Oh là là! A França em pane, a França em marcha!
Talvez os leitores portugueses não se tenham dado conta dos recentes resultados da mais essencial eleição presidencial francesa. Depois de Ridha (2013), tunisino, de António Teixeira (2014), português, de Djibril (2015), senegalês, e de Mickael (2016), francês, este ano a eleição foi ganha, como se soube nesta quinta-feira, por Sami Bouattour, tunisino. Em cinco anos, quatro estrangeiros, na verdade franceses de várias origens, ganharam o prémio da Melhor Baguete de Paris! Sami foi empossado na função de fabricante do pão para o palácio presidencial do Eliseu, durante um ano. Vitória honorífica, como levar à lapela a medalha da Legião de Honra. Mas a honra é muito mais funda, porque é de souche, de tronco e raiz. Ser o melhor padeiro de França é identificar-se com a mais gaulesa das imagem: bigodinho à ator Raimu (olhem, justamente no filme A Mulher do Padeiro, de 1938), boina à escultor Rodin e o meio metro da baguete levado no sovaco.
A verdadeira França estará, pois, durante o mandato de um ano, na Boulangerie Brun, de um padeiro tunisino, Rua Tolbiac, Paris. Essa, a linha de fundo que leva o país, como a carruagem do metro que passa sob a beleza de Marie-France Pisier. Vocês sabem, ela está na rua, à entrada das escadas da estação Tolbiac, e chove - velho filme de François Truffaut, O Amor em Fuga, 1978. A personagem dela, Collete, reencontrara o amor antigo, mas para se dar conta de que a vida são páginas folheadas de um livro... O livro da França faz-se com passados que embarcam, ali, na linha 7; e, adiante, com bifurcações, todas levando a outras, construindo a teia poderosa que é um país, ainda mais intrincada do que o mapa do metropolitano de Paris. O som quente e estaladiço de uma baguete poderá ser inaudível para alguns, mas ele é mais forte do que o estardalhaço de uma campanha eleitoral.
Estas presidenciais 2017, falo agora das eleições políticas, têm estado cheias de explosões, umas fátuas, outras talvez anunciadoras, mas ainda não sabemos de quê. Chegámos à véspera de conhecer o próximo ou próxima presidente de França. Exigiria a prudência que estivéssemos em dúvida, mas as sondagens dão todas Emmanuel Macron acima dos 60% e a subir, depois da lastimável atuação de Marine Le Pen no único debate televisivo a dois. Até Christophe Jakubyszyn, chefe do serviço político da TFI, e um dos dois jornalistas que coordenaram o debate, disse ontem que era desnecessário fazer suspense: o ganhador estava decidido, e é Emmanuel Macron.
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E digo "até", não para buscar um argumento de autoridade (autoridade que Jakubyszyn e a colega da France 2 mostraram ter pouca durante o debate) mas para sublinhar que um jornalista francês corre maior risco do que um periférico estrangeiro em adiantar um resultado eleitoral. Este, muito provavelmente, dará a vitória a Macron. Fica por saber, que é o que mais interessa agora, o tamanho dessa vitória e o que ela pode significar. Vale a pena relembrar como chegámos aqui.
A França gosta de baralhar calendários. A Revolução Francesa, além da presunção de pôr o mundo e a história a começar por ela - República, Ano I -, armou-se em poeta e chamou, por exemplo, Brumaire ao mês das brumas, lá pelo outono, e Thermidor ao mês da caloraça de julho-agosto, responsável talvez pelas cabeças quentes do Terror. Desta vez, depois da revolução que foi o dia da primeira volta - com as cabeças guilhotinadas de ambos candidatos dos partidos tradicionais, o gaulista e o socialista -, a esse domingo, 23 de abril de 2017, os franceses chamam agora o 42 de abril. Explicação: na primeira volta das presidenciais de 2002, a 21 de abril, só caiu o socialista, o gaulista Chirac ficou para a final com Jean-Marie Le Pen, pai de Marine. Ora, este ano, com a filha, foi dupla a derrota (nem socialista Hamon, nem gaulista Fillon) e a segunda volta ficou sem nenhum dos dois partidos do sistema tradicional. Daí multiplicar-se por dois a data antiga (21 de abril) e chegar-se ao resultado bizarro de 42 de abril...
Há 15 anos, a surpresa resolveu-se facilmente. Um sobressalto republicano colocou o país atrás de Chirac e este, com mais de 80% dos votos, esmagou Le Pen. Acontece, porém, que 2017 é muito depois do que esses 15 anos sugerem. Desde logo a derrocada do PS (6%, valores socialistas que temos de recuar à década de 1960 para reencontrar) e do partido da direita (LR) - como vão eles reorganizar-se depois do falhanço dos seus presidenciáveis? É que o ciclo político eleitoral francês não se esgota no novo inquilino do Eliseu.
Daqui a seis semanas há eleições legislativas, também com duas voltas. Dizer que estas são duas não é pormenor menor. Quer dizer que na primeira haverá naturais recomposições e, na segunda, alianças. Isso jogou muito no passado, prejudicando a FN de Le Pen (que só tem dois deputados no atual Parlamento) - como será agora, quando ela parece ter deixado de ser pestífera? Para medirmos o tamanho das mudanças possíveis: nos 577 deputados, há hoje 331 socialistas. Em junho podem ser 20.
