Casais gay: Apoio do papa a uniões civis é um bom sinal, mas ainda é pouco
O Papa Francisco defende a união civil de casais homossexuais, mas mantém-se contra o casamento de pessoas do mesmo sexo. Nada mudou na sua posição. E este "detalhe" poderá explicar a diferença como os gays católicos e a ILGA Portugal acolhem as palavras do Sumo Pontífice, que vieram causar um rebuliço entre as alas mais conservadoras e as mais progressistas da Igreja e da sociedade.
Vejamos, pois, o que diz José Leote, coordenador nacional da associação de gays católicos Rumos Novos: "Na Igreja Católica não há casamento, há matrimónio que é desde há muitos séculos um sacramento. Como católicos LGBT não nos causa nenhum problema que a igreja diga que o matrimónio é um sacramento destinado a pessoas heterossexuais." O que é necessário, diz, é encontrar pontes para que a comunidade gay não se sinta discriminada e para que a mensagem seja de aceitação.
Ana Aresta, presidente da ILGA, tem uma posição mais contundente. "Apelar à união de facto por parte do Papa é manifestamente insuficiente, quando o dever dos estados é garantir a igualdade no acesso ao casamento e à igualdade plena perante a lei." "A realidade é que as pessoas católicas LGBTI (lésbicas, gay, bissexuais, trans e intersexo) continuam a ser excluídas da sua comunidades de fé, nomeadamente em Portugal, onde o casamento é permitido existe e igualdade. Ao apelar às uniões de facto, o Papa continua a dizer que os casais constituídos por pessoas homossexuais são cidadãos de segunda, quando os restantes casais podem casar."
Citaçãocitacao"As pessoas homossexuais têm direito de ter uma família. Elas são filhas de Deus e têm direito a uma família."
O que disse Francisco no documentário com o seu nome, Francesco, exibido nesta quarta-feira no Festival de Roma? "As pessoas homossexuais têm direito de ter uma família. Elas são filhas de Deus e têm direito a uma família. Ninguém deverá ser descartado ou ser infeliz por isso". E acrescenta: "O que precisamos criar é uma lei de união civil. Dessa forma eles são legalmente contemplados. Eu defendi isso".
De facto, Francisco já se tinha pronunciado a favor da união civil dos casais do mesmo sexo quando, em 2010, a Argentina aprovou o casamento gay. E defendeu-o por oposição ao casamento, que considerou "um ataque destrutivo aos planos de Deus" quando era arcebispo em Buenos Aires e os seguidores da Igreja se manifestavam nas ruas do seu país.
As palavras têm agora o peso de terem sido proferidas pelo chefe máximo da Igreja Católica e contrastam com a atitude do seu antecessor - Bento XVI, mesmo antes antes de ser Papa, sempre foi inflexível na aplicação da doutrina. Na prática, nada muda - a Igreja mantém que o casamento é um sacramento entre homens e mulheres, mas Francisco veio, pelo menos, abrir caminhos contra a discriminação.
"Estas declarações, embora ainda não se perceba bem o contexto em que foram feitas, representam um grande passo em direção à igualdade, sobretudo nas sociedades onde pessoas LGBTQ (lésbicas, gay, bissexuais, trans e queer)se apresentam com muita vulnerabilidade, discriminação e violência" e podem representar "um novo rumo, novos caminhos para a igreja Católica", afirma José Leote.
Citaçãocitacao"Ao apelar às uniões de facto, o Papa continua a dizer que os casais homossexuais são cidadãos de segunda."
A ativista da ILGA concorda que esta afirmação o Papa abre novamente a discussão sobre esta comunidade dentro da igreja. "Mas o que é necessário é que a igreja abra as portas à inclusão." Mais: "A realidade que sentimos é que as pessoas LGBTI, católicas, continuam a ser excluídas das suas comunidades de fé, nomeadamente em Portugal, onde o casamento homossexual é permitido e existe igualdade. Ao apelar às uniões de facto, o Papa continua a dizer que os casais constituídos por homossexuais são cidadãos de segunda, quando os restantes casais podem casar", critica Ana Aresta.
Irão as palavras de Francisco significar alguma mudança na doutrina? De que forma poderão produzir efeito junto da ala conservadora da Igreja? "Em termos doutrinários ou canónicos, não haverá de imediato qualquer diferença nos ensinamentos, mas é importante se promova. E isso torna a Igreja presente na vida dos homens, e é essa a sua missão", sublinha Leote.
