Era suposto ser uma noite longa, sobretudo por Lisboa e Porto, eleições renhidas até ao fim. Mas talvez ninguém a antecipasse tão confusa e surpreendente. Começou com dois bastiões históricos do PSD — Viseu (Viseu, caramba) e Bragança, ainda para mais pela mão de uma mulher, uma jovem e bem explicada mulher — a tombar, inesperadamente, para o PS, e outro dos bastiões nortenhos sociais-democratas, Braga, a aguentar-se, ao que parece, apenas por menos de 300 votos (ainda a propósito de diferenças de centenas de votos, Aveiro ficou nas mãos do PSD por cerca de 200). Foi também uma noite em que Guimarães e Beja passaram do PS para a coligação PSD/CDS e Faro e Coimbra fizeram o percurso contrário; a noite na qual o PCP perdeu sete das 19 câmaras que detinha, entre as quais a simbólica Grândola, e as duas únicas capitais de distrito que lhe restavam, Évora e Setúbal. A primeira caiu para o PS e a segunda para a coligação Setúbal de Volta, encabeçada pela ex-comunista e ex-autarca da cidade Maria de Lurdes Meira, agora independente apoiada pelo PSD (e que ganhou a câmara ao PS por mil votos). Foram duas derrotas pesadas para os comunistas: em Setúbal, passaram de primeira para quarta força; em Évora para terceira. Outro grande derrotado da noite foi o Chega: embora triplicando, face às anteriores autárquicas, a votação nacional — de menos de 200 mil votos para 600 mil — viu esfumarem-se mais de metade dos 1,3 milhões de votos que tivera nas legislativas, alcançando, depois de candidatar quase todo o seu plantel de deputados (44 em 50), apenas três câmaras.No Algarve, onde “ganhara” as legislativas, o partido de Ventura apenas conquistou uma câmara, Albufeira (que juntou à do Entroncamento e à de São Vicente, na Madeira); no Alentejo, onde parecia ter muita força, nem uma. Este resultado do partido de extrema-direita não se deverá só, como muito se comenta, ao facto de continuar a ser um projeto unipessoal (tão unipessoal que o líder acha que tem de pôr a cara em todos os cartazes), mas talvez sobretudo porque a nível local o voto de protesto, o voto que quer ver tudo a arder, fará pouco sentido: quando se trata das suas terras, das suas cidades e freguesias, as pessoas não querem exprimir raiva nem assistir a palhaçadas no Tiktok ou pateadas em assembleias, mas obter soluções, trabalho, seriedade (pelo menos tentada), alguém em quem possam confiar. E pelos vistos os candidatos do Chega não lhes soam confiáveis.Quanto ao grande vencedor, é evidente: arrebanhando, depois de uma luta renhida, as duas principais cidades (Lisboa e Porto), contabilizando, sozinho e coligado, maior número de câmaras e maior número de votos, o PSD pode sem dúvida reivindicar vitória — e Luís Montenegro gabar-se, como gabou, de ter logrado, em cinco meses, ganhar duas eleições seguidas e consolidar o seu domínio sobre o país, um domínio tanto mais notável quando convive com o crescimento de um partido à sua direita e uma série de assuntos mal explicados.Carlos Moedas é outro grande vitorioso: malgrado um final de mandato abalado pela tragédia do elevador da Glória (em que se distinguiu por tentar alocar quaisquer decisões problemáticas ao anterior executivo e em vitimizar-se ante qualquer questão sobre o acidente), e um défice bastante acentuado de “obra” (grande parte do que apresenta como seu trabalho é herança da anterior governação), ficou a muito maior distância da coligação de esquerda (20 mil votos) do que ficara da coligação PS-Livre há quatro anos (cerca de dois mil), obteve mais um vereador. O seu nome no boletim de voto, ao lado do da coligação que integra, terá tido razão de ser: os lisboetas, pelos vistos, como gosta de dizer, 'conhecem-no', e talvez lhe tenham até ganhado estima. Quiçá acreditaram que era ele ou o "radicalismo".Igualmente de assinalar é o regresso, com proveito, de dois dos chamados “dinossauros” autárquicos: a já mencionada Maria de Lurdes Meira em Setúbal e Luís Filipe Menezes, que arrancou Vila Nova de Gaia ao PS. Estes regressos triunfantes de ex-autarcas, após travessias mais ou menos longas de maiores ou menores desertos e de acontecimentos mais ou menos complexos são comuns na política autárquica -- o mais interessante é, porém, que tendem a ter sucesso, o que derivará da especial e algo misteriosa relação que conseguem estabelecer com os prospectivos eleitores.Mas há outro vencedor da noite. Sim, é mesmo esse: o PS. Evidenciou muito mais do que uma prova de vida: sozinho — participou em muito menos coligações que o PSD — teve 1,5 milhões de votos, menos cerca 170 mil que nas autárquicas de 2021 mas mais 100 mil que nas legislativas de maio. Perdeu o domínio no número de câmaras (não é ainda certo, quando escrevo, com quantas fica ao todo) e portanto a presidência da Associação Nacional de Municípios, e não conseguiu conquistar Lisboa nem Porto, sim; mas nenhuma das suas derrotas foi desonrosa. Bateu-se taco a taco com o PSD por uma série de câmaras e conquistou várias.Mais do que “voltar” — a expressão usada por José Luís Carneiro, que pressupõe que se teria ido embora, ou abaixo —, o PS aguentou-se. Não é como se tivesse sido reduzido a cinzas ou perdido o caminho; apenas andou um pouco neurasténico. E mostrou que não só é o grande partido da esquerda como, com o desaparecimento do BE, o evidente declínio do PCP e um Livre ainda pouco expressivo, é quase toda a esquerda — o que lhe necessariamente lhe empresta (ou devia emprestar) um espírito de urgência e missão.Por fim, se algo se pode concluir destas eleições é que o país tem ainda, e tem acima de tudo, dois grandes partidos, sem que nenhum outro tenha surgido capaz de disputar com eles o poder autárquico. Pode ser, claro, que isso venha a suceder. Mas para já as notícias da morte do bipartidarismo parecem ter sido muito exageradas.