Balas de borracha, granadas: Polícia francesa acusada de uso de armas "com risco desproporcionado"
"Estava tudo muito calmo no sítio onde estávamos. Havia pouca gente, uma criança, nada de extraordinário. E de repente os meus filhos foram atingidos. Lembro-me de ter visto a mão mutilada de um deles, a cara e o corpo atingidos por projeteis como se tivessem sido tingidos com tinta. O irmão foi também ferido mas conseguiu carregá-lo, porque ele não conseguia andar. Nunca poderei esquecer essas imagens. Vi coisas que mesmo num filme me pareceriam incríveis. Não sabia que a polícia tinha armas com este potencial de dano. "
O relato é feito ao jornal britânico The Guardian por uma educadora de infância de 54 anos da Normandia, identificada apenas pelo primeiro nome - Dominique -- que foi com a família a Paris, em novembro, apoiar os coletes amarelos. Dominique conta que os filhos foram submetidos a várias operações. Um deles ficou sem a mão direita; o outro foi ferido nas pernas e pés e tem estilhaços no corpo todo. "Sentimo-nos totalmente sós. Não tivemos qualquer contacto do Estado. É como se não existíssemos."
O relato de Dominique e os danos sofridos pelos filhos juntam-se aos de pelo menos 17 pessoas que terão perdido um olho nas manifestações dos coletes amarelos - entre as quais Jérôme Rodriguez, um dos líderes do movimento, atingido com uma bala de borracha numa manifestação no último sábado -, e outras duas que terão ficado sem uma mão, assim como várias outras com ferimentos na face e membros. Há também o caso de uma mulher de 80 anos que em dezembro, em Marselha, morreu após ser atingida por uma granada de gás lacrimogéneo enquanto fechava as portadas de uma janela durante uma manifestação. E o do estudante de liceu que a 5 de dezembro, que, de acordo com a descrição de um professor de uma escola dos subúrbios de Paris, teve a face "explodida como uma romã" ao ser atingida por uma bala de borracha. O professor, Mathieu Barraquier, do liceu Simone de Beauvoir, em Garges-lès-Gonesse, citado pela amnistia Internacional, garante que o aluno atingido nada tinha feito (outros tinham atirado pedras à polícia), "estava apenas a falar com os amigos".
Aïnoha Pascual, uma advogada parisiense que representa vários feridos nas manifestações, incluindo um que ficou sem mão e outro que está parcialmente surdo e com ferimentos na cabeça, disse ao Guardian que não há memória na história recente de tantos ferimentos graves durante protestos de rua e que algumas das armas utilizadas pela polícia, nomeadamente uma granada denominada "sting-ball", equivalem a usar armas de guerra contra civis. "Estas armas representam um problema muito grave. Se nos anos 1980 uma pessoa era atingida no olho durante uma manifestação haveria uma enorme reação pública, mas perante isto o governo está calado."
Uma outra advogada, Arié Alimi, que representa também vários feridos, incluindo alguém que alegadamente ia a passar - não estaria sequer envolvido nas manifestações - comenta: "É chocante que o governo nem uma desculpa apresente aos que ficaram feridos."
O ministro do interior, Christophe Castaner, admitiu apenas esta terça-feira que 1900 pessoas foram feridas desde o início dos protestos (começaram a 17 de novembro). Advogados e jornalistas que têm tentado compilar números relativos a ferimentos com armas estimam que pelo menos 100 pessoas terão sido atingidas por disparos ou granadas sting-ball. Um total de 101 investigações foram iniciadas pelo correspondente francês à Inspeção Geral da Administração Interna.
Mas o silêncio oficial parece ter terminado. O Conselho de Estado -- organismo francês que acumula as funções do nosso Conselho de Estado e de Supremo Tribunal Administrativo -- vai esta quarta-feira analisar um pedido urgente da Liga Francesa dos Direitos Humanos e da confederação sindical CGT (Confédération Générale du Travail), uma das mais importantes em França, para proibir a utilização, pela polícia, de um tipo específico de arma que lança balas de borracha. O equivalente francês ao nosso Provedor de Justiça há muito que vem dizendo que esse tipo de arma é perigoso e representa "um risco desproporcionado". O uso pela polícia do dispositivo descrito por Aïnoha Pascual, a granada sting-ball, está também em questão: a França é, de acordo com o The Guardian, o único país europeu cuja polícia usa este tipo de arma, que quando explode lança bolas de borracha e gás lacrimogéneo, no "controlo de multidões".
