Mandela: legado de paz, coragem, união
Aquando das primárias democratas para as presidenciais americanas de 2008, Richard Stengel, editor da conceituada revista norte-americana Time, telefonou a Nelson Mandela a perguntar qual era o seu candidato favorito: Barack Obama ou Hillary Clinton. "Estás a ver se me metes em sarilhos", disse o ex-presidente da África do Sul, sem responder à pergunta. O autodomínio, diz o jornalista, sempre foi uma das maiores características de Mandela, classificando-o como uma espécie de filtro omnipresente na pessoa do ex-líder da luta contra o regime racista do apartheid e Prémio Nobel da Paz em 1993. E como é que Stengel conhecia tão bem Madiba, nome pelo qual os sul-africanos tratavam o seu líder histórico, agora falecido? Como é que tinha tanta confiança com ele ao ponto de ter o número de telefone daquele que desde 1999, ano em que abdicou voluntariamente de um segundo mandato presidencial, se tornou numa das pessoas mais difíceis de aceder para os jornalistas de todo o mundo? Simples: Stengel foi escolhido e aprovado pelo Congresso Nacional Africano, ANC, como escritor fantasma da autobiografia de Nelson Mandela, Um Longo Caminho para a Liberdade, publicada em 1992 e aclamada como uma das melhores autobiografias do século XX. Como a obra, Mandela é também um dos maiores e mais respeitados líderes do século passado. Mas não só. É um líder inspirador, uma espécie de santo vivo, que nunca o quis ser, conta Stengel no livro O Legado de Mandela.
"Nelson Mandela talvez seja o último dos heróis puros do nosso planeta. É o símbolo sorridente do sacrifício e da retidão, venerado por milhões de pessoas, como um santo vivo", escreve Stengel, no livro que conta com o prefácio do homem com quem conviveu três anos, através do qual conheceu a sua mulher e decidiu homenagear dando aos filhos o nome de Rolihlahla. Este foi o nome com que Mandela foi batizado pelo pai e que em xhosa significa "aquele que sacode as árvores". Mais tarde, uma professora que ele teve na aldeia de Mvezo, na região do Transkei, onde nasceu a 18 de julho de 1918, Miss Mdingnane, deu-lhe o nome de Nelson no primeiro dia de aulas. Atribuir nomes britânicos era na altura um costume entre os africanos devido à influência colonial. O jornalista americano define Mandela como um homem meticuloso, bom ouvinte, indiferente a quase todos os bens materiais, mas muito preocupado com a imagem que transmite aos outros, um homem que não acreditava que a coragem era uma qualidade inata ou uma espécie de elixir. Mandela costumava dizer que a coragem não era a ausência do medo mas sim a capacidade de o dominar. Só esse tipo de pensamento explica que tenha conseguido sobreviver ao apartheid durante 27 anos, passando por três cadeias, sem contacto, praticamente, com a família.
Na prisão, a mais famosa das quais é a da Robben Island, onde esteve com Walter Sisulu, fez tudo por conseguir aproximar-se do seu inimigo: os brancos, africânderes, que o viam como criminoso e terrorista. Aprendeu a sua língua, o africâner, decorou a sua história, leu a sua literatura e estudou o seu desporto de eleição, o râguebi, chegando ao ponto de decorar os nomes dos jogadores, para ter tema de conversa com os guardas prisionais considerados como os mais duros. E a verdade é que conquistou a simpatia de alguns, como Christo Brand, um dos guardas de Robben Island, que convidou para jantar na sua casa quando celebrou duas décadas de liberdade a 11 de fevereiro de 2010. Quando saiu da cadeia, após negociações com o regime do apartheid, de P.W.Botha e Frederik de Klerk, Mandela tinha 72 anos e percebeu, rapidamente, que se não perdoasse os seus inimigos então, sim, continuaria numa prisão até ao resto dos seus dias. Reconciliação e perdão em vez de vingança foi a sua receita para aquilo a que o arcebispo Desmond Tutu um dia chamou Nação Arco-Íris.
Famosa e, depois consagrada pelo filme Invictus de Clint Eastwood, ficou a história de como a África do Sul venceu o Campeonato Mundial de Râguebi de 1995. Através deste desporto, Mandela conseguiu unir brancos e negros como uma só Nação. A fotografia do primeiro presidente negro eleito da África do Sul, vestido com a T-shirt dos Springboks, a cumprimentar o capitão da equipa, François Pienaar, um branco, correu mundo e teve um impacto brutal.
Manter os rivais por perto era também outras das lições a aprender com Mandela, que quando chegou a presidente decidiu manter todos os seus colaboradores brancos. Nem os guarda-costas foram exceção, para grande espanto, mas também revolta dos seus homens saídos do ANC. Mandela percebeu a diversidade da África do Sul, um país com 11 línguas oficiais, onde brancos e negros convivem há séculos em cenários que vão desde a guerra à democracia, passando pelo segregacionismo racista do regime do apartheid. O homem que não queria ser santo sabia liderar tanto a partir da frente como a partir da retaguarda. Trabalhar em equipa, envolver os seus colaboradores nas decisões para que as sentissem também como suas, foi outros dos seus segredos e, segundo Richard Stengel, uma boa parte do seu legado. "Ao longo da vida, Mandela assumiu riscos para liderar. Se fosse um soldado, seria o primeiro a saltar para as trincheiras para comandar uma carga através da terra-de-ninguém. A sua ideia é a de que os líderes não só devem comandar como devem ser vistos a comandar - ou seja, que isso faz parte da função que desempenham", escreve o atualmente editor da revista Time em O Legado de Mandela.
Ao dar o exemplo, o Nobel da Paz visava não só os cidadãos, mas os líderes políticos, do seu e de outros países africanos e de outros continentes. Ao decidir não se recandidatar, em 1999, deixando caminho livro à eleição de Thabo Mbeki, quis também deixar a mensagem de que afastar-se também é uma forma de liderar. Apresentado como um romântico pragmático, que casou três vezes, Mandela admitiu a Stengel que a vida só vale a pena com amor e que ele é muito importante. No prefácio que escreveu para o livro do jornalista americano, datado de novembro de 2008, Mandela resumiu o seu legado numa palavra africana com apenas seis letras, ubuntu, um conceito que contraria o individualismo renascentista e é muito característico de África. "O sentido profundo de que só somos humanos através da humanidade dos outros, que se neste mundo realizamos alguma coisa isso se deve em igual medida ao trabalho dos outros".