Coronavirus. Fim das férias e risco de agravamento. Vem aí a semana que pode mudar tudo

Com o fim das celebrações do Novo Ano chinês, o povo volta ao trabalho - e o risco de agravamento do coronavírus acentua-se. Especialistas em assuntos chineses falam também de riscos políticos para o Partido Comunista Chinês
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Frédéric Lemaître é o correspondente do jornal francês "Le Monde" em Pequim. Num artigo publicado este domingo, o jornalista não hesita: esta segunda-feira começa "a semana em tudo pode mudar". Por um lado, correndo-se um risco de agravamento da epidemia, com muitos milhões de chineses a regressar ao trabalho depois das celebrações do Ano Novo. Só que, acrescenta, "o risco também é político" já que "as críticas às autoridades estão a aumentar".

O jornalista fala mesmo num "vulcão prestes a acordar". "Tanto os empregadores quanto os funcionários precisam de retornar ao trabalho por razões económicas óbvias". Shenzhen, Cantão, Xangai e Pequim são cidades gigantes, cada uma com mais de 20 milhões de habitantes - e vão emergir agora da sua letargia". Só em Pequim, há oito milhões de chineses a regressar de uns dias de descanso na província. Tudo isso coloca pressão extra sobre as autoridades sanitárias e, claro está, sobre as autoridades políticas que as tutelam.

No South China Morning Post, um jornal em inglês sedeado em Hong Kong, sucedem-se as vozes dizendo que o coronavírus põe em causa o sistema político na China - e sobretudo a sua difícil relação com a transparência, com a necessidade de manter o povo informado, e com opiniões que alertam para situações potencialmente graves em desenvolvimento.

Cary Huang, um veterano do comentário político sobre assuntos chineses, escreveu: "O percurso da epidemia e as respostas do Governo levantam questões profundas sobre a capacidade e o dinamismo do sistema de governo de partido único da China." Porque "sob o sistema de censura draconiano do partido, qualquer informação sobre epidemias é um segredo de Estado".

Sendo certo, considerou o colunista, que, "agora", a liderança da China "está a fazer tudo para conter o vírus", tendo até recebido "aplausos internacionais pela enorme escala de sua mobilização e as medidas drásticas contra o coronavírus" (por exemplo: a "construção de vários hospitais temporários do zero em apenas algumas semanas" ou ter "trancado dezenas de milhões de pessoas em quarentena em mais de duas dúzias de cidades"), a verdade que esta "saga", "expôs mais uma vez as contradições e falhas inerentes" a um sistema político que vive com base na "auto-aclamação".

Aconteceu que a China perdeu a melhor oportunidade de conter a disseminação do vírus - que seria logo que surgiram os primeiros sinais, "porque as autoridades adiaram - ou possivelmente encobriram - a divulgação de informações e demoraram a tomar medidas de precaução". "O primeiro paciente que apresentou sintomas foi encontrado em 1 de dezembro de 2019, sugerindo que a origem da doença era ainda mais precoce. E há algumas evidências de transmissões homem-a-homem desde o final de dezembro, com mais emergências no início de janeiro, quando vários trabalhadores médicos foram infetados".

Ora "essas informações vitais não foram divulgadas ao público a tempo" e não foram "tomadas medidas decisivas entre o início de dezembro e 23 de janeiro, o dia em que Pequim falou ao mundo sobre a gravidade da epidemia e lhe declarou guerra, apenas dois dias antes do Ano Novo Lunar de 25 de janeiro".

De facto, na semana antes "as vidas continuavam normalmente em Wuhan". Exemplos: "Em 18 de janeiro, o governo de Wuhan organizou um banquete com a participação de mais de 40 mil famílias, numa tentativa de estabelecer um recorde mundial no Guinness". E "em 20 de janeiro, o governo municipal disse que estava a distribuir 200 mil bilhetes gratuitos aos moradores, para atividades festivas de ano novo".

Portanto,"não há dúvida de que o atraso na divulgação de informações levou a um atraso nas ações de precaução, tanto por parte do público quanto pelo governo". E há uma "ironia" dramática nisto tudo: é que quanto maior "é a força do partido no controle da informação e na supressão da dissidência" maior é também "a sua fraqueza no combate às epidemias".

