Relatório mantido secreto por Boris acusa governo de reagir demasiado devagar

Relatório há muito aguardado acusa Downing Street de ser demasiado lento a reagir à ameaça e de não proteger o processo democrático do país.
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O relatório de 55 páginas da Comissão Parlamentar de Informação e Segurança, aguardado devido às suspeitas de possível interferência russa na política britânica, em particular na campanha do referendo de 2016 sobre o Brexit, concluiu que os ministros foram "lentos a reconhecer a existência da ameaça" e que não procuraram provas suficientes sobre as alegações de campanhas de desinformação.

Em resultado da falta de uma investigação séria sobre a questão, o relatório disse que seria "difícil, se não impossível" provar as alegações de que a Rússia tentou influenciar o referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia.

O relatório diz ser "claro" que o governo foi "lento a reconhecer a existência da ameaça" e que só tinha compreendido a ameaça russa à democracia "após a operação hack and leak [pirataria e divulgação] contra o Comité Nacional Democrata [nos EUA], quando esta deveria ter sido vista já em 2014".

"Em consequência, o governo não tomou medidas para proteger o processo [eleitoral] do Reino Unido em 2016", afirmou a comissão.

"Houve alegações generalizadas de que a Rússia procurou influenciar os eleitores no referendo de 2016 sobre a adesão do Reino Unido à UE: estudos apontaram a preponderância de histórias pró-Brexit ou anti-UE na [estação de TV] RT e no [site] Sputnik, e a utilização de 'bots' e 'trolls', como prova", disse o relatório.

A comissão, uma das mais importantes no parlamento britânico devido ao papel na fiscalização das agências de informação e serviços secretos britânicos, disse que acontecimentos como o assassínio de Alexander Litvinenko em 2006 e a anexação da Crimeia em 2014 tinham demonstrado que a Rússia estava a tornar-se numa ameaça sob a liderança de Vladimir Putin.

O relatório explica que o Reino Unido é um alvo importante da campanha de desinformação russa devido à proximidade dos EUA e à sua influência junto dos aliados ocidentais em geral quando são tomadas medidas contra a Rússia.

O relatório foi concluído em março do ano passado e apresentado ao primeiro-ministro Boris Johnson em meados de outubro. Este invocou questões de segurança nacional para não publicá-lo antes das eleições de 12 de dezembro, as quais ganhou com maioria absoluta.

O deputado trabalhista Kevan Jones, membro da comissão, qualificou de "falsas" as razões apontadas por Boris Johnson para o atraso na divulgação do relatório.

Em novembro, a ex-candidata à presidência dos EUA Hillary Clinton não se esquivou a comentar o caso, tendo dito que o adiamento da divulgação para depois das eleições era "vergonhoso e inexplicável".

Passividade em Downing Street

O relatório também sugere que o executivo "não tinha visto ou procurado provas de interferência bem-sucedida nos processos democráticos do Reino Unido ou qualquer atividade que tivesse tido um impacto material sobre uma eleição, por exemplo, influenciando os resultados".

Prosseguiu dizendo que a comissão "não tinha recebido qualquer avaliação pós-referendo das tentativas de interferência russas" e um pedido de informação do MI5 resultou numa declaração de seis linhas.

Além disso, o relatório dizia que o ato de proteger o processo democrático se tornou numa "batata quente" sem que nenhuma organização assumisse a responsabilidade.

"Questionamos, portanto, se o governo desviou a atenção devido ao seu empenho na luta contra o terrorismo: foi a opinião da comissão que, até há pouco tempo, o governo tinha subestimado seriamente a resposta necessária à ameaça russa - e ainda está a tentar recuperar o atraso."

Londresgrado

O relatório aponta para "o novo normal" em que os governos britânicos acolhem bilionários russos e salienta que "há muitos russos com ligações muito próximas a Putin que estão bem integrados na cena empresarial, política e social do Reino Unido", em particular em Londres.

