De Little Portugal a Chinatown: cabem todos os Canadás em Toronto
Nos 150 anos do país, a maior cidade, onde convivem 120 nacionalidades e metade da população nasceu noutro país, é o melhor exemplo de inclusão e multiculturalidade.
Com os folhetos expostos num mostrador montado diante do edifício antigo da Câmara Municipal de Toronto, o senhor Lu e a senhora Cooper - assim, sem nome próprio para manterem o anonimato - tentam chamar a atenção de quem passa para a mensagem das Testemunhas de Jeová. Sobre política não podem falar e recusam também ser fotografados. Mas isso não os impede de elogiarem o país que os recebeu. No caso de Cooper, aos pais, vindos da Jamaica há 35 anos, três antes de esta mulher esbelta, de saia e blusa azuis, óculos de sol na cabeça, nascer, "aqui em Toronto".
"É um bom sítio para se viver", garante a assistente social, sem querer dizer muito mais. Calado até então, protegido do sol forte de final de junho por um chapéu de palha, o senhor Lu aponta a liberdade de expressão como uma das características que mais gosta no país que o recebeu há 41 anos, quando chegou de Taiwan. "Senti-me bem-vindo", lembra, mas admite que "é cada vez mais difícil criar uma família neste país". E a sua maior queixa é o preço das casas, que disparou em Toronto.
Ali ao lado, na Praça Nathan Phillips, frente ao edifício da nova Câmara Municipal, os ares já são de festa, mesmo se ainda faltam uns dias para 1 de julho, o 150.º aniversário do Canadá - uma data que assinala o reconhecimento pela rainha Vitória da Confederação do Canadá. Apesar desta separação, o Canadá continua a ter no monarca britânico, atualmente Isabel II, o seu chefe do Estado, sendo esta representada pelo governador-geral - desde 2010 um cargo ocupado por David Johnston.
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Junto ao espelho de água, turistas tiram selfies com as letras garrafais com o nome da cidade e basta alguma atenção para ouvir uma babel de línguas - inglês, claro, mas também espanhol, italiano, português, hindi, árabe, chinês, e muitas outras mais difíceis de identificar. Curiosamente, o francês, língua oficial e dominante em partes do Canadá como o Quebeque, é uma raridade.
Para conhecer a cidade, pode contar-se com a experiência de Javier Martinez Gonzalez. Num português espanholado, o guia vai mostrando as zonas de maior interesse, enumerando o desfile de bancos no distrito financeiro, explicando que o edifício da Ontario Gallery of Art exibe uma espécie de canoa de vidro e madeira da autoria de Frank Gehry, o famoso arquiteto nascido e criado na cidade. A CNTower, a Casa Loma, um castelo mandado construir por um milionário e que agora é museu, mas também nos dá uma ideia da vida na cidade que recebi os seus avós vindos do México, depois de a família ter saído de Espanha. Trânsito caótico, mas respeito irrepreensível pelas regras de trânsito (aqui ninguém atravessa fora da passadeira), saúde e educação gratuita mas sem que isso inclua as especialidades de medicina e o ensino superior. "É uma cidade maravilhosa, ganha-se muito bem mas também é muito cara", explica este homem pequenino e grisalho, apontando também o preço das casas como um dos maiores desafios à bolsa de qualquer torontoniano.

Turistas tiram fotos às letras da cidade de Toronto, junto à Câmara
Percorrer as intermináveis ruas de Toronto - seja a interminável Yonge Street (há quem diga que tem 1896 km e vai até ao Minnesota), a King ou a Queen Street- é a melhor prova de que a fama de multiculturalismo e inclusão do Canadá é tudo menos exagerada. Sikhs de turbante, jovens negros de rastas, asiáticos de fato e gravata, famílias com bebés loirinhos passam por nós junto a lojas cujos nomes também refletem a realidade de uma metrópole com quase três milhões de habitantes - mais de 50% nascidos fora do Canadá. A conviver com as Zara e H&M, a Timbuk2 vende malas e acessórios, a Titika, roupas de ginástica e a Arc"Teryx vende material para atividades ao ar livre. Mas basta subir para a Dundas Street para chegar a outro mundo: a Chinatown. Ali os letreiros das lojas estão todos em caracteres chineses e de manhã a azáfama é grande, com empregados a carregar caixotes de fruta e patos a rodar nas montras.
