Guerra surda entre Trump e Fauci quando o coronavírus continua a crescer nos EUA

A Casa Branca tem tentado desacreditar o principal especialista em doenças infecciosas do país, crítico da resposta à pandemia. Nos EUA já foram confirmados mais de 3,3 milhões de casos de covid-19 e 135 mil mortes.
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O presidente norte-americano, Donald Trump, nunca escondeu que não concorda com aquilo que o principal especialista em doenças infecciosas dos EUA diz sobre o coronavírus. Ambos discordam no que diz respeito ao uso de máscaras, ao uso da hidroxicloroquina ou às medidas para reabrir a economia e Anthony Fauci tem-se tornado cada vez mais crítico da resposta da Administração à pandemia. Este fim de semana, a Casa Branca foi mais longe e procurou desacreditá-lo, lembrando que Fauci nem sempre teve razão.

"Tenho uma relação muito boa com o Dr. Fauci. Considerou-o uma pessoa muito simpática. Nem sempre concordo com ele", disse Trump aos jornalistas na segunda-feira, quando voltou a receber o diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas na Casa Branca. O último encontro tinha sido há mais de um mês. Na semana passada, o presidente tinha sido ainda mais direto: "O Dr. Fauci é um bom homem, mas cometeu muitos erros."

Fauci, diretor do instituto há quase quatro décadas, tem multiplicado nos últimos tempos as intervenções nas redes sociais e meios digitais (mas não na televisão onde precisa da autorização da Casa Branca para falar), criticando a resposta dos EUA à pandemia. Nunca aponta diretamente o dedo ao presidente, mas fica implícito.

"Como país, quando nos comparamos a outros países, acho que não podemos dizer que estamos bem, não estamos", disse, por exemplo, num podcast do site FiveThirtyEight na semana passada.

Uma mensagem que entra em contradição com aquilo que Trump, a quatro meses das presidenciais e numa altura em que surge atrás do democrata Joe Biden nas sondagens, tem tentado passar, defendendo que é hora de abrir o país e acabar com as restrições. Fauci defende que é preciso fechar onde há surtos.

Desde o início da pandemia já foram registados mais de 3,3 milhões de casos de coronavírus nos EUA, com o número de mortes a ultrapassar os 135 mil. A situação é especialmente complicada na Florida, um estado que tem mais casos de covid-19 do que muitos países - no número total, com mais de 280 mil, já ultrapassou a Itália, que tem três vezes mais população -, tendo registado um recorde de 15 300 novos casos no passado sábado.

Em vários estados, está a haver um recuo na abertura, como na Califórnia, que voltou a fechar bares e restaurantes, sendo que em 30 condados são também fechados ginásios, locais de culto, cabeleireiros ou centros comerciais.

Casa Branca e os "erros" de Fauci

Este fim de semana, a Casa Branca, em resposta às questões do The Washington Post, indicou que vários responsáveis da Administração Trump "estão preocupados com o número de vezes que o Dr. Fauci estava errado" e incluíram uma lista com aquilo que o especialista afirmou no início da pandemia. Uma lista que os media dizem ser semelhança às que são usadas para desacreditar um membro da oposição durante uma campanha eleitoral.

Na lista de erros estava, por exemplo, a dúvida de que as pessoas sem sintomas desempenhavam um papel significativo na transmissão do vírus ou as indicações, em finais de fevereiro, quando eram visíveis os primeiros casos de transmissão comunitária, de que "neste momento, não há necessidade de mudar o que estamos a fazer".

Contudo, a Casa Branca omitiu aquilo que Fauci disse a seguir na entrevista à NBC News. "Neste momento, o risco é ainda baixo, mas isto pode mudar. Quando começamos a ver transmissão comunitária, isto pode mudar e forçar-nos a estar muito mais atentos a fazer coisas que podem proteger-nos do contágio", disse, tendo também alertado para o facto de o coronavírus poder tornar-se numa "grande pandemia".

Outro ponto negativo que a Casa Branca aponta diz respeito ao uso de máscara, que inicialmente Fauci, como muitos outros especialistas, não recomendava e que agora defende aguerridamente. O especialista já indicou que numa altura em que havia falta deste material de proteção, era mais importante os médicos e profissionais de saúde terem acesso.

A ideia da Casa Branca é passar a mensagem de que, se no passado Fauci estava errado, agora também pode estar quando é contra a ideia de reabertura das escolas, por exemplo.

Despedir Fauci?

A 12 de abril, o presidente partilhou uma mensagem no Twitter onde precisamente se alegava que Fauci tinha dito em fevereiro que o coronavírus não representava uma ameaça e que terminava com a hashtag #FireFauci, desencadeando a ideia que de poderia despedir o diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas.

Contudo, o presidente não o pode fazer. Segundo a CNN, que cita a lei federal, Trump não tem o poder para demitir diretamente Fauci, que é um funcionário público de carreira e só pode ser afastado por motivos válidos. O presidente podia dar a ordem a alguém dentro da cadeia de comando para que Fauci fosse afastado, mas este teria o direito a recorrer e haveria pela frente um longo processo.

O presidente pode contudo afastá-lo da equipa de resposta ao coronavírus, mas isso também pode ter consequências para Trump. Segundo uma sondagem do The New York Times de finais de junho, 67% dos norte-americanos confiam no que Fauci diz sobre o coronavírus, contra 26% que confiam em Trump. Só entre os republicanos há maior confiança em Trump (66%) do que em Fauci (51%).

"A tentativa repugnante do presidente de passar a culpa ao principal especialista em doenças infecciosas no país -- cujos conselhos ele repetidamente ignorou e Joe Biden implorou repetidamente que seguisse -- é só outra prova horrível e reveladora da falta de liderança enquanto o número trágico de mortes continua a crescer desnecessariamente", indicou o porta-voz da campanha do ex-vice-presidente democrata, Andrew Bates, criticando os ataques da Casa Branca a Fauci.

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