"Não acredito que Lula seja um santo. Mas prova em relação ao crime cometido... isso não foi encontrado"

Entrevista com Carlos Milani, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que a convite do IPRI- Universidade Nova de Lisboa veio a Portugal falar do impacto das eleições brasileiras na política externa.

Em 2010, último ano de Lula da Silva enquanto presidente, o Brasil cresceu 7,5%. O país era visto como uma potência em ascensão, uma das letras fortes dos BRIC. Hoje a imagem do Brasil é completamente diferente, em crise económica e política, e Lula até está preso por corrupção. O que mudou no Brasil nestes anos?

Mudou muito no Brasil mas também no mundo. Se pararmos para pensar na situação internacional do Brasil temos de levar em consideração, do meu ponto de vista, estas duas dimensões. O que ocorre fora do Brasil, o que está a acontecer fora no sistema internacional, na América Latina em especial, etc., mas também o que ocorreu dentro do Brasil.

E o que é mais importante, o que ocorreu fora ou o que ocorreu dentro do Brasil?

Os dois elementos são muito importantes. Porque quando paramos para pensar na transição de Lula para Dilma, por exemplo, e há análises que tendem a fazer exclusivamente críticas ao governo da presidente deposta, acho que houve uma série de problemas, mas também houve avanços importantes. Foi Dilma quem fez a nossa comissão para a liberdade, por exemplo. Nós fomos o único país da América do Sul, antiga ditadura militar, a não ter tido uma justiça de transição. Até a África do Sul, do outro lado do Atlântico, teve uma justiça de transição. O Brasil não teve. Isso requeria muita coragem diante do pacto que havia sido celebrado entre civis e militares na transição democrática brasileira de instaurar uma comissão nacional da liberdade e não uma comissão nacional de justiça porque já tinha sido negociado e pactuado entre as elites.

Essa coragem foi Dilma que teve. Considero isso um aspeto positivo. Mas ela efetivamente não gozava das mesmas capacidades de articulação políticas, de retórica, de carisma, não tinha a mesma trajetória do presidente Lula. Mas ela também herda uma economia política internacional muito mais adversa. A crise financeira, que não tinha chegado no Brasil sob a presidência de Lula, até 2010, começa a chegar no Brasil. O preço das commodities já estava esgotado no Brasil. O Brasil já não conseguia mais surfar, como dizemos no Brasil, nas grandes ondas dos preços vantajosos das commodities que exporta muito, ou seja minérios, produtos agrícolas, e ela então teve de fazer face a uma série de limitações no externo diante de uma conjuntura doméstica muito problemática, porque na transição de Lula para Dilma, no Congresso Nacional, aumentou a fragmentação política. O número de partidos presentes no Congresso Nacional chegou a 28. E ela teve de fazer uma nova coligação de governo, a montagem institucional do nosso chamado presidencialismo de coalizão, ou coligação como se diz em Portugal. Embora seja um sistema presidencialista, o presidente não governa sem o Parlamento. Isso é uma democracia e é muito saudável. Mas isso significa que o presidente tem de montar coalizões.

Portanto, Dilma com menos capacidades que Lula e com mais dificuldades externas e internas...

Muito mais dificuldades. Ela passou por momentos muito mais difíceis e não tinha as mesmas capacidades. Então isso, em termos muito sintéticos, poderia resumir essa transição de Lula para Dilma em 2010/2011. Mas a grande crise brasileira eclode com a campanha eleitoral de 2014. Não que seja o pontapé inicial de tudo mas é um momento muito importante porque o Partido dos Trabalhadores consegue uma vitória justa, mas uma vitória - a quarta vitória consecutiva. Em democracia a existência de um voto é suficiente e segundo as regras democráticas quem perdeu a eleição tem de reconhecer a derrota. E foi a primeira vez, no regime democrático brasileiro pós-Constituição de 1988, que um candidato derrotado não reconheceu o resultado das eleições e inclusive, no Tribunal Superior Eleitoral, fez um questionamento sobre o resultado. Isso, associado a um Parlamento muito mais fragmentado, e a todo o sistema político corrompido no Brasil, tornou a relação entre a chefe de governo/chefe de Estado, Dilma Rousseff, e o Congresso Nacional uma relação altamente conflituosa.