Até apanhar um táxi em Toronto é a melhor maneira de contactar com habitantes das mais variadas origens. Para lá é Imran, chegado do Bangladesh há três décadas, quem está atrás do volante. "Toronto é uma cidade excelente", vai explicando o motorista. "Tem gente diferente. Temos o Little Portugal, Chinatown, temos italianos, espanhóis, indianos, etc. E todos se dão bem", conta enquanto se queixa do trânsito, caótico apesar de ser meio da tarde. Habituado ao clima do Bangladesh, onde ainda visita a família com alguma frequência, este homem franzino de 50 e tal anos, admite que o mais difícil quando chegou foi o inverno. "São muitos meses de frio. Temos verões mesmo muito curtos".
A viagem de regresso é feita a ouvir as histórias de Elliot. O motorista está há mais de 50 anos no Canadá, tendo trocado as Barbados por Toronto. Hoje tem cá a família e vai entretendo os clientes com a história do dia em que um cliente "todo bem vestido" lhe entra no táxi, pede para o levar ao destino e sai sem pagar por não ter dinheiro.
Onde as minorias se tornaram a maioria
"A 1 de julho vamos celebrar os 150 anos da Confederação. A união de quatro colónias britânicas (Canadá Oriental/Quebeque, Canadá Ocidental/Ontário, New Brunswick, Nova Scotia) para criar uma entidade unificada, federada chamada Domínio do Canadá", explica Henry Vivian Nelles. O historiador, autor de A Little History of Canada, livrinho de capa vermelha com a folha de ácer da bandeira canadiana à branca que se encontra à venda em qualquer livraria de Toronto por 19,95 dólares canadianos (13,40 euros), lembra que se, partindo desta data, o Canadá é um país "recente", a verdade é que "a história da ocupação territorial europeia na região do Canadá tem mais uns mil anos". Ao DN o historiador recorda "as viagens dos vikings, e mais tarde as expedições de portugueses e espanhóis para a pesca e a caça à baleia". Foi João Fernandes Labrador o primeiro português a chegar à costa do atual Canadá, em 1499-1500, dando nome àquela região. Um ano depois chegaram os irmãos Gaspar e Miguel Corte-Real, tendo acabado por desaparecer ambos naquela terra.
Definindo o Canadá como "uma história de transição e negociação", Nelles rejeita a ideia de que a sociedade do Canadá é um mosaico cultural, em contraste com o melting pot dos EUA. Para o historiador, estes são "conceitos datados", sobretudo num momento em que "a imigração em massa alterou a natureza da comunidade canadiana". E admite: "Não conheço uma metáfora adequada para um país onde as minorias se tornaram a maioria".
"A Diversidade é a Nossa Força"
Ana Bailão sente essa realidade na pele todos os dias. A vereadora responsável pela pasta da Habitação no executivo camarário nasceu em Vila Franca de Xira há 40 anos e chegou a Toronto com 15. Hoje representa 50 mil pessoas, na maioria portugueses, ou não fosse a zona pela qual foi eleita em 2010 e reeleita em 2014 uma zona onde a comunidade é ainda forte. Mas também italianos, muitos latinos, vietnamitas... Sentada no seu gabinete com vista para a Praça Nathan Phillips, Ana Bailão não resiste a contar uma história que diz mostrar o espírito de uma cidade cujo lema é "A Diversidade é a Nossa Força". "Testemunhei isso durante a construção de um parque público", explica. Os moradores foram desafiados a escolher o nome e optaram por Parque Pessoa. "Por duas razões: primeiro porque Pessoa quer dizer person, people e eles acharam engraçado. Depois porque aquela é uma área com forte componente artística, cheia de hipsters, de galerias e foi uma maneira de homenagear a comunidade portuguesa através de um dos seus maiores poetas". E remata: "Isto é viver o nosso lema."
Ana Bailão cresceu em Little Portugal, no meio de uma comunidade que faz quem ali chega sentir-se como se estivesse numa cidade portuguesa. Apesar de ao fundo espreitar a CN Tower, com o seu restaurante que gira a 360 graus enquanto os clientes vão jantando e apreciando a vista sobre a cidade e as ilhas no lago Ontário onde muitos torontonianos gostam de passar os dias de calor, depois de lá chegarem nos seus próprios barquinhos. Ali, quem percorre a Dundas Street, entre as avenidas Ossington e a Lansdowne, vê muitas - mesmo muitas - bandeiras de Portugal a partilhar o protagonismo com a canadiana, cartazes com um galo de Barcelos alinham-se ao longo de uma rua onde se encontra a Ervanaria Lagoa, a Papelaria Portugal - com uns pratos do Benfica, Sporting e Porto expostos à entrada - ou a Nova Era Bakery. É também ali que Mário F. Santos, "doutor da vista", partilha o anúncio na porta com Rui A. Gomes, que oferece serviços legais a imigrantes, e Cristóvão Branco, especialista em acupuntura. Ou não fosse esta uma das maiores comunidades num país onde vivem cerca de meio milhão de portugueses.