Também a rede ex aequo, associação de jovens LGBTI acolhe de forma positiva o apoio do Papa Francisco às famílias e uniões civis de casais do mesmo sexo, reconhecendo o impacto que poderão ter nas pessoas LGB (Lésbicas, Gays, Bissexuais) que professem a religião. E chega mesmo a considerar que são "um progresso no contexto cristão". Mas ainda assim deixa um alerta: o facto de "no direito canónico a homossexualidade continuar a ser considerada um pecado" e da afirmação do Papa Francisco não equivaler um comunicado oficial do Vaticano.
Além disso, acrescenta a ex aequo, continua a haver uma "postura perigosa" por parte da Igreja em relação a questões de identidade de género e características sexuais, como, por exemplo, a defesa de cirurgias interventivas a pessoas intersexo, o silêncio sobre o dano que as terapias de conversão provocam em jovens LGBTI e a discriminação contra pessoas trans e não-binárias.
É também de perseguições, de vidas destruídas que fala o católico José Leote. "Ao longo da sua história, a Igreja tem destruído vidas e tem nas mãos o sangue de todas pessoas que se suicidaram pelos ensinamentos que lhes foram incutidos. E não pode continuar por aí porque não é esse o caminho. Não podemos dizer aos fiéis LGBTQ 'você porque é uma ovelha preta não pode entrar e se entrar tem que se pintar de branco'. Tem que haver uma mensagem de verdadeira aceitação, de verdadeira tolerância e de não discriminação. A mensagem não pode ser a que está no catecismo, de que as pessoas homossexuais são chamadas à castidade, podem ser mais não podem praticar."
Tal como os jovens da ex aequo, o coordenador da Rumos Novos lembra as terapias de conversão. "Não nos podemos esquecer que muita gente sofreu na pele a mensagem da Igreja, não só a mensagem mais geral, mas as terapias de conversação. Há muita gente que foi muito mal tratada e que ainda hoje tem sequelas psicológicas dos maus tratos que recebeu. Não é, não pode ser, nunca deveria ter sido um caminho que a igreja tivesse explorado. Se explorou está a tempo de regressar e de voltar à mensagem de Cristo e essas achegas que o Papa vai dando aqui e acolá apontam nesse sentido."
Ana Aresta não é católica, mas cresceu numa família católica e não exclui esse facto da sua matriz cultural. Apesar de entender que as declarações do Papa Francisco ainda sabem a pouco, não enjeita a sua importância. "Implica continuar a ter estas discussões, que mais vozes se ergam dentro da Igreja em prol da igualdade, sejam figuras de destaque como o Papa seja nas comunidades locais, onde os párocos podem fazer este papel de promoção da igualdade. Acima de tudo, que não fechem os olhos à diversidade e não remetam as pessoas ao silêncio - pessoas LBGTI devem ter direito a professar e a participar nas cerimónias religiosas com os seus modelos de família."
Os jovens da rede ex aequo apontam, por outro lado, o facto de as escolas e colégios católicos não mostrarem abertura para receber as iniciativas que a associação promove no sentido de sensibilizar e educar para as questões de orientação sexual e identidade de género.
Há precisamente seis anos, Francisco foi um dos vencidos no Sínodo dos Bispos sobre a Família, onde não houve acordo sobre os homossexuais nem sobre possibilidade de os divorciados poderem voltar a casar-se pela igreja e recuperar outros sacramentos como a confissão, batismo ou comunhão. Caiu por terra a expectativa que se criou quando os documentos preliminares davam conta de uma mudança sobre a participação dos gays na vida da igreja. Os bispos mais conservadores consideraram que a até ali prevista aceitação e valorização das orientações sexuais podia ameaçar a "família tradicional".
Passados estes anos todos, e apesar de ser conhecida a postura inclusiva de Francisco quanto aos gays, o documentário Francesco, dirigido por Evgeny Afineevsky, não deixou de agitar as águas entre os católicos mais progressistas e os mais conservadores. Nele fala-se de temas como a pandemia, racismo e abuso sexual, mas também de outros mais políticos, como a guerra na Síria e na Ucrânia.