É eleito para a presidência do Congresso Nacional, Eduardo Cunha que fazia parte de todas essas negociatas e que passou a conspirar com uma série de outros contra o governo de Dilma Rousseff. Então o segundo mandato de Dilma Rousseff foi inviabilizado no dia seguinte à sua eleição. O que tornou o segundo mandato de Dilma Rousseff tremendamente problemático. E culminou, como todos sabem, noimpeachment/golpe (dependendo da visão de cada um) muito controverso. Controverso a tal ponto que o Congresso Nacional no momento final do julgamento de Dilma Rousseff, sob a presidência do então presidente do Supremo Tribunal Federal, chegou a um arranjo, não previsto na lei, tal o constrangimento dos presentes, no sentido de que ela perdia o seu mandato, mas não perdia os seus direitos políticos. Ao passo que a lei do impeachment é muito clara: quando o chefe de governo, chefe de Estado, presidente é impeachado, como dizemos no Brasil, ele também perde os direitos políticos por um período determinado - oito anos, se não me falha a memória. O que se decidiu foi uma criação brasileira naquele momento, não se seguiu a lei no estrito senso, mas com um aval do Senado reunido com a presidência do STS.

E as dificuldades externas?

Quanto à crise económica, que se junta à política, tem que ver com a chegada da crise financeira, o esgotamento do preço do petróleo, o esgotamento do próprio modelo de desenvolvimento brasileiro, de inserção regional e global - por exemplo nas negociações comerciais multilaterais o Brasil sempre apostou no multilatelarismo e no GATT e depois na OMC. O mundo hoje é outro. É um mundo de acordos bilaterais, de acordos inter-regionais, e o Brasil não surfou muito bem nessa nova política internacional do comércio. Esse é todo um conjunto de fatores e variáveis muito infelizes do ponto de vista económico para aquilo que vinha sendo desenhado como estratégia de política internacional, mas a isso se associa esta crise política do não reconhecimento da vitória de Dilma Rousseff nas eleições

Mas a destituição de Dilma na verdade não resolve nada, pois a economia continua mal, mesmo que volte a haver algum crescimento já com Michel Temer na presidência. E politicamente também se agudizam as tensões.

Não resolve nada. Temer assume o governo plenamente a partir de final de agosto de 2016, e nesse momento se instaura uma polarização crescente da sociedade brasileira entre aqueles que defendem que aquilo não foi um processo de impeachment, foi um golpe contra um projeto político e social essencial à democracia brasileira, com a vitória de quatro momentos eleitorais consecutivos do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais, e um antipetismo gigantesco associado a um papel muito importante dos mass media no Brasil, sobretudo o grupo Globo. O grande coordenador mediático foi mesmo o grupo Globo, que é uma concessão pública mas que funciona como um ator muito autónomo na política e na sociedade brasileira, com uma capilarização muito grande. Em qualquer lugar onde vá, no Brasil, do restaurante à lavandaria, do dentista ao hospital, tem sempre uma televisão, sempre ligada na TV Globo. Portanto tem uma capilarização enorme de ideias e imagens e a Globo tem um papel muito importante na configuração de um antipetismo muito forte no Brasil.

Um antipetismo baseado em casos reais de corrupção, embora não tenha sido essa a causa do impeachment.

Em casos reais de corrupção que, infelizmente, foram práticas políticas, e diria práticas sociais, porque muitos brasileiros que acusam a presidente, o deputado, o governador, de corrupto, na sua prática quotidiana repetem os mesmos comportamentos que condenam nos representantes políticos. Mas a luta contra a corrupção que representou a Lava-Jato nos seus primeiros momentos despertou, na minha opinião, muita esperança, até ao momento em que se percebeu uma confluência muito perversa entre a agenda política e a agenda judicial. Ou seja, o timing das operações, o momento das operações de mandado e apreensão, o momento político em que elas ocorreram era muito importante e sempre muito mediatizado, com uma condenação pública dos indivíduos, no processo anterior ao seu julgamento, fazendo que magistrado e promotores acabassem sendo agentes, por assim dizer, constrangidos, limitados pela opinião pública, forjada por um conjunto de jornais e de media que, nesse momento, estavam convergentes num antipetismo forte.

Quando se olha para Lula e se olha para as acusações e para o caso do apartamento que terá recebido continua a haver brasileiros que consideram que é tudo montagem. Há outros que acreditam fielmente na justiça. Porque é que há tantas pessoas no Brasil que acham que Lula é uma vítima?