No entanto, o relatório informa que não há um escrutínio suficiente do dinheiro russo no Reino Unido e questionou até que ponto esta entrada de capitais está regulamentada.

"Existe uma tensão inerente óbvia entre a agenda de prosperidade do governo e a necessidade de proteger a segurança nacional", diz o relatório.

"É notório, por exemplo, que vários membros da Câmara dos Lordes têm interesses comerciais ligados à Rússia, ou trabalham diretamente para grandes empresas russas ligadas ao Estado russo - estas relações devem ser cuidadosamente escrutinadas, dado o potencial para o Estado russo as explorar", alerta.

"Este nível de integração - em 'Londresgrado' em particular - significa que quaisquer medidas agora tomadas pelo governo não são preventivas mas sim constituem uma limitação de danos".

'Londresgrado' é como se designa a influência russa nos bairros de prestígio, como Chelsea, nos quais os oligarcas investem em propriedades de luxo.

Espiões sem licença

Segundo a comissão, as agências de informações britânicas necessitam de instrumentos adequados para enfrentar o desafio da Rússia, incluindo nova legislação relacionada com espiões estrangeiros.

"A Lei dos Segredos Oficiais não é adequada ao fim a que se destina e enquanto isto não for retificado, a comunidade dos serviços secretos britânicos está de mãos atadas", advertiu a comissão.

"De forma mais geral, precisamos de um consenso internacional contínuo contra a hostilidade russa. A restrição eficaz das atividades nefastas da Rússia no futuro dependerá da garantia de que o preço que os russos pagam por tal interferência é suficientemente elevado: o Ocidente é mais forte quando age coletivamente, e o Reino Unido tem demonstrado que pode liderar a resposta internacional".

A publicação acontece num contexto de relações tensas entre Londres e Moscovo.

Na quinta-feira, o Reino Unido acusou "atores russos" de interferência durante a campanha para as eleições legislativas de dezembro passado ao divulgar na internet documentos relacionados com as negociações entre Londres e Washington sobre um futuro acordo de comércio pós-Brexit.

Londres também acusou os serviços secretos russos de ataques contra cientistas e instituições do Reino Unido, EUA e Canadá envolvidas na investigação de uma vacina contra o novo coronavírus.

"Russofobia", diz o Kremlin

O Kremlin negou as "alegações infundadas", feitas um dia depois de o Partido Conservador ter expulsado o deputado Julian Lewis após este ter sido eleito presidente da Comissão com os votos dos partidos da oposição, tendo ignorado as orientações para apoiar a eleição do colega Chris Grayling.

Hoje, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, Maria Sakharova, descreveu o relatório dos deputados como "russofobia esculpida com falsidades".

"A Rússia nunca interveio nos processos eleitorais de nenhum país: nem nos Estados Unidos, nem no Reino Unido, nem em nenhum outro país", disse por sua vez Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin.

"Nós também não toleramos que outros países tentem interferir nos nossos assuntos políticos", explicou o porta-voz do Kremlin, acusando o relatório da Comissão Parlamentar britânico de promover "acusações gratuitas".

As relações entre Londres e Moscovo deterioraram-se desde que o ex-espião russo Sergei Skripal e a filha Yulia foram envenenados com um agente neurotóxico em Salisbury em março de 2018.

Os dois sobreviveram, bem como um polícia que foi contaminado, mas a britânica Dawn Sturgess morreu após ter encontrado o recipiente usado para transportar a substância.

A então primeira-ministra, Theresa May, acusou a Rússia de espalhar "histórias falsas" para "semear discórdia no Ocidente e minar as nossas instituições".

As autoridades britânicas acusaram formalmente Alexander Petrov e Ruslan Boshirov, membros da agência de informações russa GRU, que alegam ter ido em turismo àquela cidade.

Comme d'habitude, a Rússia negou qualquer envolvimento, mas o caso desencadeou uma onda de expulsões cruzadas de diplomatas entre Londres e os seus aliados e Moscovo.

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