13 maio 2016 às 01h55

Entre risos infantis e a falta de esperança dos refugiados sírios no campo de Nizip 2

O DN visitou um campo de refugiados sírios em solo turco, onde estes procuram recuperar as rotinas de uma vida sem violência e as crianças não parecem conhecer o medo. Mas a duração do conflito faz os adultos pensar que este campo será a sua casa por "muitos anos".

Abel Coelho de Morais

"Mas o melhor do mundo são as crianças." Talvez nunca o verso de Fernando Pessoa seja tão real e verdadeiro como naquele que é o mais inesperado dos cenários: um campo de refugiados sírios no Sudeste da Turquia. Chama-se Nizip 2 e nele vivem cerca de cinco mil pessoas, das quais mais de 2500 são menores que enchem o ar com os seus gritos e risos, correndo ao encontro de um grupo de jornalistas estrangeiros que visitaram o campo no início de maio no âmbito da apresentação pelo governo de Ancara da Cimeira Humanitária Mundial, que decorre nos dias 23 e 24 em Istambul.

Numa visita guiada de quase quatro horas foi possível conhecer de perto aquele que é considerado um campo-modelo de refugiados, onde existe um centro de saúde, um mercado, um espaço social, uma mesquita e se estuda desde a pré-primária até se concluir o ensino secundário. Foi pelas salas da pré-primária que começou a visita, sendo os jornalistas saudados com as vozes estridentes das crianças interpretando canções em árabe. Entre elas, o pequeno Saladino, que nasceu em Nizip 2 há três anos.

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As mesmas crianças e outras mais velhas acompanharam os jornalistas enquanto percorriam o campo, dedicando-se muitas delas à troca de apertos de mão com os adultos, repetindo-os uma e outra vez num momento lúdico que querem prolongar indefinidamente. Quanto mais tempo dura este jogo de apertos de mão, em que vale utilizar quer a direita quer a esquerda, maior e mais aberto é o sorriso nos seus rostos; quanto mais breve esta interação, mais breve é o sorriso que, em alguns momentos, se torna mesmo uma expressão de perplexidade. Quanto mais novas, maior atenção querem e maior disponibilidade mostram para conviver com os jornalistas. Um dos mais significativos exemplos desse desejo de atenção foi a de uma criança do sexo feminino, de 5 anos, que ao longo de quase toda a visita ao campo nunca deixou de dar a mão a uma representante do MNE turco que acompanhava os jornalistas. E à hora da partida permaneceu perto do portão de saída até o autocarro deixar o campo.

Um outro caso foi o de duas outras petizes que insistiram, por gestos, com o jornalista do DN para trocarem apertos de mão (claro!) e serem fotografadas na "tenda" que tinham erguido junto à vedação para a única boneca com que brincavam, após o fim das aulas. O início e o fim destas é assinalado ao som de um tema popular dos anos 70, da autoria de Giorgio Moroder, Lonely Lovers Symphony, baseado na pequena peça Para Elisa, de Beethoven.

Mas estes detalhes de afeto e alegria - protagonizados por crianças já nascidas em Nizip 2 ou demasiado pequenas para guardarem uma memória real da violência na Síria - não são suficientes para fazer esquecer a dureza do conflito que obrigou as suas famílias a procurar refúgio na Turquia.

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"Acabou por morrer"

Yaman, de 38 anos, através de um tradutor, conta como fugiu da Síria "com mais pessoas da família". O percurso foi "feito a pé" desde uma localidade na província de Raqqa, hoje um dos bastiões do Estado Islâmico (EI). Pelo caminho, ficou um familiar incapaz de prosseguir devido a ferimentos graves sofridos numa queda acidental. "Acabou por morrer", diz secamente Yaman.

Num outro corredor dos contentores que servem de casa aos refugiados, Ahmed e Khadija convidam alguns jornalistas a entrar para verem como se pode viver num espaço de 21 metros quadrados. Equipados com ar condicionado, parabólica, cozinha e água corrente, todos os contentores têm as mesmas dimensões e tanto podem abrigar três como seis ou sete pessoas. Apesar disto, Ahmed afirma que "aqui a vida é boa". "Temos tudo o que precisamos." Mas claro que tem saudades da Síria, onde precisamente na região de Aleppo, de onde é natural a família, o filho mais velho, de 28 anos, combate nas fileiras do Exército Livre da Síria. O segundo filho, ainda adolescente, está com os pais no campo.