Eu sou formado em Direito. O Código Penal brasileiro até a Lei da Delação, que foi uma lei aprovada no governo da Dilma, sempre se pautou pela regra "se houver dúvida você absolve o réu". No direito penal uma pessoa só pode ser condenada se houver provas empíricas cabais. Agora há a Lei da Delação e o uso da Lei da Delação, que tem sido feito, em parte, com dois pesos e duas medidas. Com a nova Lei da Delação a simples palavra de um empresário ou de um outro político passou a ser suficiente para assumir a convicção do juiz e do próprio promotor acusador. Tem uma questão processual no Brasil que é uma falha do nosso direito, mas isso não diz respeito só a este momento, mas é uma questão de tradição jurídica, que é o juiz que faz a condução do processo investigativo ser o mesmo juiz que julga. Isso é uma falha gravíssima do ponto de vista dos direitos humanos, porque o juiz que forma a sua convicção em relação ao processo acusatório investigativo vai ser o mesmo que vai julgar. Então isso pode gerar vieses cognitivos no próprio indivíduo que, do ponto de vista da isenção, é altamente questionável. Mas isso faz parte do nosso sistema para todo e qualquer indivíduo. Não é uma singularidade do caso do Lula ou de outros políticos.

Porque há tanta dúvida? Ou porque é que a sociedade brasileira está tão dividida em relação à culpabilidade do Lula?

Porque não se apresentaram provas concretas de que aquele apartamento, o famoso triplex do Guarujá, seja efetivamente de Luís Inácio de Lula da Silva e da sua família. O que implica ter de demonstrar, para a população brasileira e para o próprio juiz, que uma propriedade é sua? São títulos de propriedade. E esse título de propriedade nunca houve. Essa é uma questão empírica bastante controversa. Lula é um santo? De modo algum. Não acredito que Lula seja um santo. Mas prova em relação ao crime cometido... isso não foi encontrado. O que existe é uma delação, várias delações contra Lula. Porque a delação implica para o delator uma redução da sua pena. E há muitos delatores, sobretudo do segmento económico, e das grandes empresas. Aliás, a face positiva do escândalo Lava-Jato é que pela primeira vez vários empresários foram para a cadeia. Isso no Brasil é inusitado. Que uma parte da elite seja condenada e vá para a cadeia como o João da Silva. Um brasileiro qualquer.

E a face negativa da Lava-Jato?

O elemento duvidoso da Lava-Jato. Dois pesos e duas medidas. O timing do judiciário nos momentos políticos cruciais. Vazamento de informações sobre o processo, que deveria correr em segredo de justiça. Vazamento de escutas telefónicas sobre a chefe de Estado. Isso é crime constitucional.

Na sua opinião isso alimenta as dúvidas. Isso reforça um lado que está com o PT e com o Lula contra ventos e marés. Há um lado do Brasil que acha que o antigo presidente está a ser vítima de uma perseguição.

Exato.

Mas esse lado já não chega para ganhar umas eleições?

Não sei. Não sei, porque isso vai depender de como vão ser os próximos andamentos. Estou a falar do dia 7. Ninguém imaginava que, mais uma vez, Lula fosse capaz, nessa estratégia, a partir da prisão, de colocar um candidato, seja ele qual for - e acho que Fernando Haddad é um bom candidato, no sentido em que é competitivo eleitoralmente, fala bem, é bem informado, é sereno... apesar de todas estas características, uma pessoa pode não gostar do princípio ideológico e político do Partido dos Trabalhadores mas tem um candidato, um profissional da política com tremenda capacidade de articulação, bem formado, em ciência política.

Acha que está na luta?

Está na luta. Tanto que as últimas pesquisas eleitorais, há alguns dias, o colocavam em segundo lugar, Bolsonaro em primeiro e Ciro depois.

Jair Bolsonaro é muito falado em Portugal, chega a ter a etiqueta de fascista, de ser o regresso ao regime militar. É um exagero ou tem algo de verdade?

