"Amazónia não é o pulmão do planeta nem pertence à humanidade. Isso é bobagem"

O ministro do Meio Ambiente brasileiro responde a tuite de Emmanuel Macron chamando-lhe "bobagem". Nega que o desmatamento tenha aumentado sob o governo de Bolsonaro e afirma que a floresta amazónica é do Brasil e que é o país que "tem de escolher o modelo, que tem de ser viável economicamente", da sua proteção.
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"A Amazónia não é pulmão do mundo. Isso já foi dito e reconhecido. A Amazónia tem o seu ciclo fechado. Ela emite o que ela mesma consome. Ela é um património brasileiro. Essa história de que pertence à humanidade é uma bobagem. Nós temos soberania sobre a Amazónia. Somos nós que temos de escolher um modelo, que tem de ser viável economicamente, de proteção da nossa floresta. Somos nós que temos de escolher e somos nós que temos de implementar. Todo o cuidado com a Amazónia que inspira atenção do mundo inteiro é bem-vindo, mas a autonomia de fazer isso é da população brasileira."

As declarações foram feitas ao jornal brasileiro Estado de S. Paulo por Ricardo Salles, 44 anos, ministro brasileiro do Meio Ambiente, numa entrevista publicada neste sábado, e surgem como uma resposta ao post publicado na quinta-feira pelo presidente da França, Emmanuel Macron, no qual este escreveu: "A nossa casa está a arder. Literalmente. A floresta húmida amazónica - o pulmão que produz 20% do oxigénio do planeta - está a arder. É uma crise internacional."

Salles acusa Macron de querer "tirar dividendos políticos da situação sobretudo no momento em que suas próprias políticas ambientais não estão sendo bem-sucedidas, em especial no que se refere ao não cumprimento das metas de redução das emissões de carbono previstas no Acordo de Paris." E nega que o desmatamento da floresta húmida amazónica tenha aumentado sob o governo Bolsonaro, acusando as organizações não governamentais (ONG) ambientalistas - que Bolsonaro já aventou poderem ser responsáveis pelos próprios incêndios - de estarem a fazer campanha contra o seu executivo por este ter "fechado a torneira dos recursos fartos que recebiam". Estão, afirma, "fomentando essa campanha internacional que não é nada boa para o Brasil. A gente sabe disso".

Confrontado pelo jornal com o facto de até uma revista conceituada e não suspeita de simpatias esquerdistas como a The Economist ter colocado o desmatamento da Amazónia na sua capa, citando números: "Entre agosto de 2017 e julho de 2018 o Brasil perdeu 7900 km² de floresta amazónica - quase mil milhões de árvores. A perda deste ano é quase de certeza maior. Dados preliminares de satélite mostram que 920 km² desapareceram em junho, 88% mais do que no mesmo mês em 2018. Em julho, 2255 km² foram arrasados, uns espantosos 278% mais do que no mesmo mês no ano passado."

Admitindo que "há muita gente séria que tem um entendimento incompleto ou enviesado sobre o que a gente está tentando fazer", o ministro anuncia: "A fórmula para lidar com isso é informação. Por isso, estou indo no final de setembro com o presidente [Bolsonaro] a Nova Iorque e a Washington. Logo em seguida, vou a alguns países da Europa para fazer esse esclarecimento. Vamos mostrar tudo o que o Brasil já faz e tudo que queremos fazer. Aqueles que tiverem disposição para ouvir e debater certamente vão mudar, em alguma medida, de opinião."

"O desmatamento não começou nem começou a crescer com Bolsonaro"

Mas o Estadão lembra que "um dos fatores que contribuíram para intensificar a perceção negativa em relação ao Brasil foi a demissão do presidente do INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], Ricardo Galvão. O governo alegou que os dados de desmatamento divulgados pelo INPE, que sempre foram uma referência no Brasil e no exterior, não refletiam a realidade e foram usados politicamente". E pergunta: "Por que, de repente, os dados do INPE não servem mais?"

Salles não se atrapalha: "Em primeiro lugar, a gente precisa reconhecer que o desmatamento vem aumentando na Amazónia desde 2012 e ganhou maior fôlego desde 2015. Aliás, foi o próprio Ricardo Galvão, agora ex-presidente do INPE, que disse isso publicamente. Então, o desmatamento não começou nem passou a crescer no governo Bolsonaro, ao contrário do que querem fazer crer alguns canais da imprensa e algumas referências na área ambiental."

Em segundo lugar, prossegue, "deve-se considerar que o INPE trabalha com dois sistemas para mapear o desmatamento. O sistema anual de desmatamento, chamado Prodes, faz um cálculo na virada de julho para agosto a cada ano e compara a situação com o mesmo período do ano anterior. O Prodes deste ano ainda não saiu. O outro sistema do INPE é o Deter, que faz o chamado alerta de desmatamento. É um aviso de que determinada região está tendo um aumento de desmatamento."

