Testes rápidos e o fator medo. Como Madrid reduziu a incidência do vírus para metade

A comunidade autónoma de Madrid passou de uma incidência cumulativa, para um período de 14 dias, de 735 casos, no final de setembro, para 339 infeções. A introdução dos testes rápidos e o comportamento da população podem estar na origem desta redução, indicam especialistas, que são, no entanto, cautelosos na análise dos dados.
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A utilização de testes rápidos antigénio, em substituição dos habituais PCR (a amostra é obtida com recurso a zaragatoa) e o comportamento da população podem ser dois dos fatores que mais contribuíram para a redução para metade da taxa de incidência do novo coronavírus em Madrid no último mês.

Embora cautelosos na análise dos dados, três especialistas ouvidos pelo El País apontam estas razões como possíveis causas para a redução registada na região. A incidência cumulativa do vírus passou de 735 casos (a 30 de setembro) para 339 infeções, dado registado esta quarta-feira.

O executivo de Madrid, liderado por Isabel Díaz Ayuso, que em muitas decisões na resposta à pandemia colidiu com o Governo central, coloca o foco sobre as medidas que aplicou. Considera que, por exemplo, os confinamentos "cirúrgicos" e as restrições dirigidas a determinadas áreas sanitárias da região "funcionaram". Mas de acordo com os especialistas, a análise dos dados tem de ser mais abrangente e ter em conta as mudanças que ocorreram na estratégia de combate à pandemia.

"É necessário olhar atentamente estes dados, porque foram introduzidas várias alterações que influenciam a forma como contamos os casos: o tipo de testes de diagnóstico utilizados, o ambiente onde são utilizados e os critérios com que são aplicados", afirmou Miguel Ángel Royo, especialista em medicina preventiva e saúde pública e porta-voz da Sociedade Espanhola de Epidemiologia.

Uma das alterações na estratégia de combate à pandemia foi a introdução dos testes rápidos antigénio, "um sucesso e um avanço para o controlo da transmissão", realça Royo. Um meio de diagnóstico mais barato e rápido, que permite o isolamento precoce.

No entanto, estes testes não são comparáveis aos PCR. "Não têm a mesma sensibilidade ou os mesmos critérios de uso", esclarece sobre este meio de diagnóstico à covid-19 que é indicado "para pessoas com sintomas nos primeiros cinco dias de evolução da doença e para contactos próximos".

Tendo isto em consideração, Miguel Ángel Royo refere ao jornal que em Madrid os testes rápidos começaram a ser usados a partir do final de setembro, substituindo parte dos PCR, tendo sido iniciada uma testagem massiva da população "apenas para os [indivíduos] que não estavam indicados".

Nas duas últimas semanas de setembro há alterações significativas na estratégia de testagem em Madrid. A partir de dia 21, o teste antigénio começou a ser utilizado e o recurso ao PCR foi sendo reduzido. Ao mesmo tempo, nesta altura entraram em vigor as medidas do executivo regional, como o limite de pessoas em reuniões que passou de dez para seis e foi decretado o confinamento em áreas sanitárias com a taxa de incidência do vírus mais elevada. A partir do dia 30 de setembro foram restringidos os testes de PCR, que deixaram de ser feitos aos contactos próximos de doentes com covid-19.

Em duas semanas, a região passou de 170 mil testes PCR para menos de 73 mil, entre 4 e 10 de outubro, período durante o qual foi registada uma redução do número de infeções.

Conclusão: desde 30 de setembro até dia 9 deste mês, Madrid realizou 255.087 testes rápidos, dos quais apenas 1025 foram positivos para a doença. "Se se passa a fazer num contexto de alta prevalência, como os contactos próximos, para um de baixa prevalência, como acontece com estes de antigénio, com o mesmo número de testes deteta-se menos casos", explica o especialista, sublinhado que se torna difícil comparar os dados quando são alterados os tipos de teste e os critérios de utilização dos mesmos.

Escreve o El País que, a 20 de setembro, a comunidade autónoma registava 28.154 casos positivos acumulados nos últimos sete dias, e a 4 de outubro eram 16.715. Royo salienta que "a queda da incidência é paralela à queda do número total de testes e à progressiva substituição de parte do PCR" por testes rápidos.

Este especialista reconhece, porém, que "pode haver uma parte" da redução de casos relacionada com as medidas restritivas aplicadas nas semanas anteriores, mas descarta as que foram aplicadas nas zonas básicas sanitárias, uma vez que são ainda muito recentes para terem efeitos.

Saúl Ares, do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) espanhol, partilha da mesma opinião e recorda que na altura estava em vigor "o encerramento da animação noturna às 01.00, a proibição de fumar na rua caso não existisse os dois metros de distância de segurança e a redução da lotação" nos espaços.

Depois das férias, com o regresso ao trabalho e à escola, começou o "ruído" mediático sobre o aumento de casos, o que terá levado os cidadãos a mudar de comportamento.

Desta forma, à estratégia de testagem do governo de Isabel Díaz Ayuso pode-se acrescentar o comportamento da população para explicar a redução de casos. "Uma das hipóteses que estão a ser consideradas é uma mudança de comportamento em grande parte dos cidadãos como reação ao alarme sobre a incidência acumulada em Madrid ", diz Ildefonso Hernández, porta-voz da Sociedade Espanhola de Saúde Pública e ex-diretor-geral de Saúde Pública do Ministério da Saúde.