Bolsonaro é um candidato da extrema-direita. Não é um candidato da direita republicana. Ou seja, ele usa discursos, tem uma narrativa política bastante ofensiva, agressiva, com violência simbólica em relação a mulheres, a negros, a indígenas, a população LGBT. No Brasil ele denuncia o que diz ser uma ideologia de género, que para ele é pura ideologia, não é real, não existe nada além da anatomia entre homem e mulher. É muito inusitado, num país tão miscigenado, tão misturado, num país onde as grandes práticas culturais, os grandes momentos de manifestação cultural, como o Carnaval, as festas populares, o samba, que é fruto de uma cultura afro-brasileira, consigamos ter produzido no quadro do antipetismo algo tão pouco inteligente.

Uma pessoa pode, é claro, não concordar com todas ou com parte das políticas do Partido dos Trabalhadores mas daí a fazer e construir socialmente um antipetismo tão extremado a ponto de uma candidata a vice-presidente, a senadora Ana Amélia, que está com Geraldo Alckmin, quando houve um ataque contra o autocarro da caravana do presidente Lula, em vez de todo e qualquer republicano, de direita ou de esquerda, defender que aquilo era simplesmente um atentado contra a democracia, porque naquele momento ele estava livre e em campanha, ela defendeu "bota a correr aquele povo que foi lá levando um condenado se queixando da democracia. Atirar ovo, levantar o relho, mostra onde estão os gaúchos . Somos uma região de machos"... Disse isto uma senadora da República. Há um desvio de comportamento de uma parte da elite brasileira, da elite política, nos últimos tempos, em nome do temos de tirar o PT do poder. Em nome de uma associação fácil entre PT e corrupção. Muitos do PT roubaram, muitos do PT são corruptos. Alguns do PT foram punidos. Mas a corrupção não é uma prática de um só partido político.

Mas esse antipetismo explica então, em grande parte, o fenómeno Bolsonaro?

Explica também em grande parte o fenómeno lulismo. E o fenómeno Haddad nestas eleições. A reação pró-Haddad na incapacidade de Lula assumir a sua candidatura é proporcional ao antipetismo que nutre o bolsonarismo.

Há dois Brasis geográficos neste apoio a Bolsonaro...

Há vários dois Brasis. Há disparidades regionais tremendas. No nordeste, no geral, existe um reconhecimento muito forte das políticas sociais e de desenvolvimentismo que foram implementadas na região por Lula.

Aí há uma fidelidade...

Uma fidelidade tremenda. Diria quase uma fidelidade canina, gigantesca, a Lula e, por consequência, a quem Lula indicar.

Mas como bolsa de votos não chega. Por exemplo, São Paulo que foi muito PT hoje não o é.

Não é. Mas em São Paulo Haddad está em segundo lugar. Depois de Bolsonaro. Existe um antipetismo do qual Bolsonaro se nutre, mas também, e isso é interessante, Bolsonaro tomou o antipetismo do PSDB de Alckmin. Digamos que a política brasileira, a política eleitoral, a política partidária brasileira vem-se organizando nos últimos 20 a 30 anos em torno dessa disputa entre PT e PSDB.

É mais provável que haja uma segunda volta entre estes dois candidatos, Hadad e Bolsonaro?

É muito provável que isso aconteça. A outra hipótese é uma recuperação forte de Ciro, acho que vai ser difícil, mas se houver, de qualquer forma vai ser um candidato de centro-esquerda, com características diferentes e partidos políticos diferentes, capilaridades diferentes, contra Bolsonaro. É interessante porque na verdade Bolsonaro roubou o antipetismo

O antipetismo está em Bolsonaro. A dúvida pode ser à esquerda, é isso?

Exatamente. O PSDB, com todas as suas diferenças internas, nasceu social-democrata, mas o PT empurrou-o para a direita. Na verdade, os anos de governo de Lula foram anos de governo social-democrata. Essa é que é a realidade. As pequenas políticas compensatórias no campo social que foram implementadas, as políticas de inclusão na universidade, as políticas de redução das disparidades regionais...

Não é nada que fosse estranho no campo da social-democracia na Europa ou no trabalhismo...

Não. Tanto que os grandes apoiantes do PT e de Lula, na Europa, hoje, são o espanhol Zapatero, o antigo presidente do Parlamento Europeu, o alemão Martin Schulz. Em Portugal tem um grande apoiante que é Boaventura de Sousa Santos. Acho que Lula recebeu mais visitas internacionais nestes dois meses do que Temer em dois anos.

Digamos que Bolsonaro é eleito. O que mudava no Brasil? Poderia ser um abanão tão grande como foi Trump nos EUA?

