Bielorrússia: revolução em suspenso?
O costume. Os 80 por cento dos votos reivindicados por Lukhatchenko nas eleições do início de Agosto, e que garantiam ao presidente bielorrusso um sexto mandato, eram quase rituais. Mas os números eram desta vez tanto mais suspeitos quanto, pela primeira vez, havia alguma expectativa quanto a estas eleições.
Lukatchenko vinha claramente perdendo popularidade. A campanha revelara que um número crescente de bielorrussos exigia uma mudança. Nos meios da oposição agitava-se a suspeita fraude. O próprio regime dera aliás sinais inequívocos de nervosismo ao desencadear em vésperas das eleições uma campanha de repressão dos que se contestatários.
Ao cabo de 26 anos de poder o regime de Lukatchenko está confrontado com a crise mais grave a sua história - estagnação económica, relações problemáticas com a Rússia, descontentamento interno. A pandemia do coronavírus torna ainda o quadro mais sombrio.
Desta vez o regime fora longe de mais.
Mal anunciados os resultados, milhares de bielorussos vêm para a rua exigir novas eleições e a queda de Lukatchenko. "Vai-te embora!" torna-se a palavra de ordem das manifestações.
Multiplicam-se as greves e as demissões nos media oficias.
Lukatchenko rejeita os apelos ao diálogo do Conselho de Coordenação organizado pela oposição e responde pela repressão, com cargas policiais e centenas de detenções. Svetlana Tikhanovskaia, candidata em vez do marido Sergei Tikhanovski, detido em véspera das eleições, fugia para a Lituânia e assumia o comando da contestação.
Merkel, Macron, a UE e a NATO colocam-se ao lado da oposição e exigem eleições livres. A União Europeia convoca uma cimeira e ameaça impor sanções ao regime. O secretário de estado Mike Pompeo, de visita à Polónia, disse que os Estados Unidos monitorizavam atentamente a situação.
Lukatchenko acusa a Polónia e a Ucrânia de orquestrarem os protestos. O ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, acusa a Ucrânia de fomentar a agitação e de infiltrar grupos treinados para desestabilizar a Bielorrússia.
Putin e Merkel trocam advertências contra qualquer tentação de ingerência na crise bielorussa. Os representantes da Rússia e da China declaram numa sessão especial da ONU que se opunham a qualquer ingerência externa na crise. A agitação na Bielorrússia ameaça gerar uma nova crise entre a Rússia e o Ocidente.
A escolha da Lituânia como base de apoio de Tikhanovskaia marca um ponto de viragem na crise. Vilnius tem estado na linha da frente da hostilidade política a Moscovo e da pressão militar da aliança junto às fronteiras ocidentais da Rússia. A líder da oposição reivindica agora por sua vez "60 a 70 por cento" dos votos e diz-se pronta a "assumir a liderança" do país. E o vaivém de contactos entre Vilnius e Varsóvia não tardarão o papel que lhe cabe.
Lituanos, polacos e ucranianos assumem um papel ativo na crise. O Parlamento de Vilnius apela a sanções contra o regime de Minsk. A Lituânia, Estónia, Letónia organizam cadeias humanas junto à fronteira bielorrussa. Varsóvia apela à mobilização de fundos europeus para apoiar os opositores na Bielorrússia e o vice-ministro da Defesa polaco, Wojciech Skurkiewicz, disse que o seu país estava "vigilante" e que não seria "passivo" nessa observação".
A Polónia é neste momento o parceiro estratégico mais fiel de Washington na Europa. Foi a Polónia o país eleito para acolher as tropas americanas recentemente retiradas da Alemanha e albergar o novo quartel-general do V Corpo do Exército americano.
Ao mesmo tempo Varsóvia multiplica iniciativas de cooperação regional - Grupo de Vysegrado, Nove de Bucareste, Três Mares -, que estão a remodelar a geopolítica da área.? Varsóvia estabeleceu ainda relações especiais com a Lituânia e a Ucrânia (Triângulo de Lublin) constituíram uma brigada conjunta (LitPolUkrBrig).