Mas, adverte, "o próprio site do INPE diz com todas as letras que o Deter, cujos dados saem a cada 15 dias, não se presta a mensuração de desmatamento. Se ele não se presta a medir volume de desmatamento, não se presta tampouco a comparar, por exemplo, dados de julho de 2018 com julho de 2019. Quem faz essa comparação temporal é só o Prodes, porque segue critérios e parâmetros que permitem a comparação. O Deter simplesmente diz que uma região está tendo desmatamento. (...) O que aconteceu foi que um grupo de pessoas de fora do INPE pegou os dados do Deter e fez uma interpretação que deu um percentual de 88% de aumento no desmatamento em relação ao ano anterior, o que é totalmente incorreto. Aí gerou uma reportagem sensacionalista, como se os 88% fossem um percentual incontestado, mas isso não é verdade. Pode ser que o percentual seja maior ou menor, mas o fato é que, com base no Deter, não dá para cravar um número. Foi essa a nossa crítica."

Questionado sobre qual é finalmente o ponto de situação que o governo faz sobre o desmatamento, assume que não sabe.

"Na semana passada, o Imazon, que é uma ONG que não tem nada ver com o governo e foi até criticada por mim por uma questão orçamentária, disse que o aumento do desmatamento foi de 15% nos últimos 12 meses e não 88% como se afirmou com base nos dados do Deter, nem 278%, como disseram na semana seguinte. Ninguém está defendendo os 15%. Estou dizendo isso para pararem de inventar fórmulas distintas de cálculo só para gerar sensacionalismo. É irresponsável. Nós mostramos também, usando outro sistema, muito mais moderno do que o do Deter, que mais da metade dos alertas de desmatamento imputados a junho de 2019 na verdade vinham desde agosto de 2018. Fizemos isso com o objetivo de negar o desmatamento? Não. Com o objetivo de negar o aumento do desmatamento? Também não. Foi simplesmente para mostrar que esse número perentório que haviam divulgado não era verdade."

Guerra entre governo e instituto científico

Quanto à demissão de Galvão, Salles explica-a acusando-o de passar informações à imprensa antes de a disponibilizar a organismos estatais. "O Deter existe para municiar o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] com informações para fiscalização, mas quem estava recebendo as informações de desmatamento antes do próprio Ibama eram alguns órgãos de imprensa. Como é que um órgão de imprensa pode receber informações antes do próprio órgão federal a que o sistema se destina? Nós não queremos esconder a mensagem. Agora, a postura do presidente do INPE foi muito inadequada. Ele teria de ser o primeiro a vir a público e dizer que o trabalho deles é de obtenção de dados e que eles não se prestam a determinar o percentual de desmatamento, mas ele não fez isso. Ficou quieto. Ele fomentou, portanto, esse sensacionalismo em cima dos números."

Galvão, em entrevista à BBC três dias após a sua exoneração, deu uma versão muito diferente: desde que Salles tomou posse, o INPE deixara de conseguir contactar como Ibama e com o Ministério do Ambiente, facto do qual alertou o ministério Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC, que tutela o INPE), sem que no entanto a situação se alterasse e, pelo contrário, com Salles a vocalizar insistentemente críticas aos dados do instituto.

"Quando chegou em junho", narra, "o INPE começou a publicar mais dados mostrando que os nossos alertas de desmatamento estavam tendo um aumento substancial, e que isto ia representar um problema no futuro. Eu mandei, então, um ofício ao ministro do MCTIC [Marcos Pontes] em 3 de julho, alertando-o desse problema e sugerindo que fosse reaberto o canal de comunicação com o MMA, com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, de forma que o INPE pudesse explicar em detalhe a metodologia e como deveriam ser usados os dados. E inclusive que poderia desenvolver as ferramentas computacionais que eles julgassem necessárias, para que eles fizessem a análise que eles considerassem mais relevante, do jeito que eles queriam."

Mas, diz Galvão, não houve resposta de Pontes. O que houve foi uma conferência de imprensa de Bolsonaro, a 19 de julho, em que o presidente do Brasil afirmou que os dados do INPE eram "mentirosos" e que Galvão estava ao serviço de uma ONG estrangeira.

"A questão do INPE, eu tenho a convicção de que os dados são mentirosos, e nós vamos chamar aqui o presidente do INPE para conversar sobre isso, e ponto final nessa questão", afirmou Bolsonaro aos jornalistas na citada conferência de imprensa, acrescentando: "Mandei ver quem está à frente do INPE. Até parece que está a serviço de alguma ONG, o que é muito comum. (...) Se for somado o desmatamento que falam dos últimos dez anos, a Amazónia já acabou. Eu entendo a necessidade de preservar, mas a psicose ambiental deixou de existir comigo."