Não, porque o Brasil não tem o mesmo peso na economia internacional. Nem no mundo da segurança internacional.

Mas ao nível do país seria um abanão.

Para a região também. Porque o Brasil não pesa tanto no mundo, mas tem muito peso na região. Na América do Sul as assimetrias são gigantescas. Agora do ponto de vista da política internacional brasileira, sendo o Brasil um país não muito dotado de ativos estratégicos, assets de hard power, o Brasil não é uma potência nuclear nem tem um exército superequipado. Assim, o Brasil sempre, tradicionalmente, na sua política externa apostou muito em saídas de negociação e diplomáticas, de resolução de conflitos. O Brasil sempre apostou muito no multilatelarismo, seja na região, seja no âmbito das Nações Unidas. Por exemplo, nos primeiros anos de mandato do governo de Lula, com o embaixador Celso Amorim chefe da Diplomacia, o Brasil organizou cúpulas entre a América do Sul e os países africanos, entre América do Sul e países árabes. O Brasil nunca organizou nada sozinho. É claro que ele era o principal interessado e que aquelas cúpulas serviam principalmente às empresas brasileiras

Mas essa imagem do Brasil como um país simpático, com soft power, com Bolsonaro corre o risco de desaparecer?

Essa é minha conclusão. O Brasil não detém recursos de hard power. Então precisa de muitos recursos de soft power. Isso é o quê? É credibilidade. É imagem. É projeção de imagem. Os EUA continuam sendo a primeira potência internacional, o económico está a par e par com a China, mas não tem como comparar a legitimidade da diplomacia norte-americana durante o período de Barack Obama com o governo de Donald Trump. É claro que essa dimensão do soft power, se ela é importante para uma potência nuclear, a primeira superpotência do mundo, como os EUA, imagine para um país como o Brasil, que não é detentor de grandes recursos de hard power. O Brasil precisa do soft power para brilhar, para projetar o seu poder internacionalmente.

Vê algum paralelo entre Bolsonaro e Trump?

Ele se apresenta muito sob a batuta do modelo Trump. Isso tem uma série de implicações nas negociações de inúmeros acordos bilaterais com o Brasil, que já estão em andamento com Temer, mas que podem ser ainda ampliados e aprofundados com um eventual governo de Bolsonaro. A base de Alcântara, de lançamento de satélites no Maranhão.

Mas essa ligação a Trump é claramente estratégia para ganhar votos? Ou seja, ser pró-Trump atrai votos?

Para o público dele, sim. Porque para o público dele Trump pode ser um modelo. Para se ter uma ideia, havia apoiantes do Bolsonaro que durante as últimas eleições norte-americanas, na parte final, entre Trump e Hillary Clinton, amigos meus da embaixada norte-americana não entendiam o que estava a acontecer. Havia quem dissesse que se fosse eleita seria como uma Dilma nos EUA. Não tem nada mais diferente do que Dilma e Hillary.

Inclusive uma visão machista...

Sim, uma visão antigénero feminino. As diversas declarações do Bolsonaro, caso ele seja eleito, têm um impacto tremendo em termos de imagem internacional do Brasil. Uma pergunta interessante de se fazer é como seria ele numa segunda volta contra Marina Silva, se houvesse um milagre no processo eleitoral, que não vai acontecer. De qualquer forma, a grande questão que se coloca, para as forças democráticas e republicanas no Brasil, independentemente de serem de esquerda ou de direita, mais social-democrata ou mais liberal ou mais conservador, é como se articular juntas para contrariar essa candidatura de Bolsonaro, por tudo que ela representa do ponto de vista dos valores.

Está a falar de separação de águas numa segunda volta?

Exatamente.

Ou seja, se abrir uma frente anti-Bolsonaro. Imagina o PSDB estar ao lado de um candidato anti-Bolsonaro?

Eu nunca imaginaria. É a figura de Bolsonaro que está em causa. E está associado a um general, que é um outro aspeto interessante e relevante. É a primeira vez desde a redemocratização, desde 1988, que o Brasil tem um ministro da Defesa militar e um candidato à vice-presidência general. Reformado.

Bolsonaro é um capitão.

Sim. Então tem uma hierarquia sui generis. Um capitão a presidente e um general a vice.

E a ideia de ele ter um elemento da Casa de Bragança como vice?

