Cega e de máscara, a justiça europeia faz por funcionar

Os corredores do Tribunal Europeu de Justiça, sediado no Luxemburgo, estão vazios. Mas os juízes ainda se reúnem e pronunciam sentenças em salas onde não há ninguém a ouvi-los. "É muito importante que a justiça não se torne invisível - sobretudo durante uma pandemia", diz o presidente da instituição. Assim se regula a Europa em tempo de coronavírus.

Eram nove da manhã de quinta-feira, 23 de abril, quando o Tribunal Europeu decidiu. O caso tinha dado entrada há 15 meses na barra: um coletivo LGBT de advogados italianos decidira processar um advogado que, numa entrevista à rádio, afirmara recusar contratar homossexuais para a sua firma. Foi condenado em Itália, tinha violado a lei europeia que proíbe discriminação no acesso ao trabalho. Mas contestou: não tinha segregado ninguém de facto, apenas exercera o seu direito à liberdade de expressão. Então o caso subiu ao Luxemburgo. É aqui que tem assento o Tribunal Europeu de Justiça, onde se clarifica a real extensão das leis da União.

Um coletivo de juízes leu os argumentos, reuniu-se para debater a lei e finalmente pronunciou-se: a entrevista que o jurista dera à rádio anunciava de facto um ato discriminatório, e por isso uma violação da lei. Mas quase tão curioso como o caso é a forma como a sua resolução foi proferida. Por um juiz, um advogado-geral e um oficial de registo vestidos de togas, cumprindo toda a formalidade e solenidade de uma decisão judicial - só que a ouvi-los não estava rigorosamente ninguém. "Habitualmente recebemos uma centena de pessoas no por dia, e as salas de audiência estão cheias para ouvir as decisões", explicaria mais tarde o presidente do Tribunal Europeu de Justiça, o belga Koen Lenaerts. "Agora falamos perante ninguém, o que é estranho. Mas é importante que o façamos, que mantenhamos a visibilidade simbólica da justiça."

Antes de o governo luxemburguês decretar o estado de emergência, a 16 de março, cerca de 2.500 pessoas circulavam pelos corredores do Tribunal Europeu de Justiça diariamente. "Agora são mais ou menos uma centena", diz Patrick Picart, segurança na instituição. "E isso é muito mais difícil para quem está encarregue da vigilância, porque a verdade é que ficamos com os sentidos muito mais alerta quando a casa está cheia de gente." As torres douradas de Kirchberg, onde a justiça europeia tem a sua sede e onde os dias se habituaram a ser de azáfama, estão agora mais calmas do que as águas do Moselle, Mas, na verdade, os trabalhos prosseguem.

Desde o início do confinamento - e de a grande maioria dos trabalhadores estarem a trabalhar a partir de casa - já 124 processos deram entrada no tribunal. Um deles tinha precisamente a ver com o coronavírus (o governo da Estónia violara aparentemente a lei europeia ao financiar uma empresa privada de distribuição alimentar, mas ganhou o argumento alegando que haveria uma crise de acesso a bens básicos no país se não o fizesse). "Nos próximos tempos haverá seguramente mais processos como este", diz Koen Lenaerts. "Não sei quantos serão, nem sei quando chegarão, mas chegarão certamente."

Foi nestas paredes que se resolveram muitos dos testes por que a Europa passou nos últimos anos. Durante a crise da dívida soberana, os programas de resgate aos países do Sul ou o Brexit, o Tribunal revelou-se um ator fundamental para perceber até onde as leis europeias podiam ou não ir. "O mais provável é que agora sejamos chamados a clarificar as medidas de ajuda a quem se sente excluído, ou até que ponto os estados-membros podem suportar empréstimo a empresas privadas, para que não se criem situações de monopólio", explica o presidente da instituição.

Isso explica bem porque é que a casa da lei na Europa tem de continuar a funcionar, mesmo que mude as regras. Como por exemplo esta: em vez de pronunciar as sentenças caso a caso, o presidente do coletivo de juízes, o advogado-geral e o oficial de registo juntam vários processos e anunciam-nos nas manhãs de quinta-feira perante uma sala de audiências vazia.

