Putin: "O Donald tem razão sobre Daesh na Síria" mas "pode levar o mundo ao holocausto nuclear"

Uma no cravo, outra na ferradura. Na sua conferência de imprensa anual, o homem que manda na Rússia desde 1999 certificou que os EUA nunca deviam ter entrado na Síria mas que não acredita que saiam. E que o Ocidente sofre de "russofobia". E deu o show habitual de ironia e sarcasmo.

Mais de 1700 jornalistas, quatro horas de conferência de imprensa, transmitida em direto pela TV russa, com perguntas pré-aprovadas e sem direito a sequência e muitos aplausos à mistura. Vladimir Putin faz isto há muito e não há memória de se ter saído mal: é sobretudo uma sessão de propaganda para o líder russo passar a sua mensagem.

E as mensagens são muitas.

May está numa situação difícil mas tem de sair da UE "porque foi essa a decisão do povo - senão, que tipo de democracia seria?" -- e a Rússia deseja normalizar as relações com o país, esfriadas devido ao caso Skripal; "Donald [Trump] tem razão quando diz que o Daesh foi derrotado na Síria" e que os EUA devem retirar de lá as tropas - aliás, estiveram lá sempre ilegitimamente, "ao contrário da Rússia, que acudiu ao pedido do governo sírio" - mas não acredita que o façam. "Não vemos qualquer sinal dessa retirada. Há quanto tempo os EUA estão no Afeganistão? 17 anos? E praticamente todos os anos dizem que vão retirar."

"Não vemos qualquer sinal dessa retirada [da Síria]. Há quanto tempo os EUA estão no Afeganistão? 17 anos? E praticamente todos os anos dizem que vão retirar."

O mesmo Trump "está a colocar o mundo em risco de um holocausto nuclear"; se a proibição de colocar mísseis nucleares de médio e curto alcance na Europa, prevista num tratado de 1987 - que os EUA ameaçam deixar cair por considerarem que uma nova arma da Rússia o viola - deixar de ser observada, "vamos fazer o que tiver de fazer para nos defendermos".

Quanto a outro tratado, que estabelece limites ao número de mísseis balísticos intercontinentais, e cujo prazo expira em 2021, Putin certifica que até agora não há sinal de interesse, por parte dos EUA, em encetar conversações. "Não estão interessados? Não precisam? Tudo bem", diz o líder russo. Porém, avisa: "Sabemos como tomar conta de nós. Mas, de modo geral, isto é muito mau para a humanidade porque nos leva para uma fronteira muito perigosa. É uma questão muito séria e é uma pena estar a ser subestimada. Estamos a assistir ao colapso do sistema internacional de contenção nuclear e ao início de uma corrida às armas."

"Não estão interessados [em falar sobre tratados de armamento]? Não precisam? Tudo bem. Sabemos como tomar conta de nós. Mas, de modo geral, isto é muito mau para a humanidade porque nos leva para uma fronteira muito perigosa. É uma questão muito séria e é uma pena estar a ser subestimada. Estamos a assistir ao colapso do sistema internacional de contenção nuclear e ao início de uma corrida às armas."

"Se, Deus impeça, algo assim suceda, levaria ao fim da civilização e talvez mesmo do planeta", concluiu Putin. "Espero que a humanidade tenha suficiente bom senso e sentido de autopreservação para não deixar as coisas chegar aí."

Russofobia ocidental vitimiza o país

As sanções ocidentais contra a Crimeia (anexada pela Rússia em 2014/15) são injustas e sem sentido: "É uma situação curiosa. A Rússia está a ser acusada de ter anexado a Crimeia pela força. Mas se foi isso que sucedeu as pessoas que lá vivem, não têm culpa, não devem ser castigadas; já se decidiram passar a fazer parte da Rússia por sua vontade, através do voto, então não houve anexação nenhuma."