Este dispositivo é descrito por quem o vende como uma arma "não letal", uma granada similar a uma granada de fragmentação mas que em vez de um invólucro de metal que produz estilhaços tem um invólucro de borracha, cheio de pequenas bolas de borracha que quando a granada explode "são lançadas em várias direções" num raio de 15 metros, ao mesmo tempo que se produz um ruído muito forte e é largado gás lacrimogéneo. É desenhada, ainda segundo os vendedores, para "incapacitar um elevado número de hostis sem causar morte ou ferimentos graves". Do ponto de vista médico, a sting-ball é descrita como podendo, se o rebentamento for muito próximo, ocasionar a penetração da pele pelas bolas de borracha; caso os olhos sejam atingidos, "a lesão pode ser muito séria."
Também esta quarta-feira a comissária do Conselho da Europa para os direitos humanos, Dunja Mijatovic, exprimiu preocupação com os ferimentos causados pela ação policial nas manifestações. Mijatovic, que reuniu esta semana com as autoridades francesas para discutir a situação, lamentou "o alto nível de tensão que existe atualmente em França" e considerou haver "uma necessidade urgente de acalmar a situação".
Também a Amnistia Internacional tem vindo a apelar para que o governo francês deixe de usar aquilo que a organização apelida de "força excessiva" contra os manifestantes. "O uso de balas de borracha, granadas sting-ball e gás lacrimogéneo contra protestos sobretudo pacíficos que não ameaçam a ordem pública tem sido documentado, evidenciando o uso de força excessiva pela polícia", diz um comunicado de dezembro da organização, que relata: "Testemunhos de vítimas e de testemunhas oculares e vídeos analisados pela Amnistia Internacional demonstram que a polícia usou balas de borracha, disparando sobre multidões, de forma imprópria. Lançaram também granadas sting-ball, que nunca devem ser usadas em situações de controlo de ordem pública."
Referindo os números oficiais à época (o comunicado é de 14 de dezembro), a AI fala de 1407 manifestantes feridos - 46 dos quais seriamente - desde o início dos protestos, em 17 de novembro, assim como 717 agentes policiais e bombeiros. Mas anota: "Enquanto as autoridades têm repetida e legitimamente condenado atos de violência da parte dos manifestantes, não expressaram qualquer preocupação com o uso excessivo da força pela polícia, que deve ser objeto de uma investigação independente, imparcial e eficaz."
Há até, reporta a AI, numerosos casos de jornalistas que terão sido propositadamente atingidos pela polícia: um vídeo examinado pela AI mostra um jornalista com um capacete com um dístico "press" a ser atingido com uma granada sting-ball nas costas quando estava a afastar-se da barreira policial. O fotojornalista Thierry Olivier disse à AI que acredita que os fotógrafos estavam a ser especificamente atingidos. Outro jornalista, que pediu para não ser identificado, descreveu como ele e os colegas foram repetidamente alvo de disparos de balas de borracha. Outro jornalista, Thomas Morel-Fort, sofreu múltiplas fraturas numa mão quando foi atingido por uma bala de borracha apesar de envergar um capacete com "press" à frente e atrás."
Em Portugal, de acordo com o que o DN conseguiu saber, as granadas sting-ball não fazem parte do equipamento das polícias. Um oficial de polícia explicou ao jornal que a polícia só está autorizada a utilizar "dispositivos direcionados", ou seja, que tenham como alvo pessoas concretas que estejam a representar perigo para a ordem pública ou para os agentes. "A utilização de uma granada nessas circunstâncias é um disparate autêntico, porque ninguém pode controlar um rebentamento, ou seja, qualquer pessoa pode ser atingida. Estes dispositivos são adequados a utilização por swat teams em situações graves, por exemplo de tomada de reféns, etc."
Já as balas de borracha são usadas pelas polícias portuguesas, embora também aí, explica a fonte policial, haja regras muito claras: "Tem de se disparar para baixo, para as pernas, para zonas não letais. Nunca se pode apontar para a cabeça." Certo é que na última manifestação ocorrida em Lisboa, a 21 de janeiro, na Avenida da Liberdade, a polícia fez uso abundante de balas de borracha, havendo relatos de manifestantes atingidos num braço e mesmo na cara, enquanto o oficial entrevistado pelos media após os acontecimentos garantia que os disparos tinham sido efetuados "para o ar".
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