O historiador Gilberto Fernandes na Galeria dos Pioneiros Portugueses
E se os pais da vereadora Ana Bailão só chegaram a Toronto há 25 anos, a imigração em massa de portugueses para o Canadá começou em 1953 com a chegada do navio Saturnia. As fotos do momento ilustram as paredes da Galeria dos Pioneiros Portugueses, espécie de museu da imigração portuguesa no número 960 da St. Clair Avenue West. Uma zona onde os portugueses estão a instalar-se cada vez mais, explica Gilberto Fernandes. O professor e investigador lembra que a vinda dos portugueses resultou de "um acordo entre os governos de Lisboa e de Otava", com o executivo canadiano a pedir trabalhadores. Muitos vieram dos Açores, mas também muitos "continentais", como lhes chama, sobretudo do Norte do país. Os motivos eram os mais variados, fosse fugir à pobreza e à falta de opções, primeiro, evitar a guerra colonial ou escapar ao regime de Salazar, mais tarde.
Hoje a comunidade, "tem projeção, tem peso", lembra Gilberto Fernandes, sublinhando que não só está muito bem integrada como é muito apreciada pelos canadianos. Nos últimos anos a imagem de Portugal melhorou ainda mais. E o futebol tem uma grande responsabilidade nisso. "O futebol tem um poder cultural tremendo." E isso talvez explique em parte porque os lusodescendentes mais jovens se identificam tanto com o país. "Ser português nos anos 1960 ou 70 não tinha qualquer benefício, pelo contrário. Hoje é diferente", explica.
E dá o exemplo de Nelly Furtado como "pioneira". "Goste-se ou não", diz, "foi das primeiras artistas de pop music internacional a afirmar uma identidade étnica, neste caso a portuguesa". Mesmo admitindo que isso não a deve ter ajudado a vender muitos discos na altura.
Mas se Portugal mudou muito e agora até "está na moda", o Canadá tem passado nos últimos anos por um processo não muito diferente - apesar da sua dimensão de gigante. "O Canadá em vários aspetos é parecido com Portugal", garante Gilberto, sentado à mesa da biblioteca da galeria. Na sala ao lado há vários objetos alusivos a Portugal, muitos trazidos pelos imigrantes: uma máquina de costura Singer, vários instrumentos musicais, máquinas de escrever ou relógios antigos. "É o segundo maior país do mundo em termos de área mas é um país pequeno, só tem 35 milhões de pessoas", lembra. Antes de acrescentar que chega a ter "uma mentalidade de país pequeno", como quando ainda se espanta de ver um canadiano fazer sucesso em Hollywood, mesmo tendo dado estrelas como Ryan Gosling, James Cameron ou Michael J. Fox.
O soft power é outro aspeto que o historiador vê em comum entre Portugal e o Canadá. E recorda o espanto que causou no país para onde imigrou há 14 anos quando Portugal ganhou o lugar no Conselho de Segurança da ONU que os canadianos ambicionavam.
Falar de Canadá hoje é impensável sem falar de Justin Trudeau. O primeiro-ministro com aspeto de príncipe de conto de fadas chegou ao poder em 2015 e conseguiu pôr o mundo a falar do Canadá. "Também é uma questão de contexto", alerta Gilberto, lembrando que Trudeau surgiu "quase ao mesmo tempo do fenómeno Donald Trump. E da ascensão da extrema-direita na Europa. Por isso ele aparece como um arauto liberal no mundo ocidental". A comparação com o vizinho do Sul é incontornável. Com Gilberto Fernandes a lembrar que perante a história muitas vezes violenta dos EUA, os canadianos se veem como uma versão "melhor e mais polida dos americanos", sublinhando que é a ideia que as pessoas têm do Canadá. Mas faz questão de recordar que aqui também há "muitas desigualdades". E a ferida com os povos indígenas está bem aberta ainda no presente. Com as reservas a apresentarem "taxa de desemprego e de suicídio tremendas".
Esse é um dos problemas a que Trudeau tem dado muita atenção. Campeão da inclusão, o ex-professor, que gosta de exibir a tatuagem no ombro em combates de boxe e de fazer flexões no gabinete, não hesita em aparecer de turbante na festa dos sikhs, celebra o Hanukkah com os judeus, e na última parada gay em Toronto, que coincidiu com o final do Ramadão, exibiu meias com as cores do arco-íris, símbolo da comunidade LGBT, mas também com o crescente e a estrela do islão. Jovem, bem parecido, com três filhos pequenos e uma mulher fotogénica, Trudeau venceu o primeiro-ministro Stephen Harper em 2015, pondo fim a quase dez anos de domínio do Partido Conservador.