Este responsável destaca ainda a estimativa de que pelo menos 40% dos infetados sejam assintomáticos e o facto de o Ministério da Saúde reconhecer que está a detetar entre 60% e 80% do total de infetados.

Além da redução de casos há também uma queda na positividade, que é a percentagem de positivos tendo em conta os testes feitos. Mas esta diminuição é uma ilusão, defende Saúl Ares. E aqui voltam a estar em evidência a introdução dos testes de antígeno. Explica o jornal que à medida que os testes rápidos aumentam e os de PCR diminuem, a taxa de positividade sofreu uma redução. Passou de 19,50% na semana em que a comunidade de Madrid mais realizou o teste PCR (de 21 a 27 de setembro) para 9,98%, no final de outubro e os 8,21% registados atualmente.

O especialista do CSIC acredita, no entanto, que o uso massivo de antigénios pode estar ligado à contenção da evolução da pandemia registada em Madrid em comparação com outras regiões autónomas. Além do alarme suscitado na população pelo aumento de casos em setembro, que originou uma atitude mais preventiva, "o uso massivo de antigénios no último mês pode significar uma aceleração na quebra das cadeias de transmissão", indica Saúl Ares.

Restrições, testes rápidos e o comportamento dos cidadãos podem ser fatores que explicam a redução da incidência do vírus na comunidade, mas são apenas indicadores. "Falar de certezas e dizer que uma determinada medida funciona é uma ousadia. Não temos esses dados nem podemos obtê-los, tudo o que podemos ver é o impacto global de tudo o que aconteceu em um determinado período de tempo, mas a tomada de decisão errática, com intervenções cruzadas, de duração variável e áreas geográficas variáveis, ​​torna impossível analisar separadamente o efeito possível de cada um", considera o especialista em saúde pública Miguel Ángel Royo.

"Para avaliar a eficácia das medidas que estão a ser aplicadas, precisaríamos de ambientes de estudo controlados, e isso não é possível no meio de uma pandemia", diz Royo.

Nesse sentido, este especialista defende uma resposta concertada e que as medidas aplicadas sejam claras e sustentadas durante tempo suficiente, "sem interferências e alterações nos critérios", para que se possa perceber se tiveram ou não efeito no controlo da pandemia.

Mas considera que as medidas que resultam numa redução de contactos sociais podem ser as que estão a ter mais impacto. É o caso de confinamentos cirúrgicos, a limitação nas deslocações dos cidadãos e a diminuição das interações sociais.

Mais do que as medidas aplicadas ou a estratégia de combate à pandemia são os dados referentes aos internamentos em enfermaria e em unidades de cuidados intensivos (UCI) e os óbitos que espelham a situação epidemiológica, consideram os especialistas.

Neste parâmetro há uma redução "real", que "começa entre o final de setembro e o início de outubro", refere Ares. Na quarta semana de setembro, os hospitais madrilenos admitiram 2672 pacientes e na semana seguinte caíram para 2369. A 2 de outubro estavam internados em UCI 505 pessoas, mas desde 5 de novembro que este número tem vindo a baixar, assim como em relação às mortes, que agora oscilam entre 30 e 40, depois de se ter registado um máximo diário a 30 de setembro - 52 vítimas mortais. No total, já morreram 18.369 pessoas na Comunidade de Madrid por terem contraído covid-19 ou por suspeita de terem sido infetadas com o vírus.

Uma situação que Royo descreve como "preocupante". "Continuamos numa situação de elevada ocupação hospitalar e com elevados índices de incidência de risco." E caso haja um novo aumento da incidência do vírus na região, o problema agrava-se, e muito. "Um aumento na incidência com este nível de ocupação nas UCI pode ser letal e levar-nos de volta ao colapso sanitário", resume.

Perante o atual contexto epidemiológico da comunidade, Ildefonso Hernández não tem dúvidas em afirmar: "Que Madrid está a ir muito bem é uma falácia, não pode ser dito a sério. O que se pode fazer a sério é tomar as medidas adequadas para acentuar a queda, evitar que a curva volte a disparar e que haja espaço para recuperar totalmente o sistema de saúde."

Enquanto Madrid regista uma redução na incidência do vírus, Portugal tem enfrentado um aumento de novos casos de infeção no último mês, e o mesmo acontece com a taxa de ocupação dos hospitais, quer em enfermarias quer em UCI.

As medidas mais restritivas do Governo português começaram a ser aplicadas no âmbito do estado de emergência, em vigor desde as 00.00 de 9 de novembro, nomeadamente o recolher obrigatório nos 121 concelhos cuja taxa de incidência a 14 dias é igual ou superior a 240 casos por 100 mil habitantes.

Os concelhos das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto estão abrangidos nestas duras medidas de limite de circulação na via pública, entre as 23.00 e as 05.00 durante a semana, e a partir das 13.00 nos próximos dois fins de semana.

O impacto destas medidas só será visível dentro de duas semanas ou mais, uma vez que é necessário ter em conta vários fatores, como a estratégia de testagem. Portugal já começou a usar os testes rápidos neste mês, sendo certo que a DGS "não recomenda a sua utilização generalizada, mas sim a sua utilização adequada", de acordo com as orientações que entraram em vigor a 9 de novembro.

Nesta quarta-feira, a DGS informou que nas últimas 24 horas Portugal registou 4935 casos e mais 82 mortes (o número mais alto de sempre desde o início da pandemia).

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