Também infundamentadas, claro, são as sanções contra a Rússia devido à acusação de que o país teria ordenado o envenenamento do ex expião Sergei Skripal, no Reino Unido, em março; em comparação, o homicídio do jornalista saudista Jamal Khashoggi no consulado do seu país na Turquia "não mereceu o mesmo tipo de reação".

"É uma situação curiosa. A Rússia está a ser acusada de ter anexado a Crimeia pela força. Mas se foi isso que sucedeu as pessoas que lá vivem, não têm culpa, não devem ser castigadas; já se decidiram passar a fazer parte da Rússia por sua vontade, através do voto, então não houve anexação nenhuma."

"Não tenho nenhum comentário a fazer sobre o caso Khashoggi a não ser que é claro que foi assassinado, toda a gente o reconhece, enquanto que, graças a Deus, Skripal está vivo; a Rússia foi castigada com uma série de sanções e no caso de Khashoggi nada sucede - silêncio absoluto", disse Putin.

Falou também de Maria Butina, alegada espia russa detida nos EUA no início do mês que disse ter ordens do governo de Putin para se infiltrar nos grupos conservadores nos EUA: "Está a mentir, disse isso por estar com medo de ir para a prisão, coitada".

Tudo, em suma, porque o Ocidente sofre de "russofobia": ""Esta reação politizada russofóbica é só um motivo para um novo ataque à Rússia. Não é nada de novo e é óbvio para mim. O objetivo é conter o desenvolvimento da Rússia e impedi-la de se tornar um rival, é só isso. Não vejo qualquer outro motivo."

Ucrânia e morte de jornalistas

Outro assunto abordado foi o dos marinheiros ucranianos capturados a 25 de novembro, quando a guarda-costeira russa disparou sobre três navios da marinha ucraniana que estavam a fazer a travessia do Mar Negro para o Mar de Azov e apreendeu as embarcações com a respetiva tripulação. Apesar de a NATO ter condenado o ataque e exigido à Rússia que devolva os navios e liberte os marinheiros, tal não sucedeu ainda. Putin acusou o presidente ucraniano Petro Poroshenko de ter criado a situação para melhorar a sua taxa de aprovação interna, com vista às próximas eleições, que têm lugar em março. "Conseguiu o que queria mas prejudicou a Ucrânia", comentou o homólogo russo.

"Não tenho nenhum comentário a fazer sobre o caso Khashoggi a não ser que é claro que foi assassinado, toda a gente o reconhece, enquanto que, graças a Deus, Skripal está vivo; a Rússia foi castigada com uma série de sanções e no caso de Khashoggi nada sucede - silêncio absoluto"

Tema quente igualmente abordado por Putin foi o da execução de três jornalistas russos - o repórter freelance Orkhan Dzhemal, o realizador Alexander Rastorguyev e o câmara Kirill Radchenko - a 30 de julho na República Central africana, onde estavam a investigar a atividade de uma companhia russa, a Wagner, que acreditavam desenvolver atividade mercenária. Os três estavam ao serviço de um centro de investigação jornalística, o TsUR, que é financiado pelo oligarca russo Mikhail Khodorkovsky, que foi acusado e condenado de vários crimes económicos na Rússia. Considerado pela Amnistia Internacional como preso político, está desde 2014 no exílio, na Suíça.

Qualificando as mortes como "uma grande tragédia", o presidente russo disse que os três foram aparentemente mortos por um dos grupos em conflito na RCA, e que a investigação continua. A Wagner tem sido associada a Yevgeny Prigozhin, que é regularmente caracterizado nos media como "o cozinheiro de Putin". A propósito, o presidente comentou que cabe à justiça dizer se a companhia violou alguma lei.

Putin, que foi reeleito em março para mais seis anos de presidência, está à frente da Rússia - ora como presidente ora como primeiro-ministro - desde 1999. Se se mantiver na presidência até ao fim deste mandato, em 2024, fará um quarto de século ao leme do país.

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