Quem é o magnata que faz concursos de miss para crianças?

O "Miss Infantil', do último fim de semana, foi apenas uma onda no oceano de controvérsias do empresário e apresentador de 88 anos, ex-candidato à presidência, cuja filha, também apresentadora, foi sequestrada, e que depois de vender capas para cartões nas ruas do Rio de Janeiro na adolescência se tornou multimilionário. Bolsonarista convicto, esteve sempre do lado do poder.
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"Vocês do auditório vão ver quem tem as pernas mais bonitas, o colo mais bonito, o rosto mais bonito, o conjunto mais bonito", disse um homem, de 88 anos, a olhar para os corpos seminus das candidatas, em torno de 10 anos, ao título de Miss Infantil, durante um dos mais populares programas dominicais no Brasil, o Programa Sílvio Santos, no canal SBT. No país, o episódio causou indignação - mas foi apenas mais uma, de entre as tantas, criadas pelo apresentador de televisão mais famoso do país ao longo de décadas. Os menos familiarizados com a cultura televisiva brasileira, entretanto, perguntaram-se: afinal, quem é este homem que se permite, numa tarde de domingo de 2019, tratar crianças como objetos de desejo?

Para responder a esta pergunta, ninguém mais habilitado do que Maurício Stycer, autor de uma biografia do comunicador, publicada no Brasil no ano passado pela Editora Todavia com o revelador título "Topa Tudo por Dinheiro - As Muitas Faces do Empresário Sílvio Santos".

"A base da programação da sua televisão sempre foi eminentemente popular, no bom e no mau sentido", diz Stycer ao DN. "E é nesse contexto que deve ser entendido o Miss Infantil, é algo que faz sentido na cabeça dele, que está na televisão desde os anos 60, sem alterar a forma de ver as coisas - e isso inclui expor crianças a situações constrangedoras ou ser machista com as suas convidadas".

Numa pesquisa rápida nos motores de busca da internet é fácil encontrar artigos de jornais e de revistas sob os títulos "os 10 piores momentos de Sílvio Santos", "o top 5 das vergonhas de Sílvio Santos" ou "as melhores pérolas de Sílvio Santos", por exemplo. Neles, o comunicador, que é dono, não só do programa que leva o seu nome, mas também do canal onde ele é emitido, provoca constrangimentos nos convidados, sobretudo do sexo feminino, e até nas próprias filhas.

"Se a Patrícia [Abravanel, quarta das suas seis filhas, e também apresentadora] perder [em audiências] para a [concorrente] Xuxa nesta segunda-feira fica sem programa", disse, na frente da própria. Já neste mês, também no programa, declarou que Alexandre Pato, marido da sua quinta filha, Rebeca, tinha "três bolas e não duas" por ser futebolista, para gargalhada geral do auditório, exclusivamente feminino, do programa.

Numa entrega de prémios do SBT, informou, perante a plateia, a controversa jornalista e colunista do canal Rachel Sheherazade que, se ela quisesse fazer política, que comprasse um canal para si.

Dudu Camargo, um outro pivô do SBT - provavelmente o mais novo do mundo por ter assumido as manhãs do canal, repletas de notícias de crimes sangrentos, aos 18 anos -, envolveu-se em polémica com Maísa Silva, apresentadora de programa infantil ainda mais nova, depois de Santos ter sugerido, no seu programa, que os dois namorassem.

Noutra ocasião, disse que "mulher não tem o direito de ser feia", fez uma rima de gosto para lá de duvidoso a propósito da atriz da Globo Paolla Oliveira - "Paolla gosta de rola [calão no Brasil para pénis]" -, e sugeriu a uma convidada que se esfregasse nele. E muitos, muitos mais episódios.

Pelo meio, distribui notas ao auditório gritando o seu celebérrimo bordão, "quem quer dinheiro, quem quer dinheiro", enquanto as mulheres pulam frenéticas em busca dos reais espalhados pelo chão.

