Organização Mundial de Saúde na linha de fogo
Uma guerra fria feita de palavras é o que se pode chamar à troca de argumentos entre vários governos e a Organização Mundial de Saúde (OMS). Em tempo de pandemia da covid-19, Donald Trump acusa esta agência das Nações Unidas de encobrir alegadas responsabilidades chinesas pela propagação da doença e ameaça retirar-lhe o contributo financeiro devido pelos Estados Unidos enquanto membro. Mas se é a voz mais ruidosa, Trump não está sozinho. No vizinho Canadá, o ministro-sombra da Saúde, o conservador Matt Jeneroux, acusou a OMS de "ter sido demasiado lenta a tomar medidas concretas (o estado de pandemia só foi declarado a 11 de Março), o que conduziu, por sua vez, à resposta tardia de cada Estado".
Neste coro de imprecações, de tom variado, é frequentemente utilizado um tweet datado de 14 de janeiro, em que a OMS escreve na sua conta: "Investigações preliminares levadas a cabo pelas autoridades chinesas não encontraram uma clara evidência de transmissão do vírus entre pessoas". No entanto, esta mensagem foi publicada apenas uma semana depois do executivo chinês ter assumido que havia uma relação entre o aparecimento do vírus desconhecido e o aumento substancial dos casos de pneumonia na província de Wuhan. Na mesma linha de argumentação usada pelos que contestam a OMS, é invocada uma atitude supostamente errática em relação à importância do uso de máscara. A 6 de abril, depois de semanas a insistir que essa medida só deveria ser aplicada a grupos de risco, a agência reconheceu que ela deveria, afinal, estender-se a toda a população, nomeadamente em espaços fechados. Em que é que ficamos? - perguntamo-nos.
Ante tais críticas, a OMS, dirigida desde 2017 pelo etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus (ele próprio um pesquisador internacionalmente reconhecido no estudo da malária e antigo ministro da Saúde e dos Negócios Estrangeiros do seu país), admite não estar isenta de responsabilidades, pelo menos ao nível da estratégia de comunicação. Reunida em assembleia na passada semana, comprometeu-se a "iniciar, no momento oportuno mas a curto prazo, e em consulta com os Estados membros, um processo imparcial, independente e exaustivo da gestão da pandemia." Isabel Craveiro, investigadora auxiliar e docente no Departamento de Saúde Pública e Bioestatística do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa (instituição que, desde há 10 anos, é centro colaborador da OMS), comenta: "Não quero imaginar o que seja estar sob esta pressão de fornecer diretrizes de comportamento a um mundo sedento de respostas. A expectativa é gigantesca e ainda sabemos muito pouco sobre as características e comportamento deste vírus."
Esta não é, todavia, a primeira vez que a OMS está envolvida em fogo cruzado com as autoridades sanitárias de vários países. Em 2014, sob a direção da chinesa Margaret Chan, a resposta (ou a falta dela) à expansão do vírus do Ébola na África Ocidental desencadeou forte polémica, em que várias vozes se levantaram em favor da dissolução da agência e da sua substituição por um novo organismo capaz de assegurar realmente uma segurança sanitária global.
Não é de negligenciar, todavia, o papel que os jogos políticos também desempenham nestes "duelos". Tal como Trump, muitos foram os líderes que, em determinado momento, não gostaram de intervenções que diziam respeito aos seus países: No princípio dos anos 60, o General Franco insurgiu-se contra o relatório que punha em evidência o elevado número de casos de poliomielite em Espanha, numa época em que a respetiva vacina já estava em circulação.
Quem trabalha no Instituto de Higiene e Medicina Tropical (hoje integrado na Universidade Nova de Lisboa, mas fundado em 1902), reconhecido internacionalmente pela excelência na pesquisa de doenças ditas tropicais, nomeadamente na profilaxia da malária, sabe qual é a real importância do trabalho de terreno da OMS. Isabel Craveiro sublinha: "Nos últimos 70 anos, apesar das sucessivas mudanças de contextos internacionais, nunca deixou de ser um ator determinante na área da Saúde. As decisões cabem naturalmente aos Estados, mas o seu papel na definição de políticas tem vindo a ser fundamental". Quanto à colaboração do IHMT com a agência, refere: "Somos centro colaborador há 10 anos mas a relação é, na verdade, muito mais antiga." Em foco está naturalmente "o trabalho muito profundo que a instituição portuguesa e seus investigadores desenvolvem há décadas nos PALOP e em Timor-Leste."