Na última semana, eram 11 casos a ser resolvidos, incluindo o processo do advogado italiano. A principal instituição judicial da União Europeia fez nesse dia um bocadinho de história, ao esclarecer que, mesmo que não passe de um anúncio de uma intenção, a discriminação não é liberdade de expressão, é crime. A partir de casa, os tradutores traduziram o acórdão para 23 línguas oficiais. Na regie da sala de audiências, um funcionário gravava o momento em vídeo. E o confinamento fez isto: um bocadinho de História pronunciado perante uma sala vazia, mas que a tecnologia tornou acessível a um continente inteiro numa questão de minutos. É este o novo normal.

O desconfinamento passo a passo

Dependendo da gravidade dos casos, é preciso que um coletivo de três, cinco ou quinze juízes se reúna para cumprir os debates de instrução. Fazem-no em duas câmaras: o Tribunal Geral, que se pronuncia sobre as queixas de particulares, empresas ou organizações - nomeadamente em matérias de concorrência - e o Tribunal de Justiça da UE, que resolve os diferendos entre a Comissão e os estados-membros e esclarece as dúvidas que possam surgir nos tribunais nacionais relativamente à legislação europeia.

"Dos 15 juízes que reuniram a semana passada só três o tiveram de fazer por videoconferência, todos os outros estiveram presentes", assegura Lenaerts. As deliberações aconteceram numa grande sala oval, onde as estantes estão forradas com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE em todas as línguas da União. No dia em que lá entrámos, um técnico de informática empoleirava-se em cima da mesa para acertar os cabos que permitem a comunicação segura com quem os poucos que ficaram confinados em casa. "Aqui não usamos máscaras mas cumprimos a distância de segurança", diz o presidente do tribunal. "Muitos de nós sentem que é preciso a discussão de proximidade, falar diretamente e perceber os gestos e as reações dos outros para podermos julgar da forma mais acertada."

A verdade é que a instituição europeia formulou um plano em três fases para lidar com a pandemia. "Assim que foi decretado o estado de emergência mandámos toda a gente para casa, em regime de teletrabalho. A partir de 20 de abril, e até 25 de maio, estamos a fazer as deliberações presencialmente, reunindo por isso o coletivo de juízes. Mas só o podemos fazer para casos onde já tivessem existido audiências, ou que não precisarem delas. E foi por isso que tivemos de preparar uma terceira fase, a partir do final de maio", explica Koen Lenaerts.

Em metade dos casos que chegam à barra, são necessários depoimentos orais das partes interessadas - normalmente feitos por advogados. Desde março que essas audiências estão a ser adiadas, mas os juízes entendem que não poderão fazê-lo durante muito mais tempo: a justiça não se pode atrasar. "Com a abertura dos aeroportos prevista para o final de maio, poderemos ter algumas audiências presenciais nos casos mais agudos", diz o presidente do Tribunal Europeu. "Mas o que estamos a fazer é instalar um sistema de videoconferência seguro em cada capital europeia para que possamos trabalhar à distância, enquanto as coisas não estão resolvidas."

É um esforço ambicioso, admite. Instituições judiciais não podem usar as redes normais de comunicação, como o Skype ou o Zoom, onde há riscos de quebra de sigilo. Então Lenaerts não se cansa de elogiar os funcionários do departamento de informática e tecnologia, que se tornaram quase heróis por estes dias. "Primeiro conseguiram por toda a gente a operar a partir de casa. Depois conseguiram resolver a falta de comunicação entre os que estavam aqui e os que estavam longe. Agora prepararam esta linha de comunicação para a justiça funcionar de forma transeuropeia. É notável."

É quase hora de almoço e vislumbra-se alguma agitação junto à porta do Tribunal Europeu de Justiça. Há seguranças que vão substituir outros, uma funcionária de limpeza que termina o seu turno, um homem que entrega o correio, uma jurista que entra apressada porque se esqueceu de um processo e agora precisa mesmo dele. "Todos sentimos um orgulho enorme em trabalhar aqui, todos sentimos que somos de alguma forma parte da construção da Europa", diz Picart, o segurança. Então ei-los, em casa ou em corredores vazios, sempre com distância de segurança, quase sempre de máscara, os justiceiros da Europa. Deve-se um pouco a todos eles que ninguém possa dizer aos microfones de uma rádio que se recusa a contratar alguém por causa da sua etnia, crença ou orientação sexual.

*Texto publicado originalmente no site de notícias em português do Luxemburgo, Contacto - especial para Portugal.

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