"Essas atitudes são inaceitáveis para muita gente em 2019 mas a poucos meses de completar 89 anos ele dá sinais de que não vai mudar a esta altura da vida e aceita, aparentemente sem medo, perder parte do respeito acumulado ao longo da carreira", diz Stycer.

Self made man

O respeito deriva da sua história típica de self made man. "Filho de imigrantes judeus de poucos recursos, Sílvio Santos foi vendedor de rua na adolescência, locutor comercial de rádio já na vida adulta, e sozinho, com grande inteligência, sentido de sobrevivência aguçado e enorme capacidade de comunicação, tornou-se dono da segunda maior rede de televisão do Brasil", lembra o biógrafo.

Nascido Senor Abravanel, no centro do Rio de Janeiro, em 1930, venceu capas para bilhetes de identidade na calçada, antes de fazer carreira na rádio e na televisão já com o nome artístico Sílvio Santos.

O seu Programa Sílvio Santos andou de emissora em emissora - ele alugava o espaço - até chegar à gigante TV Globo. Uma reformulação no início dos anos 70 que visava elevar o padrão do canal, no entanto, acabaria por precipitar a sua saída e a fundação do SBT, em 1981.

O SBT, entretanto, orgulha-se de se ter fixado como segunda maior televisão do Brasil, à frente das concorrentes Record, Band e outras. Como a Globo é considerada inatingível, o seu orgulhoso slogan chegou a ser "SBT, liderança absoluta do segundo lugar".

Com cerca de 100 emissoras filiadas espalhadas pela imensidão do Brasil, o SBT, porém, é apenas uma parte do Grupo Sílvio Santos, que reúne 38 empresas, de ramos tão diversificados como os cosméticos, a hotelaria ou a banca. Um rombo no seu Banco Panamericano, porém, quase levou o grupo todo à falência, em 2010. Mas o empresário vendeu parte das empresas, negociou empréstimos e contornou a aflição.

Mais aflitivo fora o episódio de nove anos antes em que a sua filha Patrícia, a tal que ele despediria se não batesse Xuxa nas audiências, foi vítima de sequestro, na região do Morumbi, em São Paulo, onde mora a família Abravanel. Fernando Pinto, o sequestrador, recebeu um resgate, escapou com vida do episódio mas viria a ser preso e a falecer na cadeia anos depois.

O sucesso de Santos levara-o até, 12 anos antes, a concorrer à presidência da República, em 1989, cujas sondagens chegou a liderar. Mas teve a sua candidatura impugnada por questões burocráticas e Collor de Mello, batendo Lula da Silva na segunda volta, acabaria eleito.

Apoio acima da média a Bolsonaro​​​​​​​

O lado político, entretanto, é um dos mais controversos da sua vida. "Sílvio apoiou todos os presidentes do Brasil desde o início dos anos 70, incluindo os generais que comandaram o país durante a ditadura militar. Chegou até a criar uma rubrica chamada "a semana do presidente", exibida ao domingo no seu programa, para bajular os governantes de plantão", conta Stycer, o autor de "Topa Tudo por Dinheiro".

"Ainda assim, na sua trajetória de adulação aos poderosos, o seu apoio a Jair Bolsonaro parece de um entusiasmo acima da média".

O atual presidente do Brasil, assim como o concurso Miss Infantil, já foi atração este ano do Programa Sílvio Santos. E entrevistado, com brandura, pelo secção de jornalistas do SBT.

Em retribuição, nas comemorações da independência do Brasil, do último 7 de setembro, Sílvio ficou num lugar ainda mais nobre do que o vice-presidente Hamilton Mourão ou a primeira-dama Michelle, logo ao lado esquerdo de Bolsonaro. Ao lado direito, o presidente chamou Edir Macedo, bispo fundador da Igreja Universal do Reino de Deus e dono da Record, outro gigante da comunicação do Brasil.

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