"Primeiro, receei a guerra. Agora não esqueço o som das mães que gritavam pelos filhos"
Para Rui Miguel Fernandes, de 37 anos, português, nascido em Santarém, o dia 4 de agosto era para ser um dia igual a tantos outros, mas não foi. Nem para ele, nem para o Líbano, nem para o mundo. Foi o dia em que se voltou a relembrar, e com medo, Hiroxima e a bomba atómica de 6 de agosto de há 75 anos.
Ele, que vive desde fevereiro de 2019 em Beirute, para fazer doutoramento em Vivência Religiosa e Hip Hop, na Universidade de São José, pensou que era o dia que a guerra voltava ao mundo. Mas foi também o dia em que percebeu que "a destruição de uma bomba é tão tremenda que não vale a pena perder tempo com o medo".
Foi um dia de vivências fortes, sentimentos mistos, de muita união e de compaixão, em vários momentos e em vários palcos. Primeiro, conta ao DN, "comecei por me sentir aliviado, pensei: escapei por pouco", depois, "e quando saí para a rua, experienciei a compaixão: o som das mães que gritavam pelo nome dos filhos para saberem se estavam vivos. Era muito impactante. Não consigo esquecer".
Por fim, "consegui refletir e pensar: o que estou a fazer? Tenho de agir, tenho de ajudar. E foi o que fiz". Só às quatro da manhã voltou a olhar para um relógio, mas ainda cheio de adrenalina, "uma adrenalina que se mantinha quase por osmose e por solidariedade".
À medida que se avançava nas ruas, havia carros destruídos, betão desfeito, vidros por todo o lado. Metade da cidade estava destruída. As famílias procuravam quem vivia naquela zona ou quem poderia lá estar. O último balanço do governo libanês, divulgado nesta semana, dá conta de 171 mortos, mais de seis mil feridos e mais de 300 mil desalojados.
As imagens eram chocantes e passavam vezes sem fim nos ecrãs das televisões. O mundo viu mais cedo o que tinha acontecido do que o resto do Líbano, "quem estava no local não tinha acesso a nada. Só se sabia o que alguém já tinha ouvido dizer por outra pessoa. Foi quando começou a circular que tinha sido uma explosão no porto, que poderia ter sido um atentado de Israel, mas ninguém sabia ao certo. Começou também logo a falar-se da hipótese de incêndio num armazém onde era guardado amónio, e que tinha sido este que provocou a explosão. Mas ninguém tinha certezas". A única que todos tinham era mesmo a do medo e da tristeza.
Hoje, confessa, já é mais simples falar do assunto. É por isso que o faz, na noite deste sábado (15 de agosto), e depois de ter passado o dia, que começou às cinco da manhã, na rua com um grupo de voluntários de várias igrejas a distribuir mantimentos à população e a ouvi-la sobre o que mais precisa.
É nesta altura que olha também para trás e que percebe que "há coisas assim, o que tem de ser...". Rui estava sozinho numa sala da biblioteca de uma congregação onde costuma fazer investigação para o seu doutoramento. "A biblioteca fica num condomínio moderno, muito betão e muito vidro", diz a rir-se, "levanto-me para ir a outra sala buscar mais livros e, quando fecho a porta atrás de mim, ouço a primeira explosão, pensei que tinha sido qualquer coisa dentro do próprio edifício. Logo a seguir, ouço a segunda e percebi que era outra coisa, a dimensão foi tal que achei: é a guerra a começar."
Quando volta atrás, "abro a porta da sala onde estava e só vejo destruição. Estava completamente destruída". Foi quando se sentiu atingido pelo alívio de "ter escapado". Sai de imediato para o jardim, onde já várias pessoas se estavam a juntar e a tentar perceber o que tinha acontecido, mas "ninguém fazia ideia. Estavam todas com a mesma sensação que eu, era a guerra com Israel ou com o Hezbollah que ia começar".
Rui continua: "Os que não estavam feridos começaram a ir para a rua e a tentar ajudar os que passavam ensanguentados, outros estavam completamente em choque, e houve outros que começaram a fazer as malas para sair da cidade porque corria a versão de que a explosão tinha gases tóxicos."
O cenário era tão devastador que, à medida que se aproximava da zona do porto e via "ruas completamente destruídas", só pensava em como podia ajudar. Só muito mais tarde conseguiu chegar à casa onde vive com mais três jesuítas, dois egípcios e um libanês, que fica mesmo ao lado da zona da explosão e entre os dois principais hospitais da cidade que foram atingidos. Quando lá chega, percebe que estava inabitável, "sem janelas, sem porta e vidros por todo o lado", explica.
Na rua, recorda, o som das ambulâncias a retirar feridos não parava. Amigos da Cruz Vermelha contaram-lhe mais tarde que os telefones não paravam também, com pessoas a pedir ajuda e à procura de familiares. Na cidade tanto se ouvia choros e gritos, como se parava com o silêncio de quem vagueava ferido sem força para pedir ajuda.
