Como a pandemia foi de maldição a bênção para Bolsonaro

Considerado um dia "o pior presidente do mundo no combate ao covid-19" pelo jornal The Washington Post, o brasileiro fatura com o sucesso do auxílio emergencial aos mais carentes durante a doença e o isolamento, uma ideia da oposição que ele até rejeitara.

"Aprovação do Governo sobe para 52%, desaprovação cai para 40%" e "avaliação pessoal também em alta: 38% acham Bolsonaro "ótimo ou bom", enquanto a rejeição cai para 35%." Estas conclusões são o destaque do site Poder360, a propósito da sondagem do PoderData, o seu instituto de pesquisas particular, divulgada na última quarta-feira. E corroboram dados obtidos pelos institutos Datafolha, XP-Ipespe e pelo mesmo PoderData dias ou semanas antes: o presidente Bolsonaro está, como nunca, a subir na consideração dos eleitores.

Como é possível, perguntam-se opositores e observadores, tendo em conta que o brasileiro foi um dia chamado de "pior presidente do Brasil no combate à pandemia", em classificação do jornal norte-americano The Washington Post, 143 anos de história e 47 Prémios Pulitzer no currículo, em abril passado? Depois de citar a atuação péssima dos líderes autoritários da Bielorrússia, Alexandre Lukashenko, e da Nicarágua, Daniel Ortega, a publicação considerou Bolsonaro "de longe, o pior caso de prevaricação", citando o episódio em que o chefe de Estado chamou o covid-19 de "gripezinha".

Outros se seguiram: "não sou coveiro", afirmou dias depois, comentando as, até então, 2575 mortes no país pela doença; e "e daí?", questionou, após o número ultrapassar os 5000.

Já contaminado com o vírus, sugeriu em manifestações com apoiantes a não recomendada pelos médicos hidroxicloroquina no combate à doença - demitiu dois ministros da saúde, médicos, por eles não concordarem com a publicidade ao medicamento, e substituiu-os por um general paraquedista.

Quinta-feira, enquanto sob o seu governo tendencialmente negacionista, o Brasil passava das 112 mil mortes, disse que a "eficácia da máscara contra o vírus é praticamente nula".

Porquê então a subida?

O "Bolso-Família"

"Bolsonaro melhora seu desempenho em quase todos os estratos demográficos e económicos", analisam Mauro Paulino e Alessandro Janoni, responsáveis do instituto Datafolha.

Mas, segundo ambos, "considerando-se o peso dessas parcelas na composição dos resultados totais, percebe-se que são justamente os que têm maior vulnerabilidade, tanto no mercado de trabalho quanto no acesso a serviços de saúde, que mais contribuem para o ganho de popularidade do presidente no último mês".

"Dos cinco pontos de crescimento da taxa de avaliação positiva, pelo menos três vêm dos trabalhadores informais ou desempregados que têm rendimento familiar de até três salários mínimos, grupo alvo do auxílio emergencial pago pelo Governo desde abril e que tem sua última parcela programada para saque em setembro", concluem.

O jornalista Alex Solnik, no site Brasil247, conotado com a esquerda, traduz essa conclusão para dinheiro vivo: "O auxílio emergencial fez uma enorme diferença. O Bolsa Família dá 41 reais por pessoa e no máximo 200 reais por família, por mês, a 14 milhões de famílias, e o auxílio deu 600 por pessoa, 1200 por família, em parcelas mensais, para 60 milhões de pessoas, o que é uma diferença gigantesca, e isso reflete-se na pesquisa."

"Quem recebe Bolsa Família é grato a Lula, mas se passar a receber de Bolsonaro mais que de Lula, falando em termos rasteiros, ele será grato a Bolsonaro", acrescenta, comparando o apoio dado à população mais carente durante a pandemia com o programa social do Governo de Lula da Silva.

Os 600 reais do auxílio emergencial são equivalentes a pouco menos de 100 euros, ao câmbio atual.