Em contentores vizinhos, alguns tentam ampliar o espaço restrito que lhes cabe; fazem pequenos canteiros, improvisam toldos, o que lhes permite passar mais tempo no exterior, onde recriam salas de estar de ocasião. O chão pavimentado e as temperaturas amenas da época são um convite a isso mesmo.

Khadija explica que o contacto com o filho mais velho e com outros familiares e amigos se faz por WhatsApp, ainda que nem sempre seja possível a ligação. A mulher síria lembra que decidiram partir quando perderam "toda a esperança". Hoje, continuam "sem esperança". A razão é simples: "A guerra não vai acabar", remata, por seu turno, Ahmed, que adianta terem "morrido 25 pessoas" só na sua família.

Ao contrário de Yaman, Ahmed e Khadija fizeram "a viagem de carro", há três anos, quando perceberam que "Assad é ainda pior" do que o EI e "nunca largará o poder por vontade própria". Por isso, Khadija, "como está a situação na Síria", a Turquia vai ser a sua casa "por muitos anos", quer seja "no campo ou noutro sítio". Nos centros urbanos e noutras localidades da província de Gaziantep, onde se situa Nizip 2, vivem atualmente quase 300 mil sírios; nos campos da província, são 50 mil, dissera o governador adjunto Halil Uyumaz, num encontro que precedeu a deslocação.

Só no vizinho Nizip 1, um campo de tendas, vivem quase 11 mil refugiados, dos quais mais de metade são menores de 18 anos. Em Nizip 2 são 2235 adultos e 2589 crianças e adolescentes.

Opinião semelhante à de Khadija tem Yasmin, uma mulher já idosa que pedala uma máquina de costura, em que ensina outras mulheres e jovens a confecionar ou a arranjar roupa. "Ninguém pode dizer quanto tempo vamos ficar aqui", diz a síria que tem perto de si, junto de uma outra máquina de costura, algumas jovens, quase todas usam o hijab (lenço que cobre os cabelos e o pescoço) ou o chador (véu negro que pode ou não cobrir também o rosto com exceção dos olhos) ou ainda o niqab (máscara negra que deixa apenas os olhos e um pouco da cana do nariz visíveis). As roupas são também maioritariamente pretas, quer seja sob a forma de manto ou de longos casacos, que se prolongam até aos tornozelos, totalmente abotoados.

"É mais seguro ficar no campo"

"Estaria mais feliz na Síria", conclui Yasmin depois de contar a história da saída do país em quase tudo semelhante a outras ouvidas no campo. O único traço distintivo é a presença de aspetos mais tristes e sombrios: a morte de um familiar ou de um companheiro de viagem antes de conseguirem chegar a território turco, ou a notícia de que alguém não completou a travessia da Turquia para a Grécia. Por isso, Ahmed pensa que "é errado ir para a Europa". Para ele, "é mais seguro ficar no campo".

Para populações em fuga a um brutal conflito que dura desde a primavera de 2011, Nizip 2 é, talvez, a melhor alternativa. As medidas de segurança são rigorosas: há patrulhas militares no exterior do campo, arame farpado e portões protegem o acesso. Fugitivos à violência do regime de Bashar al-Assad e à crueldade dos islamitas, também aqui poderiam ser alvo de represálias de ambos.

No entanto, como é explicado por um dos responsáveis do campo, cerca de cem famílias, ao longo dos últimos três anos, trocaram-no pelo regresso à Síria, em momentos em que o conflito pareceu acalmar, ou conseguiram encontrar emprego e residência no exterior. Atualmente, as leis turcas permitem que até 10% da força de trabalho numa empresa seja de nacionalidade síria.

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No campo são ainda ministrados alguns cursos vocacionais para facilitar o acesso dos refugiados ao mercado de trabalho e, em horário pós-escolar, aulas de inglês e turco.

Alguns dos refugiados encontraram trabalho nas localidades vizinhas e viajam diariamente entre Nizip 2 e o emprego, tendo de regressar até às 18.00. Quando partia o autocarro com o grupo de jornalistas, várias carrinhas iam chegando ao terreiro fronteiro à entrada do campo.

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Faltavam dez para as seis e muitos, homens e mulheres, alargavam o passo para chegar mais depressa a casa, ainda que esta seja um pequeno contentor num outro país, onde vivem agora "como convidados", dissera o governador adjunto de Gaziantep nessa manhã. Mas não deixara de reconhecer, parafraseando um provérbio turco, que "os sírios são como um pássaro preso numa gaiola. Têm saudades dos espaços livres da sua terra".

Gaziantep