Mas se a nível internacional o líder canadiano é o queridinho dos media e uma voz forte na defesa de um mundo mais inclusivo, no Canadá nem todos estão muito convencidos com as sua política, acusando-o de não ter feito assim tanta coisa, além de não lhe perdoarem, por exemplo, a autorização para a construção de dois oleodutos quando se diz defensor do ambiente. "Há muitos progressistas - como eu - que votaram em Trudeau e estão muito desiludidos. Sobretudo com o recuo dele na promessa de mudar o sistema eleitoral para o tornar mais proporcional", explica o historiador. Mas também destaca a assinatura de um contrato de venda de armas à Arábia Saudita como uma má política deste governo. "Claro que também fez coisas boas", diz, destacando um executivo diverso e com paridade de género.

Há dois anos o Working Women Community Center começou a ajudar refugiados sírios
Refugiados
Um dos problemas em que Trudeau também concentrou esforços foi no dos refugiados. O governo aumentou o número de entradas durante o pico da crise. Foi em Toronto que o primeiro-ministro recebeu os primeiros sírios em dezembro de 2015, com as imagens do jovem líder a entregar casacos às famílias de migrantes a serem reproduzidas nos jornais de todo o mundo. E é na integração destes que se concentra parte do trabalho do Working Women Community Center. É nas suas instalações que a diretora-executiva Marcie Ponte recebe o DN, ladeada pela gestora de programas Vanda Henriques e pela conselheira Anabela Nunes. Criado em 1974 o centro começou por trabalhar com mulheres portugueses, muitas vindas de São Miguel, nos Açores, alargando o raio depois a latino-americanas, na maioria chilenas e brasileiras.
"Estas eram mulheres parecidas com a minha mãe", conta Marcie Ponte, nascida em Santa Maria mas cuja família vivia em São Miguel antes de emigrar para o Canadá. Muitas não falavam inglês, não tinham experiência profissional e o centro ajudava-as a encontrar emprego. Marcie tinha 18 anos na altura, mas fez parte da primeira direção. Diretora executiva desde 1999, a lusodescendente, que já prefere o inglês para uma conversa profissional, explica que como "Toronto mudou", também o seu trabalho teve de se adaptar aos novos tempos.
E nos últimos dois anos esse trabalho passou a incluir o acolhimento de refugiados - com o centro a destacar inclusive dois funcionários para receber estas pessoas no aeroporto. "Procurámos criar um programa que ajudasse à integração deste grande número de sírios que chegaram com famílias muito grandes", explica Vanda Henriques. Forneceram alimentos, ajudaram a procurar emprego e a escrever currículos em inglês, sobretudo porque muitas daquelas pessoas vinham da classe média-alta, tendo bons empregos no seu país. "É incrível o nível de educação destas pessoas!", exclama Vanda.
Muitos ainda estão em Toronto, mas as histórias de sucesso multiplicaram-se por todo o país, com Marcie a lembrar a história de uma família de chocolateiros sírios em Halifax. "Toronto é uma cidade muito acolhedora", concordam todas, com Anabela a saudar o "trabalho fantástico" que o primeiro-ministro Justin Trudeau tem feito. A conselheira lamenta que dez anos de governos conservadores tenham introduzido tantas barreira à imigração. Com o executivo liberal, alguns entraves foram levantados e o processo simplificado.
Ouvir francês nas cataratas

Ir a Toronto e não visitar as cataratas do Niagara é um pouco como ir ao Vaticano e não ver o papa
Ir a Toronto e não visitar as cataratas do Niágara, a uma hora e meia de carro, é um pouco como ir ao Vaticano e não ver o papa. E diante da força da água, cujo vapor à medida que nos aproximamos transforma uma manhã quente de verão num dia de chuva, ouve-se finalmente uma conversa em francês. Podiam ser turistas, mas não. Muriel e Pierre vieram de Montreal de propósito para visitar as cataratas. Ainda a tirar as capas de plástico que lhes deram antes de entrarem no barco que os levou quase até ao centro da queda de água, o casal não esconde o entusiasmo. "É fantástico!" Questionados sobre a aparente falta daquele bilinguismo que os documentos oficiais exibem, admitem: "Aqui poucos falam francês, no Quebeque é ao contrário! Mas somos todos canadianos."
A jornalista viajou a convite da TAP para o voo inaugural Lisboa-Toronto