A Polónia assume assim o comando desta remodelação geopolítica na área - num projeto que parece reeditar os planos general Jozef Pilsudski no pós-Grande Guerra, e a memória da União polaca-lituana do século XVI, que englobava a Polónia, a Lituânia, aquilo que é hoje a Bielorrússia e a Ucrânia.
A Crise da Bielorrússia assume assim dimensão geopolítica precisa.
Desde que assumiu o poder, ao ganhar as eleições de 1994 com 80,6 por cento dos votos, Lukatchenko manteve elementos da organização soviética - a polícia secreta mantém a sigla KGB- e um forte controlo estatal sobre a economia.
Tentou ao mesmo tempo assumir o papel de um nacionalista e garante da independência do seu país. Uma situação geográfica única - a Oeste a Polónia, Lituânia e Letónia, membros da NATO, a Sul a Ucrânia e a Leste a Rússia - faz da Bielorrússia um ponto sensível no confronto entre o Ocidente e a Rússia. Esse papel garantiu a Lukatchenko uma forte base de apoio - mesmo se as sucessivas e estrondosas vitórias eleitorais deixaram muitas dúvidas.
Os 26 anos de permanência no poder e os seus métodos valeram-lhe o título de "último ditador da Europa". Dois anos depois de assumir o poder propôs emendas constitucionais que lhe dariam poderes ilimitados. Quando o Parlamento resistiu, Lukatchenko dissolveu-o e nomeou novos deputados. Fechou ou censurou órgãos de informação independentes e deteve centenas de opositores políticos
A estabilidade do regime repousou em boa medida no apoio financeiro, económico e político da Rússia. Mas nos últimos cinco anos a situação mudou - desde 2011 assistiu-se a uma grave crise financeira, perda dois terços do valor da moeda nacional, queda acentuada do PIB. A redução do apoio de Moscovo já não permite disfarçar o mau funcionamento da economia e reduziu significativamente a capacidade do regime de "comprar" a lealdade dos cidadãos e dos fiéis do regime - observa Andreï Paratnikau, investigador do Ifri.
A atitude Lukatchenko perante o Covid 19 - o vírus combate-se com vodka, sauna e trabalho no duro - veio agravar o descontentamento da população.
A situação coloca um sério desafio a Moscovo. Depois da integração dos bálticos na NATO e da rebelião ucraniana que instalou em Kiev um governo pró-ocidental, a eventual queda da Bielorrússia no campo ocidental deixaria a capital russa ao alcance dos canhões da NATO.
A crise biolorrussa evocou de imediato a memória das "revoluções coloridas". Mas nas manifestações em Minsk não se viam bandeiras da UE nem dos EUA e a maioria da população sente-se muito próxima da Rússia. O ardor nacionalista, que tanto marcou as crises na Ucrânia e noutras crises no espaço pós-soviético, não tem aqui uma dimensão relevante. Os próprios bielorrussos rejeitem comparações com a Ucrânia, associando a memória do EuroMaidan a um de agitação e de instabilidade.
As relações entre Lukatcheko e o Kremlin nunca foram fáceis. As duas capitais assinaram há dez anos um acordo de União, mas as relações têm tido altos e baixos.
Lukatchenko nunca assentiu ao desejo da Rússia da estabelecer uma grande base militar russa na edemarcou-se claramente da Rússsia na crise da Ucrânia.Minsk mantém uma espécie de união informal com o Azerbaijão e o Cazaquistão - países que partilham alguma desconfiança face à política russa na região - e relações de parceria com a Ucrânia, a Geórgia e a Moldávia.
Apesar da dependência da Rússia, Lukhatchenko tem ensaiado uma certa aproximação ao Ocidente. A Bielorrússia aderiu vários programas europeus e participou em diversos programas da NATO, ponderando mesmo a participação em exercícios militares conjuntos.
