tem sido naturalmente posta em causa, encontramos também a imposição de um tratamento especial para religiosos católicos em caso de detenção ou prisão: "O eclesiástico ou religioso será tratado com o respeito devido ao seu estado e grau. Em caso de condenação de um eclesiástico ou religioso, a pena cumprir-se-á, quando seja possível, num local separado do destinado aos leigos, a menos que o Ordinário do sítio tenha reduzido o condenado ao estado leigo."

Foi em 2019, ano no qual a Santa Sé assinou os acordos com o Burquina Faso e Angola, que teve lugar no Vaticano, em fevereiro, uma reunião considerada "histórica" dedicada à questão do abuso sexual de menores. Durante a mesma, que congregou 114 presidentes de conferências episcopais de todo o mundo, o cardeal Reinhard Marx, representante da Alemanha, admitiu que os arquivos da igreja naquele país sobre abusos sexuais "foram destruídos ou nem sequer chegaram a ser criados". "Os procedimentos e trâmites fixados para perseguir estes delitos foram deliberadamente ignorados, e inclusive apagados ou cancelados", denunciou.

Em dezembro, o papa, que no final da citada reunião afiançara que "a Igreja não procurará jamais dissimular ou subestimar qualquer um desses casos", anunciava, num conjunto de medidas que alteravam a lei canónica, o fim do segredo pontifício nos casos de violência sexual e de abuso de menores e de adultos vulneráveis cometidos por membros do clero.

Proclamada como "uma mudança radical na forma como a Igreja Católica vinha lidando com estes casos de abusos sexuais de menores", a nova orientação, tornada pública por comunicado do diretor editorial da Secretaria para a Comunicação do Vaticano, Andrea Tornielli, determinava que "as queixas, os testemunhos e os documentos processuais relativos aos casos de abuso conservados nos arquivos dos Dicastérios vaticanos, bem como os encontrados nos arquivos das dioceses, e que até hoje estavam sujeitos ao segredo pontifício, poderão ser entregues aos magistrados de instrução dos respetivos países que os solicitem".

À primeira vista, a orientação contradiz as disposições sobre inviolabilidade dos arquivos que encontramos nas concordatas recentes. Mas "poderão ser entregues" significa isso mesmo, que podem ser, mas também podem não ser: não há obrigatoriedade.

Como o comprova por exemplo uma diocese do país natal do papa. Trata-se da diocese de Mendonza, na cidade e província do mesmo nome, tristemente célebre em matéria de abusos sexuais devido ao caso do Instituto Próvolo, uma instituição de ensino católico para crianças com deficiência auditiva na qual, de acordo com a investigação judicial - que resultou na condenação de dois padres, em 2019, a penas de mais de 40 anos de prisão, estando a ser julgadas separadamente duas monjas e outras seis mulheres que trabalhavam na instituição - crianças e jovens dos quatro aos 17 anos foram violados e torturados entre 2004 e 2016.
Nomeado por Francisco em 2018, o atual arcebisbo de Mendonza, Marcelo Colombo, é desde junho alvo de uma queixa por desobediência e obstrução à justiça por, perante uma ordem de tribunal, recusar entregar um processo canónico.

O processo em causa diz respeito à denúncia efetuada por uma paroquiana contra um diácono de Mendonza com quem teve uma relação e que segundo ela a maltratava e a obrigou várias vezes a abortar. Tendo efetuado a denúncia e não conhecendo de quaisquer consequências, a mulher, agora com 70 anos, dirigiu-se à justiça argentina para se queixar do arcebispado.

Este, invocando a concordata celebrada pelo Estado argentino com a Santa Sé em 1966 (durante a ditadura militar que vigorou de 1966 a 1973 no país), recusou, através do arcebispo Colombo, produzir os documentos pedidos, por considerar que não está submetido à justiça do país: "Nego expressamente que o arcebispado de Mendoza, pela sua condição de pessoa jurídica pública, tenha a obrigação de cumprir e ajustar a sua estrutura, organização e funcionamento ao Estado Constitucional de Direito, a que estamos submetidos todos. Porque é pessoa jurídica pública não estatal, regida pelo seu próprio direito (...)"

Uma recusa tanto mais significativa quando o arcebispado de Mendonza já foi, em 2015, condenado pelo Supremo Tribunal por recusar entregar um processo.

O caso que resultou na condenação diz respeito a uma queixa efetuada ao arcebispado, em 2001, por alegados abusos sexuais, ocorridos entre 1998 e 2001, de um padre sobre um jovem, Iván González. Quando este quis conhecer do andamento do processo, tal foi-lhe negado, como sucedeu agora à citada paroquiana. Iván avançou então com um processo contra o arcebispado, acusando-o de violar o seu direito à informação e ao conhecimento da verdade, e sustentando que a Igreja Católica tem de ajustar o seu funcionamento à Constituição e aos tratados internacionais sobre direitos humanos. Perdeu a causa em primeira instância mas recorreu e ganhou.

