"Pirataria", "caça ao tesouro". EUA usam métodos do velho oeste para conseguir máscaras
Num momento em que todos os países andam desesperados à procura de proteção contra o covid-19, e as encomendas se sucedem à China, maior fornecedor mundial, os Estados Unidos parecem dispostos a recorrer a formas modernas de "pirataria", como denunciaram as autoridades alemãs, para tentar ultrapassar tudo e todos para obter as máscaras. A América confronta-se com a maior taxa de contágio a nível mundial, o maior número de casos, mais do dobro de Espanha ou Itália, e é o terceiro país com mais mortes. Só na cidade de Nova Iorque, a cada hora, morrem 12 pessoas por causa do novo coronavírus.
A mais recente polémica atira os americano para o domínio do "roubo", já que estão a ser acusados ter "confiscado" em Banguecoque 200 mil máscaras que tinham sido encomendadas pela Alemanha à China. As autoridades alemãs asseguram que as máscaras FFP2, especialmente destinadas ao pessoal médico, não chegaram ao destino e o ministro do Interior de Berlim, Andreas Geisel, afirmou que foram presumivelmente desviadas pelos EUA.
Geisel foi duro na reação. Acusou os Estados Unidos de "ato de pirataria moderna", desafiando Trump a respeitar as regras do comércio internacional. "Não é assim que se lida com parceiros transatlânticos", disse e lembrou que "mesmo em tempo de crise global, não deve haver métodos do oeste selvagem".
Já antes, a empresa americana que também fabrica máscaras, a 3M, tinha sido proibida de exportar os seus produtos para outros países, ao abrigo de uma lei da era da guerra da Coreia, invocada pelo presidente Donald Trump.
A acusação do ministro alemão fez soar campainhas noutras latitudes onde se acumulam queixas contra os americanos. Em França, por exemplo, os líderes políticos confessaram andar à luta para conseguir os equipamentos de proteção, já que os americanos os ultrapassaram na compra aos chineses.
A presidente da região Île de France, Valérie Pécresse, comparou a disputa por máscaras com "uma caça ao tesouro". Revelou que encontrou um stock de máscaras disponíveis, mas os americanos "ofereceram três vezes o preço e propuseram pagar adiantado". Resultado: os chineses venderam-lhes, sem pestanejar.
Tudo isto acontece na altura em que literalmente todo o planeta está em contrarrelógio para tentar conter a pandemia de covid-19 que já fez mais de 60 mil mortos. Mas sobretudo há uma multidão à porta das fábricas chinesas, onde todos vão buscar aquele equipamento de proteção, que recentemente foi considerado importante para combater a pandemia.
A corrida às máscaras nos EUA deu-se a partir do momento em que a administração americana recomendou o uso da máscara de proteção, mesmo de fabrico caseiro, enquanto as homologadas não estivessem disponíveis.
Mas sem querer dar o braço a torce, pelo menos para já, o presidente americano continua renitente. Na habitual conferência de imprensa na Casa Branca, e questionado pelos jornalistas por não dar o exemplo e usar a máscara, reiterou: "Não quero usar. É uma recomendação, apenas recomendam. Eu sinto-me bem. Não me vejo a usar uma máscara. Talvez mude de ideias mais tarde".
Rendida agora ao uso das máscaras está a OMS, que na sexta-feira passada veio reconhecer que os asiáticos têm razão quanto ao uso massificado dessa proteção e sobretudo para evitar a disseminação assintomática do vírus. O diretor executivo de emergência da OMS, Mike Ryan, assumiu pela primeira vez que o uso de máscaras caseiras, em algumas circunstâncias, pode ser parte de uma estratégia abrangente para combater o covid-19.
"Não é a solução ideal, mas deve ser considerada no contexto de uma estratégia abrangente de controlo da doença", afirmou. E disse que a OMS vai apoiar os governos que adotarem essa orientação com base na realidade local de transmissão e nos recursos que eles têm à disposição.
A Espanha, que ultrapassou o número de infetados de Itália, é um dos países que está a reconsiderar se o uso de máscara generalizado não será uma boa estratégia para atacar a disseminação o novo coronavírus.
A posição da OMS também está a modelar a posição das autoridades de saúde portuguesas. A diretora-geral da Saúde assumiu esta semana que "se houver evidências novas" sobre o uso de máscaras para combater a pandemia de covid-19 serão feitas alterações nas recomendações. Do uso apenas para os profissionais de saúde e pessoas infetadas, Graça Freitas evoluiu para a ideia que poderá ser importante o uso desta proteção, mas advertiu que "nenhuma medida isolada é milagrosa" e, como tal, é preciso manter o isolamento social.
Mas há outros países europeus onde o uso da máscara e já obrigatório em determinadas circunstâncias. Na Áustria passou a sê-lo em ambientes públicos e supermercados, que estão obrigados a fornecê-los aos clientes.
A Eslovénia, Eslováquia e República Checa impuseram o uso da máscara ou de alguma proteção para tapar a boca e nariz e as multas são pesadas para quem desrespeitar e podem chegar aos 360 euros. Aliás, os checos foram os primeiros país do ocidente a tornar a medida obrigatória e tem conseguido obter resultados.
Os ocidentais sempre olharam com algum desdém o hábito dos asiáticos usaram máscaras de proteção mesmo for a dos respetivos países. Mas em plena pandemia, um cientista chinês já tinha lançado o aviso: o maior erro do Ocidente é não aceitar o uso universal de máscaras.
E os dados têm comprovado de alguma maneira isso. Basta olhar para países, como a Coreia do Sul, Singapura, Japão e ainda a região de Hong Kong, que adotaram esta medida desde o início da epidemia e que estão a conseguir controlar o surto. Ou para os números de Coreia, Singapura ou Hong Kong.
Ao DN, Ricardo Mexia, o presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Saúde Pública, garantiu há dias que, neste momento, ainda não há "evidências robustas que nos façam mudar de posição, mas estamos a acompanhar a realidade evolutiva da doença noutros países, como é o caso da República Checa".
Por outro lado, defendeu , "se as pessoas tiverem máscaras e se esta for bem utilizada, não é nociva, mas, nesta época, temos de ser mais flexíveis", concluindo: "Mesmo que seja decidido o uso generalizado, sabe-se que não há material suficiente no mercado para a totalidade da população. Esta é a verdade não só em Portugal mas em muitos países também. E não se pode estar a tomar medidas que depois não podemos aplicar."
Na sua recomendação, o Conselho de Escolas Médicas referia que este tipo de material de proteção teria de ser providenciado para que a população tivesse direito ao seu acesso no mercado. Mas o problema é a sua escassez. A China tinha de quintiplicar a sua produção diária, de 20 milhões para cem milhões de máscaras, para conseguir responder à procura mundial.
A escassez de máscaras conjugada com o aumento exponencial de casos em todo o mundo está a despertar o engenho humano. Multiplica-se a oferta de máscaras caseiras, feitas de materiais alternativos às certificadas. E os artesãos têm tido neste campo um papel fundamental.
O DN ouviu um infeciologista, Jaime Nina, sobre esta alternativa, que concluiu: "Se pudermos diminuir a dispersão do vírus, desde o escafandro até uma echarpe ou cachecol colocados em frente às vias respiratórias, estamos a diminuir imenso a quantidade de vírus que andam no ar". Ou seja, não tem dúvidas que que as máscaras de fabrico caseiro são melhores do que nada e que protegem.