As relações entre o governo de extrema-direita do Brasil, liderado por Jair Bolsonaro, e a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), comandada por Edir Macedo, estão cada vez mais harmónicas: ontem, dia em que o bispo e a sua mulher foram brindados com passaportes diplomáticos, um levantamento com base em informações da Secretaria de Comunicação do Palácio do Planalto chegou à conclusão de que a Record, televisão ligada à IURD, faturou com publicidade estatal 659% a mais do que no ano passado..Segundo o portal UOL, o governo gastou 75,5 milhões de reais [cerca de 18 milhões de euros] no primeiro trimestre de 2019 em agências de publicidade, pesquisas de opinião pública, comunicação digital e veículos de comunicação, o que equivale a um aumento de 63% em relação ao período homólogo do ano passado e a 101% por comparação com 2017, apesar de Bolsonaro, em campanha, prometer austeridade nos gastos públicos. A Secretaria da Comunicação justificou-se, afirmando que as despesas já estavam previstas desde o consulado de Michel Temer e que o atual presidente limitou-se a autorizá-las..É na distribuição de verbas aos veículos de comunicação, entretanto, que consiste a maior novidade: a Globo, líder de audiências, que antes chegava a ser destinatária de cerca de 70% das verbas da comunicação estatal, caiu para terceiro lugar, atrás do SBT, que cresceu 511% no período, e da nova líder, a Record, com a tal subida recorde de 659%, o equivalente a 10,3 milhões de reais [perto de 2,4 milhões de euros]. Enquanto a Globo é considerada "inimiga do governo" pelos apoiantes do presidente, tanto Sílvio Santos, dono do SBT, como Edir Macedo, dono da Record, apoiaram publicamente Bolsonaro nas eleições..E Macedo nos próximos três anos voltará a usufruir, assim como Ester Bezerra, sua mulher, de passaporte diplomático, de acordo com a publicação no Diário Oficial da União assinada por Ernesto Araújo, o ministro das Relações Exteriores brasileiro. A justificação é que o casal pode "desempenhar de maneira mais eficiente as suas atividades em prol das comunidades brasileiras no estrangeiro". O bispo já recebera o privilégio em 2006 do então presidente Lula da Silva e viu o estatuto renovado, em 2011, por Dilma Rousseff. Só em 2016, Michel Temer havia suspendido a emissão dos documentos a líderes religiosos sob o argumento de que o Brasil é um estado laico..O passaporte diplomático, considerado por juristas como Saulo Alle "um flirt com a ilegalidade", garante ao seu utilizador evitar filas, receber atendimento especial e ter prioridade nas bagagens. Dependendo do país, há ainda dispensa da necessidade de visto..Edir Macedo, cuja fortuna foi avaliada pela revista Forbes em 1,1 mil milhões de dólares, fundou a IURD, hoje com cerca de seis milhões de fiéis espalhados por perto de 180 países, nos anos 1970. A IURD já foi acusada de charlatanismo, intolerância religiosa e até de adoção ilegal de crianças em Portugal..Afago evangélico.O afago de Bolsonaro à Record e ao seu proprietário enquadra-se na estratégia de reaproximação com a comunidade evangélica - cerca de 30% do eleitorado brasileiro e importante pilar do presidente na campanha - após arrefecimento de relações nos últimos meses por conta da escassa contribuição da Bancada da Bíblia, a frente parlamentar suprapartidária composta por deputados evangélicos, na formação do governo e do não cumprimento da promessa de transferir a embaixada brasileira em Israel de Telavive para Jerusalém..Esse arrefecimento foi verbalizado em meados de março por Marco Feliciano, deputado do Podemos que acredita que a morte de John Lennon se deveu à frase "os Beatles são mais conhecidos do que Jesus". Segundo ele, "a comunicação do governo com a bancada evangélica está péssima, quando o governo resolve governar sozinho torna-se um gigante com pés de barro, o que adianta ter a estrutura que tem se o alicerce é frágil, o presidente tem de cimentar os pés e isso faz-se chamando as bancadas para conversar"..Sóstenes Cavalcante, do DEM, representante no parlamento de Silas Malafaia, o pastor que celebrou o casamento de Bolsonaro com a primeira-dama Michelle, também acusara Bolsonaro de só dialogar "com os militares e com os filhos". E o PRB, partido conotado com a IURD liderado pelo pastor da igreja Marcos Pereira e conotado, recusara-se a cerrar fileiras pela votação da previdência..Em suma, os deputados evangélicos ameaçaram apoiar o governo no Congresso apenas em questões morais e de costumes..Por isso, já antes do passaporte concedido ao casal Macedo, o presidente ensaiara a reaproximação na semana passada num almoço na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, com o Conselho Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil. Silas Malafaia e o ex-senador e vocalista de banda gospel Magno Malta, aliado do presidente de quem se afastara depois de ficar de fora na formação do governo, estavam entre os mais de cem bispos e pastores da Assembleia de Deus, a maior denominação protestante no Brasil e no mundo, presentes..No evento, Bolsonaro chamou a sua eleição de "milagre", citou o versículo da Bíblia "conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" (João 8:32) e chamou o seu governo de "missão de Deus". "Essa missão, com os senhores e com o povo de bem do Brasil, nós a cumpriremos e o Brasil chegará, sim, a um porto seguro.".O presidente ainda teve tempo para uma gafe, logo quando pretendia agradar aos evangélicos e aos judeus. "Fui mais uma vez ao Museu do Holocausto, nós podemos perdoar, mas não podemos esquecer", disse ele. No dia seguinte foi repreendido por organismos israelitas ligados à memória dos eventos da Segunda Guerra Mundial e até pelo presidente de Israel, Reuven Rivlin, para quem "só os judeus podem ou não perdoar o Holocausto"..São Paulo