Reportagem do jornal Folha de S. Paulo no nordeste, região onde para mais de metade dos beneficiários o auxílio emergencial do Governo passou a ser a sua única fonte de rendimento, mostra que há quem admire Lula e Bolsonaro em simultâneo. "Vejo ele como uma pessoa que, assim como o Lula, trabalha para ajudar os pobres", afirmou ao jornal o desempregado Wellington dos Santos, de Barra dos Coqueiros, estado do Sergipe.

Por ironia, o auxílio emergencial partiu de uma iniciativa de oito deputados de seis partidos da oposição, incluindo o PT, e Bolsonaro foi contra.

O relator do projeto, deputado Marcelo Aro, do PP, de centro-direita, confirmou numa troca acalorada de tweets com o presidente, em que este se vangloriava de desenvolver "o maior programa de ajuda a necessitados do mundo".

"Vamos contar a história real?", desafiou Aro. "Fui relator do projeto. O Governo foi contra o meu relatório desde o primeiro momento. Não admitia um valor acima de 200 reais [...] só depois de o Congresso apoiar 500 reais para o auxílio emergencial [...] o Ministério da Economia alcançou os 600 reais."

Enquanto deputado por 28 anos, Bolsonaro sempre foi um crítico dos programas assistencialistas do PT. "O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder", disse em 2011.

Dada a sua participação decisiva no aumento da popularidade do presidente, o benefício, proposto para ser temporário, deve passar, entretanto, a permanente.

O que, por paradoxal que possa parecer, agrada a Lula - "se for pelo bem dos pobres, não me importo nada que ele aumente a popularidade", disse o antigo presidente em entrevista recente a jornais estrangeiros, incluindo o DN - mas desagrada o grupo, influente, de eleitores de Bolsonaro cuja referência no Governo é o ultraliberal Paulo Guedes, superministro da Economia.

Guedes chegou a falar em "debandada" da sua equipa económica no último dia 11, após oito colaboradores seus terem saído em rutura com os rumos do Governo. E até em "zona de impeachment", se o Governo insistir em furar o teto de gastos.

"Paz e amor"

A maioria dos observadores também atribui a subida de Bolsonaro nas sondagens à mudança de comportamento do presidente: do tom de permanente hostilidade, a marca do seu percurso político, passou a uma versão "paz e amor", após a prisão, na casa do seu advogado, do explosivo Fabrício Queiroz, seu amigo há 30 anos e epicentro de um escândalo de corrupção com desvio de salários de assessores em torno do senador Flávio Bolsonaro, seu filho mais velho.

Soube-se entretanto que Queiroz fez 21 depósitos em contas da primeira-dama Michelle Bolsonaro. E que as suas duas ex-mulheres compraram imóveis em dinheiro vivo graças àqueles desvios ao longo de décadas, segundo as suspeitas do Ministério Público do Rio de Janeiro.

Não foi só o caso Queiroz: as ações policiais para investigação do financiamento de atos contra a democracia e a disseminação de fake news, que podem atingir o seu segundo filho, Carlos Bolsonaro, supostamente o líder do "gabinete do ódio", de onde partem os ataques à reputação dos inimigos e dos dissidentes do Governo, também recomendam cautela presidencial.

A eventualidade de um impeachment, cada vez mais na boca da oposição (e das ruas) ao longo de 2020, idem.

Os oito processos a decorrer no Tribunal Superior Eleitoral sobre irregularidades das candidaturas de Bolsonaro e do seu vice-presidente Hamilton Mourão nas eleições de 2018 completam os medos do presidente., justificando a atitude "paz e amor" e o relativo silêncio do último mês e meio.

"E, já se sabe, Bolsonaro calado é um poeta", escreveu Thaís Oyama, colunista do portal UOL. Para Ricardo Kertzman, da revista IstoÉ, "Bolsonaro calado deixa o Brasil mais feliz", e o economista Eduardo Moreira, em entrevista ao jornal Valor Econômico, notou que "calado, Bolsonaro melhora muito o discurso".

Correspondente em São Paulo.

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