Foi a vez de o arcebispado recorrer para o Supremo, defendendo não existir, em processo canónico, o dever de informar nem de ser informado, e que a sentença condenatória violava a autonomia constitucional da Igreja Católica, pondo em causa a Concordata argentina, nomeadamente o seu artigo primeiro. Este, semelhante ao de muitos outros acordos com a Santa Sé, dispõe que "o Estado argentino reconhece e garante à Igreja Católica Apostólica Romana o livre e pleno exercício do seu poder espiritual, o livre e público exercício do seu culto, assim como da sua jurisdição no âmbito da sua competência, para a realização dos seus fins específicos."

Na sua decisão, o Supremo, citando o papa - "A verdade é a verdade e não devemos escondê-la" - manteve a condenação, sublinhando que a atitude do arcebispado contradizia as directrizes de Francisco e que as normas da Igreja Católica não podem prevalecer sobre a Constituição nem sobre os tratados internacionais de direitos humanos.

Isso mesmo, que a Santa Sé/Vaticano/Igreja Católica está vinculada aos tratados internacionais que assinou, é o que lembra uma carta de abril de 2021, dirigida ao chefe de governo do Vaticano/Santa Sé (o secretário de Estado da Santa Sé, o cardeal Pietro Parolin), assinada por um grupo relatores especiais da ONU, incluindo o relator especial sobre tortura, o relator especial sobre a venda de crianças, prostituição e pornografia e o relator especial para promoção da verdade, justiça, reparação e garantia de não repetição.

Tornada pública em junho do mesmo ano (por falta de resposta do destinatário no prazo de 60 dias), a carta verbera a entidade Santa Sé/Vaticano/Igeja Católica - em cujas complexas definições jurídicas as autoridades católicas costumam acobertar-se, à imagem do que sucede no mundo da finança com a criação de empresas fantasma para evadir responsabilidades e identidades - por dizer uma coisa e fazer outra, mantendo as velhas manhas ao pretender que tudo mudou.

"Estamos gravemente preocupados com as alegações persistentes de obstrução e de ausência de cooperação da Igreja Católica com os processos judiciais domésticos, com o intuito de impedir a responsabilização dos agressores e a atribuição de indemnizações às vítimas. Estamos igualmente preocupados com as concordatas e outros acordos negociados pela Santa Sé com os estados, que limitam a possibilidade das autoridades civis interrogarem, obrigar à produção de documentos ou processar pessoas associadas à Igreja Católica. Solicitamos ao governo de sua Excelência de se abster de recorrer a práticas de obstrução e a colaborar plenamente com as autoridades judiciárias civis e policiais dos países em causa, assim como abster-se de assinar ou invocar acordos existentes para fazer escapar às responsabilidades membros da Igreja acusados de terem cometidos abusos."

Um dos exemplos apresentado na carta dessa persistência no secretismo e encobrimento, na evasão à responsabilidade e à reparação, é o caso do Instituto Próvolo, na nossa já conhecida província argentina de Mendonza.

Um dos padres acusados (e, como vimos, condenados a mais de 40 anos de prisão) tinha sido alvo de denúncias semelhantes em duas outras delegações do referido instituto - Verona, em Itália, e La Plata, na Argentina - e o Ministério Público argentino pediu aos emissários do Vaticano que fornecessem os inquéritos canónicos respetivos, tendo estes, recordam os relatores, negado, com o mesmo argumento apresentado pelo atual arcebispo: a Concordata coloca a Igreja Católica fora da alçada da justiça do país.

A carta acusa também a Igreja Católica argentina de ter adotado, face aos numerosos processos por danos que foram intentados contra ela no âmbito do mesmo caso, "estratégias dilatórias e obstrucionistas, nomeadamente invocando o princípio da prescrição e adotando medidas para proteger os seus bens das demandas."

A questão da prescrição é outra sobre a qual os relatores exprimem a sua preocupação, apontando a pressão exercida pela Igreja Católica, nos vários países, para que "sejam mantidos os prazos de prescrição que impedem as vítimas que atingiram a idade adulta - momento no qual são mais capazes de assumir perante um tribunal os danos que sofreram - de denunciar os crimes."

Terminam endereçando à Santa Sé várias perguntas, entre as quais esta: "Queira informar se o governo de vossa Excelência tomou medidas para revogar as regras das concordatas e acordos bilaterais que impedem as autoridades civis de conduzir inquéritos eficazes sobre abusos sexuais." Como todas as outras, terá ficado sem resposta.

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