"Para mim Mujica não é santo, mas pôs o Uruguai no centro do mundo"
O seu monólogo, em tom humorístico, começa por dizer que o Uruguai chegou a ser "a Suíça da América", depois foi conhecido como "a Casinha de Prata" e que agora é "a Casa de Banho do Mercosul", o que não é uma imagem muito bonita...
A Casa de Banho do Mercosul [risos]. Digo isso não porque assim o seja, mas porque é o que os países grandes da América Latina parecem pensar. É o que os grandes do Mercosul, o Brasil e a Argentina acham, que o Uruguai não conta nada.
Mas ao mesmo tempo olha-se para o Uruguai e vê-se que tem um nível de vida superior aos do Brasil e da Argentina, que também os bate na educação e agora até saíram uns dados a dizer que é o menos corrupto da América Latina. É um país pequeno, com 3,5 milhões de habitantes, mas pode-se dizer que é um caso de sucesso, pelo menos regional?
Sim. É um país que teve uma história política endiabrada. Teve partidos tradicionais que lutavam entre eles e se matavam até ao início do século XX. Depois veio um senhor chamado Battle, José Battle, que foi um presidente muito democrático, que tirou a igreja do poder e do Estado e instalou a educação pública gratuita para todos. O Uruguai foi também o primeiro país da América Latina em que as mulheres votaram. É um país democraticamente muito forte. E se teve uma ditadura foi porque todos os países da América Latina deviam ter uma ditadura e por isso teve-a. Mas sim, é um país muito democrático, ao qual custa muito crescer economicamente porque tem uma série de monstros à sua volta. É há hoje uma coisa chamada Mercosul que queria ser como a União Europeia mas não funciona. É justa para alguns e para outros não, por isso é que digo que é somos a casa de banho.
Como uruguaio não vê quaisquer vantagens no Mercosul?
O Uruguai é um país de serviços, um país que vive do turismo e também de vender gado, mas não consegue crescer mais só com isso. Tem apenas 3,5 milhões de pessoas, uma população que não cresce, e isso é um problema para poder ter um poder económico relevante. Tem algumas vantagens competitivas, como poder ter um porto em Montevidéu com um canal importante, que não tem Buenos Aires, para onde vão navios de grande porte. Mas é um país caro, para muitas pessoas - para nós é - e esse Mercosul não funciona como deveria funcionar, ou seja um toma lá dá cá, uma coisa igualitária.
Esse incómodo do Uruguai perante os vizinhos gigantes existe desde as suas origens, afinal nasceu de uma guerra entre o Brasil já independente e a futura Argentina e é um compromisso entre os dois, pois ninguém conseguia vencer.
Claro. Quando Napoleão decide invadir Portugal mente ao governo espanhol dizendo que só quer cruzar Espanha. Os espanhóis dizem-lhe que passe e quando passa decide ficar lá também. E domina, faz abdicar o rei de Espanha e é então, na Banda Oriental, depois chamada Uruguai, que se pensa: mas porquê respeitar um rei espanhol que já não reina? Vamos mas é ser independentes [risos]. E logo começa uma guerra muito fratricida, em que estiveram envolvidos os portugueses, os ingleses, os espanhóis, os brasileiros de então, depois Buenos Aires.
Havia nesse início de século XIX um sentimento independentista na banda oriental, no que é o Uruguai hoje?
Sim, mas Artigas, José Artigas, e até há monumentos a ele, é espanhol, de família das Ilhas Canárias, e não queria um país chamado Uruguai ou Banda Oriental. Ele queria a união de todas as províncias que hoje são Argentina, menos Buenos Aires, toda a Argentina e a Banda Oriental a ser uma só nação. Fracassou, venceram-no, atraiçoaram-no e foi para o Paraguai. E quando o Uruguai se tornou independente foi porque era necessário uma república instalada de alguma forma com empurrão dos ingleses para manter um tampão entre o Brasil e Buenos Aires e o que viria a ser a Argentina.
Artigas mantém-se como um herói nacional uruguaio?
É um herói nacional mas foi-se embora para o Paraguai e nunca mais voltou. Morreu lá. É curioso que Artigas é o herói de todos os partidos políticos, de direita e esquerda, é herói dos militares e é dos revolucionários tupamaros, é de todos [risos]. Cada um o interpreta como quer, permite todo este leque de lealdades. Era um grande pensador, mas conseguiu menos do que queria: uma República Oriental do Uruguai, pequena em termos de pessoas mas que em termos de território é maior do que Holanda, Bélgica e Luxemburgo juntos ou até do que Portugal. Está é quase toda a gente na capital e depois no interior há poucas pessoas. É um país enorme com muito latifundiários, com dinheiro, que não o exploram como deviam.
O Uruguai também é um país com uma forte identidade cultural. Estão sempre a disputar com a Argentina a paternidade do tango, qual tem a melhor carne do mundo, ou os vinhos de maior qualidade. É um país que tem muito das quais se pode orgulhar, mesmo que ironize sobre elas quando está em palco, como agora em Lisboa?
La Cumparsita, que é como o hino nacional, o melhor tango, é do Uruguai. Gardel, que nasceu em Tacuarembó, é uruguaio, mesmo que a Argentina o tenha roubado....