Dito de outra forma: "O coronavírus é um exemplo vívido e trágico de como o regime de partido único da China não apenas impede a resposta do público às epidemias como também ajuda a transformar problemas de saúde localizados em catástrofes com escala nacional e até mundial." "O que estamos a testemunhar não é simplesmente um problema de saúde pública. É uma das crises sociopolíticas mais graves que o partido enfrentou e ameaça minar seu domínio absoluto do poder. A mãe natureza não foi misericordiosa com os seres humanos durante esta crise. E o autoritarismo da China torna o país apenas mais vulnerável à ira da natureza."

Pico do virus será atingido nas próximas semanas

Entretanto, segundo a previsão de cientistas da London School of Hygiene & Tropical Medicine, que estabeleceram modelos para a propagação do vírus, o coronavírus poderá infetar pelo menos uma em cada 20 pessoas na cidade de Wuhan, na China, quando se atingir um pico nas próximas semanas.

A tendência suportada nos casos relatados em Wuhan "apoiam amplamente" os modelos matemáticos que está a usar para prever a transmissão da epidemia dinâmica, de acordo com os cientistas daquela instituição, citados hoje pela agência de informação financeira Bloomberg.

"Supondo que as tendências atuais se mantêm, estamos a projetar um pico no meio/final de fevereiro" em Wuhan, disse o professor associado de epidemiologia de doenças infecciosas Adam Kucharski.

Kucharski, que trabalha com análise matemática em surtos de de doenças infecciosas, explicou que "há muita incerteza, daí que seja cauteloso em relação a escolher um único valor para o pico, mas é possível com base em dados atuais, ver um pico de prevalência acima de 5%".

Wuhan, a cidade chinesa onde o vírus 2019-nCoV surgiu no final do ano passado, está de quarentena desde 23 de janeiro, estando restringidos os movimentos de 11 milhões de pessoas.

As autoridades de saúde na China e em todo o mundo estão ansiosas à espera de saber se a maior quarentena conhecida no mundo tem a eficácia para conter a pneumonia causada pelo novo vírus em Wuhan e noutras cidades da província de Hubei, região em que vivem 60 milhões de pessoas.

Mapeando o surto de coronavírus em todo o mundo, Kucharski, bem como seus colegas na instituição britânica, basearam os seus modelos num conjunto de hipóteses sobre o vírus 2019-nCoV.

Estas incluem um período de incubação de 5,2 dias, atraso no início dos sintomas para confirmação da infeção de 6,1 dias e o risco de infeção entre as 10 milhões de pessoas que foram identificadas como as mais vulneráveis em Wuhan.

Com base naqueles dados, uma prevalência de 5% equivale a cerca de 500 mil infeções no total. Isto é, muitas vezes mais do que os 14 982 casos, que as autoridades de saúde provinciais tinham reportado em Wuhan até às 20h00 de sábado na China.

"As próximas duas semanas são realmente críticas para entender o que está a acontecer", disse, por sua vez, Benjamin Cowling, chefe de epidemiologia e bioestatística na Universidade de Hong Kong, numa entrevista em Melbourne, na quinta-feira, citada pela Bloomberg.

Vão ser igualmente críticas, alertou, para saber "se o vírus se está a espalhar para outros locais ou se evitámos o que poderia ser uma pandemia global por causa das medidas de controlo adotadas e implementadas até o momento".

O número de mortes resultante do surto de pneumonia causado pelo novo coronavírus (2019-nCoV) ascende a 813, das quais 811 na China continental, onde o número de infetados ultrapassa os 37 mil. O "radar" montado pela universidade norte-americana de Johns Hopkins fala no entanto em 814, com apenas duas mortes fora da China (uma em Hong Kong e outra nas Filipinas).

Nas 24 horas que antecederam o balanço feito hoje, as autoridades chinesas registaram no território continental 89 mortes e 2 656 novos casos de infeção com o coronavírus detetado em dezembro, em Wuhan, capital da província de Hubei (centro), colocada sob quarentena.

O novo balanço já ultrapassa o da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, na sigla em inglês), que entre 2002 e 2003 causou a morte a 774 pessoas em todo o mundo, a maioria das quais na China, mas a taxa de mortalidade permanece inferior.

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