Galvão achou que não podia continuar calado. "Eu realmente fiquei muito indignado. Porque uma acusação dessa, para um servidor público, significa que ele está cometendo crime de falsidade ideológica. Acusação gravíssima. (...) E ele disse também que eu estava a serviço de uma ONG internacional. Ou seja, me acusou explicitamente de estar traindo o país, a serviço de interesses outros. (...) Então, considerei que era importantíssimo reagir de maneira contundente na mesma hora. (...) Pensei com calma e resolvi dar uma resposta contundente, porque eu fiquei com muito medo de que eles acabassem tirando do INPE toda essa atividade de monitoramento do desmatamento na Amazónia, que nós temos desde 1988."

E contundente foi sem dúvida. Em entrevista concedida ao jornal Estado de S. Paulo, o então diretor do INPE não só disse que não ia reagir às declarações do presidente como o presidente quereria, demitindo-se, como defendeu a rua honra e a do instituto: "O presidente Bolsonaro tem que entender que eu sou um senhor de 71 anos, professor titular da Universidade de São Paulo, membro da Academia Brasileira de Ciências, fui presidente da Sociedade Brasileira de Física durante três anos, membro do Conselho Científico da Sociedade Europeia de Física durante três anos. Todos os diretores dessas unidades de pesquisa não são escolhidos por indicação política ou porque o pai deles quis dar um filé mignon pra eles [aqui em clara referência ao propósito de Bolsonaro de colocar um dos filhos como embaixador do Brasil nos EUA]. Eles são escolhidos por um comité de busca nomeado pelo governo, por cinco especialistas de renome nacional, tanto na área científica quanto na área tecnológica."

Sublinhando o seu currículo -- "Tenho 71 anos, 48 anos de serviço público e ainda em ativa, não pedi minha aposentadoria. Nunca tive nenhum relacionamento com nenhuma ONG, nunca fui pago por fora, nunca recebi nada mais do que além do meu salário com o servidor público" -, vincou igualmente o do organismo que chefiava: "Esses dados sobre desmatamento da Amazónia, feitos pelo INPE, começaram já em meados da década de 1970 e a partir de 1988 nós temos a maior série histórica de dados de desmatamento de florestas tropicais respeitada mundialmente."

"Será que estamos de volta às trevas?"

Mas não ficou por aí: atacou diretamente Bolsonaro, reputando a sua atitude de "pusilânime e covarde", e os seus comentários de "impróprios", "mais parecendo conversa de botequim", e afirmando: "Disse que os dados do INPE não estavam corretos segundo a avaliação dele, como se ele tivesse qualidade ou qualificação de fazer análise de dados. (...) Sou republicano e [acredito] que ele tem várias propostas que vão em benefício do país, mas ele tem tido realmente comportamento que não respeita a dignidade e liturgia da Presidência."

E virou também os canhões contra Salles: "O ministro Ricardo Salles vem atacando, desde o começo do ano, os dados do INPE. Realmente não sei com que intenções. Algumas pessoas dizem que ele tem intenção de transferir esse trabalho feito pelo INPE para empresas privadas. Não sei se é verdade, porque ele aparentemente desmentiu."

Mais recentemente, a 16 de agosto, Galvão exprimiu, durante uma palestra na Universidade de São Paulo, a convicção de que o sistema Prodes, que o ministro Salles mencionou como o único fiável na entrevista deste sábado, "vai mostrar um aumento imenso do desmatamento". E que o sistema de monitorização privado de desmatamento que o ministro quer contratar - da empresa Planet - é apenas desperdício de recursos.

Lembrando que o desmatamento caiu entre 2004 e 2018 com o auxílio da informação do INPE, de 27 mil quilómetros quadrados para 7536 em 2018, recordou um debate com Salles em que o responsável pela área ambiental afirmou que "todas as instituições científicas do Brasil estavam aparelhadas pelo extremismo de esquerda", e o facto de os dados do INPE terem sido também postos em causa pelo governo Lula.

"As autoridades sempre se incomodam quando os dados dizem aquilo que eles não gostam de ouvir", comentou. "Devemos sempre lutar contra os assaltos à ciência, independentemente da nossa ideologia partidária ou política. Sempre que a ciência for atacada temos de nos levantar e nos colocar contra."

Perguntando "Será que estamos de volta às trevas?", o cientista deu a resposta: "Não, porque a comunidade académica e científica e o povo brasileiro não se calarão."

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