Tem certeza disso, Carlos Gardel não é nascido em França e chegado criança à Argentina, onde faz carreira?
Não, não há dúvidas. Há documentos, é uruguaio, por muito que o neguem. Também o doce de leite é do Uruguai, a carne também. Depois há os escritores: Juan Carlos Onetti, Mario Benedetti, Eduardo Galeano, pessoas que têm muito forte identificação com o nosso país. Há uma influência intelectual muito grande que vem da Europa.
É uma sociedade muito europeia. Os uruguaios descendem de espanhóis, de italianos, também um pouco de portugueses...
Há 250 anos eliminou-se toda a possibilidade de uma população autóctone. Mataram-se todos os índios. Sempre se diz que o Uruguai é o país mais europeu da América e é verdade - quase todos somos descendentes de europeus.
Um país mais europeu até do que a Argentina ou o Chile?
Claro. Somos descendentes de espanhóis, portugueses, ingleses. Nem falo dos italianos. Temos uma comunidade enorme de italianos.
Tem alguns negros, certo?
Há alguns negros descendentes dos escravos que vieram para o Uruguai, muitos deles fugidos, e que combateram a escravatura. Fomos um dos primeiros países a abolir a escravatura, em 1830, muito antes do Brasil. Temos uma grande tradição de candomblé com raízes africanas.
Culturalmente, o Uruguai também se destaca na América Latina?
Sim, culturalmente é um país muito preparado por causa da educação grátis. Educação primária, secundária e universitária. Vai-se para a faculdade e não se paga, é grátis.
Toda essa intelectualidade facilita ser artista e ator no Uruguai? Há público?
Há temporadas, de junho, julho, agosto, inverno lá, verão cá, em que há mais de 100 espetáculos de teatro em exibição. É uma barbaridade [risos]. Se vivemos disso? Não! Porque não temos produção de cinema, televisão e ficção porque temos uma grande dependência da Argentina, que nos entra por todo o lado e estamos aí a perder todas as batalhas. Claro que há exceções, como La noche de 2 años, filme inspirado nos revolucionários como Pepe Musica e que foi candidato aos Goya, mas são isso mesmo, exceções. Não tendo televisão e cinema, a possibilidade de viver só do teatro é complicada.
A tentação de atravessar o Rio da Prata e ir para a Argentina é grande para um artista uruguaio?
É enorme. É menos de uma hora de avião até Buenos Aires. Há muitos atores que foram para lá. Também ajuda ter um idioma quase igual. Salvo algumas palavras é igual, falamos como eles.
Do ponto de vista político, tirando o parêntesis da ditadura de 1973-1985, há liberdade total de criação? Pode um ator criticar abertamente os políticos, fazer humor com eles?
Claro. Podes fazer o que quiseres, depois tens de aguentar o que digam. E é bom que assim seja porque passámos por 12 anos de proibição e morte. Houve muitos desaparecidos no Uruguai. Há hoje liberdade absoluta para discutir o que incomoda, dizer que não se está de acordo. Eu já o disse e ninguém vem-me ameaçar depois. Isso é uma das coisas boas de uma democracia real, poderes defender-te como queres.
Pepe Mujica, o ex-presidente José Mujica, antigo guerrilheiro, é uma celebridade aqui na Europa. É tão mal modesto que ficou conhecido como o presidente mais pobre do mundo. Sei que votou nele, mas para um uruguaio não é uma figura assim tão santa como parece visto de fora?
Para mim não é santo [risos]. Tenho algumas reservas, mas reconheço que pôs o Uruguai no centro das atenções mundiais. Não creio que haja muitos políticos estrangeiros que encham um estádio como aconteceu no México há dois anos. Tenho de reconhecer isso. É verdade, vive como professa. Numa casa muito modesta, com os seus cães e as suas plantas. Isso não é mentira. Podemos discutir se faz isso porque crê que todos deveriam viver assim. Eu não quero viver assim plantando rosas [risos] Não creio que seja um tipo com más intenções. Fez tudo para tentar mudar o país e às vezes engana-se e outras não, mas caramba, neste mundo todos os políticos se enganam. Quanto à cultura, não é o seu ponto forte. A mim o que interessa é mesmo a cultura.
No palco falou de um pai que não perdia um jogo do Nacional de Montevidéu. Qual é o peso do futebol para os uruguaios, já por duas vezes campeões mundiais?
Muito grande! Muitíssimo! Todo! [risos] É um mistério enorme o futebol no Uruguai, que se sagrou campeão do mundo em 1930 em casa e em 1950 no Brasil. Sim, ganhou no Maracanã ganham ao Brasil, a maior potência do futebol. Somos um país onde o futebol é tudo. Eu já nem ligo muito ao meu clube mas no Mundial fui contagiado pela humildade dos jogadores e a entrega. Já não falo de Suárez ou de Cavani, estrelas, falo de Torreira, o pequenino que joga no Arsenal entre os gigantes ingleses e que quando era miúdo nem dinheiro tinha para uma bola. E cada vez que esta seleção uruguaia ganha à Argentina fico muito feliz [risos].