Emmanuel Macron pensa na dinâmica de vitória para as legislativas trazida das presidenciais. Assim aconteceu, com o PS e o LR, quando os seus candidatos presidenciais ganharam. Com a distância tão curta entre as duas eleições, os franceses preferem pôr os ovos no mesmo cesto. Macron aposta nisso, quer o seu movimento En Marche!, que criou há um ano, a ocupar o centro. Não pensa depenicar à direita, LR, e à esquerda, PS, mas comer sofregamente - essa uma das razões para ficar atento ao tamanho da sua vitória. Com menos de 60%, ele fica abaixo das expectativas e menos atrativo para os trânsfugas dos outros partidos.
Ontem, Macron voltou a pôr condições para os que, vindos dos outros partidos, quiserem aliar-se: "Não peço a ninguém para rasgar antiga carta de militante, a título pessoal podem guardar os seus compromissos", disse à influente rádio RTL. Mas o ainda só candidato presidencial exige que esses, nas legislativas, têm de estar na "maioria presidencial". E exemplificou com Manuel Valls, ex-primeiro-ministro socialista que apelou desde a primeira volta a votar nele: "Se [Valls] se apresenta como candidato numa circunscrição terá contra ele um candidato do En Marche!"
Traduzindo, Macron faz questão em mostrar-se intransigente. Ele percebeu que o sucesso da surpresa que ele é - há um ano não tinha partido, nunca antes tinha sido eleito e, aos 39 anos vai talvez ser presidente - se baseia num cortar a direito que poucos tinham suspeitado nele. Na campanha, mostrou-o. Na já famosa discussão com os grevistas da Whirlpool (a fábrica vai ser deslocalizada para a Polónia), ele não fez uma única promessa, apesar dos assobios... Talvez o tivesse feito por cálculo político: esse brio foi percebido pela opinião pública e ouviu os primeiros elogios dos jornais.
Mas a maior demonstração da pertinácia de Macron, apesar de bem visível, tem sido pouco falada. Nos seus comícios, a presença de bandeiras da União Europeia é constante e forte. É mais um ovo de Colombo, simples mas de que ninguém se lembrou - e não sem razão, porque, à partida, a Europa não é hoje uma causa popular. Só que é uma condição da nossa sobrevivência, insistiu o candidato. Aquele tecido azul com estrelinhas - hoje na Europa tão pouco visto fora dos mastros oficiais -, Macron transformou numa causa. Se a adversária é soberanista e diz detestar a economia de mercado, o candidato de En Marche! Macron assume o desafio, veste-se com a bandeira de um mercado comum e combate a ideia de se voltar às fronteiras como pretensas protetoras. A França é grande, gargareja Le Pen. Sim, mas não é suficiente, responde Macron.
E com essa lógica económica ele pode passar à discussão da emigração, onde já não tem o à-vontade com que discute o desemprego e as empresas, ganhou uma coerência. O extremismo de Marine Le Pen contra a emigração, leva-a a medidas avulsas que não são aplicáveis na Europa 2017 e a declarações de nacionalismo bacoco que são desmentidas até pelos prémios de melhores baguetes. Já Paul Claudel dizia de Maurice Barrès, o pai do nacionalismo francês que levou à perigosa década de 1930, que ele pertencia àqueles "enraizados em vasos de flores." Franceses de souche da tanga. Emmanuel Macron não é poeta, não saberia fazer frases tão assassinas. Mas é uma esperança ser um campeão da economia de mercado, em nome das leis desta, a defender hoje a democracia. Não chegou a esta por ideias vagas...
Do outro lado, a derrotada. Não se sabe ainda é se suficientemente derrotada para não voltar em 2022. Marine Le Pen é mais Le Pen do que o seu cartaz diz (pois o nome pestífero, aí, e só aí, foi apagado). Ser Le Pen é um estado de alma que se agarrou à sociedade francesa de tal forma que os poderosos democratas antigos, o PS e o LR, não souberam dar cabo dele.
Estas eleições foram, por enquanto, mais um pequeno passo em frente do lepenismo. Desta vez, chegaram à final, e à pala disso, até arranjaram um gaulista que se prestou a uma aliança, vários dirigentes da direita que deram o salto para a extrema e, na extrema-esquerda, quem, como Mélenchon, por oportunismo para as legislativas, relativizasse o mal. Mas esta campanha serviu também para mostrar o que é esta família, política e tout court.
A primeira vez que Emmanuel Macron esteve num debate televisivo, há dois anos, foi como ministro da Economia. À sua frente, Florian Philippot, braço direito de Marine e sucessor dela se a derrota de amanhã for demasiado forte. Discutiu-se economia e, no fim, Philippot exibiu um frasquinho com medicamentos: "São compridos para si, bons para acalmar." Agora, no debate de Macron com Marine, nos derradeiros minutos, ela disse: "Seria bom que não se venha a saber tarde de mais que você tem uma conta nas Bahamas..." E depois desse debate, Gilbert Collard, um dos dois únicos deputados FN, fez este balanço: "Os insultos foram de ambos os lados, mas como Macron tem uma voz feminina, as suas maldades de costureira ouviram-se menos."
Amanhã saber-se-á se os lepenistas foram ouvidos como se devia.
Em Paris