Divisão na igreja católica brasileira explode com Bolsonaro

Bispos da ala progressista dizem que presidente "incita o ódio" e padre chama-o de "bandido". Enquanto isso, donos de emissoras católicas oferecem "notícias positivas" ao governo em troca de dinheiro. A cúpula da igreja demarca-se.

"Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?", lê-se na "Carta ao Povo de Deus", documento crítico ao governo de Jair Bolsonaro assinado por 152 arcebispos e bispos da Igreja Católica divulgado na imprensa brasileira na semana passada.

Na sequência, a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), maior autoridade eclesiástica do país, sublinhou que o texto "é da responsabilidade dos signatários".

Mas, em seguida, 1058 padres do país assinaram um manifesto a favor da carta dos 152 arcebispos e bispos em que se sublinha "a omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres", além da "incapacidade para enfrentar crises" e o "desprezo pela educação, cultura, saúde e diplomacia", gerando uma "crise sem precedentes na saúde" e "um avassalador colapso na economia" graças "à tensão provocada em grande medida pelo presidente da República".

"Uma situação visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga e nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros", defendem, entre outros, o arcebispo emérito de São Paulo, dom Claudio Hummes, o bispo emérito de Blumenau, dom Angélico Bernardino; o bispo de São Gabriel da Cachoeira, dom Edson Damian; o arcebispo de Belém, dom Alberto Taveira Corrêa, e o bispo emérito do Xingu, dom Erwin Krautler.

O professor Flávio Sofiati, especialista em sociologia da religião da Universidade Federal de Goiás, diz ao DN que "não é novidade a divisão política da igreja católica" mas que, "no governo Bolsonaro, por ter características fascistas, ela vem se intensificando, se tornando mais mediática".

"Voto em Bolsonaro é pecado"

A carta e os seus desdobramentos não foi o único episódio recente dessa divisão: durante a missa do dia 2 de julho na cidade de Artur Nogueira, a 150 km de São Paulo, o padre Edson Tagliaferro disse aos fiéis que "este governo não presta". "Bolsonaro não vale nada e quem votou nele deveria se confessar e pedir perdão pelo pecado que cometeu, elegeu um bandido", afirmou.

A mensagem do religioso chegou à internet. No meio dos ataques e das perseguições, Tagliaferro foi criticado também pelo bispo da sua região, dom José Palau, que pediu desculpas aos atingidos "até porque as opiniões não representam a diocese".

Na sequência, porém, o padre em causa recebeu apoio de 300 párocos: "Viemos nos solidarizar com você, nosso irmão (...) Nós alegramo-nos com a sua voz profética que se levanta para denunciar todo esse projeto de morte que vem sendo implantado! Saiba que você não está sozinho. Conte sempre connosco e com nossa solidariedade".

"Uma media positiva"

A 21 de maio, entretanto, Bolsonaro fez uma videoconferência com proprietários de emissoras de televisão católicas que pediram mais investimentos do governo em troca de "media positiva" nos seus noticiários.

"A nossa realidade é muito difícil e desafiadora, porque trabalhamos com pequenas doações, com baixa comercialização. Dentro dessa dificuldade, estamos precisando mesmo de um apoio maior por parte do governo para que possamos continuar comunicando a boa notícia, levando ao conhecimento da população católica, ampla maioria desse país, aquilo de bom que o governo pode estar realizando e fazendo pelo nosso povo", disse o padre Welinton Silva, da TV Pai Eterno.

"Queremos estar nos lares e ajudar a construir esse Brasil. E, mais do que nunca, o senhor sabe o peso que isso tem, quando se tem uma media negativa. E nós queremos estar juntos", afirmou o padre Reginaldo Manzotti, da TV Evangelizar.

Bolsonaro disse sentir-se "fortalecido" com a reunião e prometeu ajuda.

Diana Maia, da Articulação das Pastorais Sociais da Arquidiocese de Fortaleza, reagiu negativamente: "Para nós é trair o próprio evangelho, uma vez que o atual presidente demonstra ser insensível com a dor de milhares de famílias que estão perdendo seus entes por conta da pandemia da covid-19, desempregados, indígenas que são assassinados, pessoas em situação de rua (...). Não podíamos ficar calados diante de um ato que, atenta contra a própria fé católica, por isso, decidimos de início expressar nossa indignação e posicionamento nessa carta".

A CNBB disse desconhecer a realização da reunião.

Quatro faces

"A própria CBNN é muito dividida", explica Flávio Sofiati. "O presidente [dom Walmor de Azevedo] é de esquerda, o secretário-geral [dom Joel Amado], que é quem conduz a agenda da igreja, de direita". "Neste momento", continua, "eu diria que um terço da CNBB é de esquerda, outro de direita e um terceiro é moderado".

Para o investigador, "é importante notar que temos não um mas alguns catolicismos, tendências, faces, modelos, cenários". "Eu distingo quatro correntes, a tradicionalista, conservadora no método e no conteúdo, a carismática, conservadora no conteúdo mas moderna no método, por integrar padres cantores e outras ações do género, a reformista, com padres ligados a setores da educação ou dos direitos humanos, e a radical, que professa a teologia da libertação [corrente sobretudo sul-americana ligada à esquerda]".

"Esta última ala foi muito próxima de Lula, enquanto a ala da renovação carismática se aproximou bastante de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, mas esta é uma questão política, na prática, na vida real, na missa comum, estas fronteiras transbordam", acrescenta Sofiati.

O Papa Francisco é outro divisor claro. Para Lula, em recente entrevista aos correspondentes estrangeiros em são Paulo, "ele sabe do que fala, ele tem lado, o lado dos pobres e desprotegidos". Segundo Bolsonaro, "o papa é argentino mas Deus é brasileiro".

De católico a evangélico

Bolsonaro aproximou-se do protestantismo a propósito das últimas eleições que acabaria por vencer - sentiu pontos de contacto entre o seu programa e as pregações da maioria dos pastores e reverendos Brasil afora.

No início de 2018, em pré-campanha eleitoral, o católico de formação foi batizado pela segunda vez na vida, desta vez pelo Pastor Everaldo, presidente do Partido Social Cristão, nas águas do rio Jordão, em Israel.

Em setembro do ano passado, o terceiro batismo. Edir Macedo, bispo da IURD, chamou o presidente da República ao altar num culto da sua igreja, pôs as duas mãos na cabeça do ex-capitão do exército e disse "fazer uso de toda a autoridade concedida por deus para abençoar este homem, para lhe dar sabedora, para que este país seja transformado, para que faça um novo Brasil".

"O mundo, sobretudo o Sul Global, está em processo de pentecostalismo, estima-se que dos 2,2 mil milhões de cristãos, 600 milhões sejam pentecostais, já uns 25%", alerta Sofiati.

No Brasil, segundo estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no próximo ano fiéis do Papa Francisco já podem somar menos de metade da população do ainda "maior país católico do mundo". E, em 2032, o mesmo estudo aponta para uma ultrapassagem dos pentecostais aos católicos.

"As lideranças evangélicas estão com ​​​​​​Bolsonaro mas, ao contrário das católicas, elas estão sempre com os poder, também estiveram com Fernando Henrique Cardoso e também estiveram com Lula", recorda Sofiati.

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