Não funcionou. Várias pessoas se negaram a assumir a vice-presidência de Bolsonaro. Foram convidadas, agradeceram... então ele trouxe o general Hamilton Mourão, recém-entrado na reforma.

Tem algum perfil político óbvio esse general?

Não. Mas 40% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres. Chefes de família. E o general emitiu uma frase onde dizia dos riscos das crianças educadas por mães e avós sozinhas, que eram máquinas de reprodução desajustadas. Isso gerou um movimento de mulheres suprapartidário de repúdio.,

Há de novo uma analogia grande com Trump...

Sim. Houve uma boa parte das mulheres contra Trump. No Brasil está a ocorrer a mesma coisa. As mulheres têm tido uma liderança muito forte em função dessas posturas altamente preconceituosas, discriminatórias. Misoginia pura. Um exemplo? Numa palestra Bolsonaro, que está a criar uma dinastia política, disse: "Sou macho. Tive quatro filhos, no quinto tive uma fraquejada e fiz uma mulher." Machismo que nenhum candidato na Europa teria coragem de exibir, perderia muitos votos.

Bolsonaro tem currículo para mostrar?

Ele ignora muitos dados, tem problemas cognitivos de conhecimento. Não é um self made man, estilo Donald Trump. Ele não é um megaempresário. Não tem as provas dadas que tem, apesar de tudo, Trump. Ele tem quatro ou cinco mandatos consecutivos de deputado federal pelo Rio de Janeiro. Se pegar no rol dos projetos de lei que ele propôs e que se tornaram lei você não vai chegar a nenhuma conclusão. Não tem nada de significativo que ele tenha feito, politicamente, para além do discurso antipetista.

Está a dizer-me que ele é um político que, aparentemente, não tem grande valor nem grande futuro, mas o momento deu-lhe uma oportunidade única?

Na atual conjuntura brasileira, em função do antipetismo gigantesco, ele tem uma oportunidade única. Foi esfaqueado, o que não deixa de ser irónico porque ele prega a distribuição livre de armas no Brasil, é contra o estatuto do desarmamento, que foi um avanço progressista civilizacional numa sociedade tão violenta como a nossa, onde já se mata mais anualmente do que se morre na Síria em conflito. O tentar reduzir o número de armas na sociedade... ele quer rever isso tudo.

Trump, que ganhou nos bastiões republicanos, construiu a vitória em zonas tradicionalmente democratas. No Brasil também há esse fenómeno? Há zonas do Brasil e camadas sociais que não eram do campo político do Bolsonaro e que, de repente, podem estar com ele?

Eu prefiro olhar para os dados. Se olharmos para os dados da pesquisa da Datafolha, o perfil do eleitor de Bolsonaro é: homem, branco, de alta escolaridade e de alto poder aquisitivo. Isso não significa que não haverá pessoas de classe popular, pessoas com baixíssimo poder aquisitivo, com baixa escolaridade, que votem também em Bolsonaro. Mas vai encontrar, sim, um segmento dos eleitores que tradicionalmente votariam no PSDB, que foi atingido recentemente por alguns processos da Lava-Jato e outras denúncias de corrupção, e não se reveem mais nessa disputa clássica entre o PSDB e o PT. Tanto que Alckmin tem muita dificuldade em se descolar, porque Bolsonaro roubou uma boa parte dos votos. Então Alckmin se sente desidratado politicamente, em função da emergência de Bolsonaro que lhe roubou a agenda anti-Lula, anti-PT. Isso é para sempre ou só nesta conjuntura? Oque isso vai implicar para o futuro político do PSDB como partido? São questões importantes.

Há dias o antigo presidente Fernando Henrique Cardoso, antecessor de Lula e figura do partido de Alckmin, terá dito que numa eventual segunda volta entre Bolsonaro e Haddad teria de votar no candidato do PT. Ou seja, uma tentativa de adesão do próprio Fernando Cardoso à campanha #elenão. Tudo menos Bolsonaro. É assim?

É como amigos meus do Partido Socialista francês, nas eleições de 2002, que votaram Jacques Chirac para que Jean-Marie Le Pen não fosse eleito. Não sei se a nossa democracia está madura o suficiente para que uma parte do centro-direita republicano volte às suas origens republicanas em respeito ao jogo institucional para declarar, não fazendo campanha, declarar simplesmente o seu voto e dizer "Temos de votar contra esse candidato."

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