Um trabalho que se faz tanto no laboratório como no gabinete. Isabel Craveiro, como coordenadora do Mestrado em Saúde Pública e Desenvolvimento, realça a importância da colaboração com a OMS quer "ao nível da formação e capacitação de Recursos Humanos nesta área tão sensível, quer na delineação de políticas públicas." Em foco estão os numerosos alunos oriundos dos países de língua portuguesa que, em algum momento, frequentaram os cursos pós-graduados da Nova. "Quando fazemos o follow up deles, não podemos deixar de nos sentir orgulhosos já que é frequente vê-los em cargos de decisão política nos seus países ou mesmo em organismos internacionais." E conclui: "Esse impacto é extremamente importante para nós e ainda mais para os objetivos da OMS."
A OMS descende em linha direta da Organização homóloga criada no âmbito da Sociedade das Nações (fundada em 1919, em plena pandemia da gripe espanhola ou pneumónica). Não chegou a funcionar durante duas décadas mas teve como principais objetivos o combate e erradicação de doenças altamente mortíferas como a lepra, malária e febre amarela, com uma forte campanha internacional para exterminar os mosquitos transmissores destas duas últimas doenças. Para surpresa de muitos conseguiu sensibilizar o governo da recém-formada União Soviética para a importância de uma campanha de combate ao tifo.
A OMS, por sua vez, foi fundada a 7 de abril de 1948, no âmbito das Nações Unidas, tal como a UNESCO ou a UNICEF. Sem perder de vista a erradicação de doenças como as já referidas, assumiu uma visão mais abrangente da saúde, considerando-a um direito universal e definindo-a como um «estado de completo bem-estar físico, mental e social, não consistindo somente da ausência de uma doença ou enfermidade.» Hoje é composta por 194 Estados membros e 5 observadores: Palestina, Vaticano, Malta, Taipé chinesa e Formosa.
Para além de coordenar os esforços internacionais para controlar surtos de doenças, a OMS também patrocina programas de prevenção. Apoia o desenvolvimento e distribuição de vacinas seguras e eficazes, diagnósticos farmacêuticos e medicamentos através do Programa Ampliado de Imunização. E não têm sido poucas as vitórias históricas. Depois de mais de 20 anos de luta contra a varíola (essa doença que, desde a Antiguidade, matou ou desfigurou com a mesma violência reis e camponeses), a OMS declarou em 1980 que esta fora, finalmente erradicada. Tornava-se, assim, a primeira doença grave a ser erradicada pelo esforço humano, mais de 200 anos após a criação da vacina.
Na perspectiva de encarar a Saúde como um estado de bem-estar físico, a OMS empenha-se também em realizar diversas campanhas preventivas como as que apostam na redução do consumo de tabaco ou de sal na cozinha. Em 2017, ao apurar que cerca de 41 milhões de crianças menores de 5 anos são obesas ou estão acima do peso recomendado, a organização considerou o problema uma epidemia global e lançou um conjunto de novas diretrizes a que chamou Estratégia Global de Dieta, Exercício Físico e Saúde.
Os especialistas que colaboram com a OMS efetuam ainda pesquisa em áreas disciplinares como as doenças tropicais e investem na educação para a saúde em países em desenvolvimento através da rede HINARI, que possibilita o acesso eletrónico gratuito ou a baixo custo a uma das maiores coleções do mundo da literatura biomédica e de Saúde.
Enquanto agência especializada das Nações Unidas, cabe-lhe ainda supervisionar a correta aplicação do Regulamento Sanitário Internacional e publicar um conjunto de instrumentos de trabalho como a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), a Classificação Internacional de Funcionalidade e Incapacidade e Saúde ou a Classificação Internacional de Intervenções em Saúde. Publicar ainda um Relatório Mundial de Saúde. Não obstante todo este trabalho de décadas, os próximos meses serão cruciais. Para o nosso futuro e o da OMS.