A população corria de um lado para o outro, os carros que não tinham ficado destruídos paravam para levar feridos, e a proteção civil e os bombeiros começavam a tirar escombros. O Líbano estava atordoado, mas os libaneses reagiram de imediato. "Eles são assim, muito parecidos com os portugueses, mas há coisas em que nos ganham aos pontos, são muito mais pragmáticos do que nós."
Em casa de Rui não havia ninguém quando ocorreu a explosão. "Foi a sorte", porque, diz, naquela zona não há família que não tenha pessoas feridas. "Os meus colegas estavam numa conferência noutra zona da cidade, quando ouviram a explosão as pessoas da organização começaram a gritar para se deitarem no chão, porque era um atentado. Foi a sensação que muitas pessoas tiveram", conta.
Aliás, esta foi a primeira explicação a correr pelas ruas, mas, "cada vez mais está posta de lado ao fim deste tempo, fazendo acreditar que o que aconteceu pode ter sido mesmo por desleixo das autoridades". A explicação que vinga é a de que houve um incêndio num armazém e que este terá espoletado a explosão num outro contíguo onde era guardado amónio de hidrogénio, que explodiu com o impacto de uma bomba. A afirmação desta teoria tem levado muitos libaneses à contestação, a saírem à rua e a protestarem contra o governo.
Desde aquela tarde que se dorme mal em Beirute, na casa da Companhia de Jesus, sem janelas, o dia começa pelas cinco da manhã. Desde aquela tarde que as noites são mal dormidas também, apesar do cansaço. Naquela noite de dia 4, Rui acredita mesmo que ninguém tenha dormido em Beirute ou até mesmo no resto do país.
Já era de madrugada quando começou a ver algumas imagens da explosão e do que se tinha passado. A Cruz Vermelha andava de porta em porta a saber quem estava bem e quem precisava de ajuda. A Igreja da Companhia de Jesus em Beirute ficou destruída, a escola também, mas o hospital L'Hotel de Dieu ficou intacto e tem estado na linha da frente a tratar os feridos. O mesmo acontece com o hospital Saint Charles, de uma congregação feminina, porque os hospitais gerais estão sem capacidade para o fazer.
A cidade não para desde aquele dia. Na manhã seguinte, aconteceu o que Rui diz ser "muito bonito e fantástico no meio de uma tragédia destas". "Jovens, universitários, pessoas de todas as igrejas, muita gente, muita mesmo, começaram a dirigir-se para a zona do porto com tudo o que tinham, vassouras e outras coisas, para limpar o que estava destruído."
Era a "sociedade civil a dar resposta sem precisar do Estado para se organizar e agir", comenta. Aliás, neste momento, "as pessoas sentem isso mesmo, que não precisam de um Estado para as substituir. Sentem-se dececionadas com o país e com quem os representa. Dizem-me frequentemente que se sentem abandonados".
Rui é um otimista, mas receia o futuro naquele país. "Há muitas pessoas a quererem sair. Quem tem mais dinheiro não quer ficar no Líbano, só a pandemia tem retardado este movimento de saída. Os mais novos exigem mudanças, querem um sistema político novo e não mais o que existe sustentado na política e na religião."
O jesuíta admite que escolheu o Líbano para o doutoramento pela sua diversidade religiosa, "há muitas igrejas cristãs. O quotidiano religioso aqui é diferente", e foi o que se viu nas ruas, conta. Uma diversidade de religiões e de igrejas unidas a ajudarem-se uns aos outros, mas não é essa proximidade que se vive ao nível das cúpulas políticas e religiosas. "Este contexto trágico veio mostrar como a população, com toda a sua diversidade, se uniu e começou a dar resposta mais cedo do que as organizações do próprio Estado."
Rui espera que o futuro traga ao Líbano uma mudança estrutural. "É isso que as pessoas pedem na rua", "penso que o sistema político atual não conseguirá aguentar muito mais tempo".
"O Líbano tem uma população muito bem formada, Beirute é uma cidade poliglota", contando: "Um libanês pode começar uma conversa em árabe, a meio já está a falar francês, e pode acabar já com palavras em inglês." Ele próprio, confessa, já faz o mesmo, sublinhando que se adaptou lindamente à vida naquele lado do mundo. "O árabe tem-me dado trabalho, mas já me desenrasco, e tanto posso falar com uma pessoa na língua dela como em francês ou em inglês."
Gosta de viver no Líbano, em Beirute, gosta dos libaneses, diz que são parecidos com os portugueses, na forma de estar, de acolher, de comunicar e até no humor. "Por exemplo, para eles, o estar à mesa, não é só para comer, é para encontro entre as pessoas, para falar, partilhar, não sentem que estão a perder tempo. É muito como os portugueses, mas há coisas em que nos batem aos pontos, como o pragmatismo."
Nesta altura, a casa onde vive já está limpa e habitável, mas ainda sem janelas e sem porta. Espera continuar no Líbano para terminar o doutoramento, espera que o país saiba encontrar o seu caminho. E da comunidade internacional espera que esta não fique a olhar para o lado. "Há um país a precisar de ajuda." Em Portugal, a Companhia de Jesus lançou nesta semana uma campanha de angariação de fundos que serão canalizados para várias instituições.