Essa aproximação valeu-lhe mesmo o levantamento das sanções contra vários líderes governamentais impostas pela União Europeia depois das eleições de 2016.
Quando o ano passado surgiram sinais de dificuldades no abastecimento de petróleo russo à Bielorrússia, Mark Pompeo correu a Minsk trocar sorrisos promessas de amizade com Lukatchenko garantir que os EUA estavam prontos a garantir a satisfação de 100 por cento das necessidades bielorrussas em matéria de petróleo.
As próprias relações pessoais entre Putin e Lukhatchenko deterioraram-se e os grandes dossiers bilaterais continuam bloqueados. E, dias antes das eleições Lukatchenko anunciou com o devido alarido a detenção de 23 russos, acusados de "serem mercenários" enviados para desestabilizar o país.
Muitos analistas consideram mesmo que o Kremlin gostaria de se ver livre de Lukatchenko e que teria já mesmo os seus favoritos para a sucessão como Viktor Babriko, chefe da sucursal bielorrussa da Gazprom, e preso em Maio por lavagem de dinheiro e evasão fiscal.
Mas o líder bielorrussa ainda tinha trunfos a jogar. Em plena erupção nas ruas de Minsk garantia que a agitação no país era uma "revolução colorida" orquestrada pelo Ocidente e que "Se a Bielorrússia cair, a Rússia virá a seguir".
Dias depois Putin anuncia a constituição de uma força de reserva da polícia para ajudar a manter a estabilidade na Belarus "se fosse absolutamente necessário", correspondendo a um apelo formal de Lukatchenko.
Mais de um mês depois das eleições, a contestação mantém-se, mas a situação política parece acomodar-se num impasse. Os sinais de cansaço acentuam-se. A oposição carece de uma liderança clara e perspetivas e objetivos precisos. A crise bielorrussa sai das primeiras páginas da imprensa internacional.
Lukashenko está na corda bamba, mas tem ainda tem alguns argumentos. Dispõe ainda de apoios substanciais nas áreas rurais e entre as gerações mais velhas. E parece ter garantido para já o apoio de Putin.
O líder bielorrusso parece querer ganhar tempo. Uma no cravo, outra na ferradura. A 19 de Agosto, no decorrer de um encontro com trabalhadores da fábrica MTZ admitiu um cenário possível da sua saída do poder depois de aprovada uma nova constituição e convocadas novas eleições. E em declarações à Imprensa russa há dias admitiu estar no poder "há demasiado tempo" - mas repetiu que era para já a única pessoa capaz de garantir a estabilidade da Bielorrússia. Mas, com altos e baixos, a repressão continua.
Há dias dois líderes da oposição, Maxim Znak e Maria Kolesnikova, foram detidos e a Nobel da Literatura Svetlana Aleksievich queixa-se de manobras de intimidação.
A posição de Lukatchenko parece a prazo insustentável e o futuro da Bielorrússia é uma incógnita. Moscovo vê um bastião mais ou menos seguro transformado em espaço de instabilidade. A NATO deu mais um passo no cerco às fronteiras da Rússia com grande pressão militar). Vê novos atores entrarem...
De algum modo - observa um analista da Deutsche Welle, Lukhatchenko terá acabado por se aguentar graças ao confronto Rússia-Ocidente. No fundo, ambos os lados parecem pensar que os riscos da queda de Lukatchenko ultrapassam as vantagens. A crise da Ucrânia serve ainda de alerta. A hipótese de um "Maidan à bielorrussa" implicaria um confronto direto com Moscovo. Ocidente? Quanto à Rússia, a grande prioridade é evitar a integração do país no Ocidente, e a figura de Lukatchenko ainda parece ser a melhor garantia.
A visita de Lukatchenko a Moscovo nos próximos dias poderá enfim dar algumas indicações sobre a evolução da crise na Biolorrússia.