"As minhas filhas estão vivas em mim. Vivo por elas. E não quero mais mortes"
Ao DN, contou como a morte trágica de três filhas (Bessan, 21 anos, Mayar, 15, Aya, 13) e de uma sobrinha (Noor, 17), vítimas de disparos de um carro de combate israelita, em 2009, durante uma operação militar em Gaza, o motivou a criar a fundação que apoia a educação de jovens e mulheres de todo o Médio Oriente.
Criou a fundação Daughters for Life (Filhas pela Vida). Que fins visa e em que áreas está ativa?
É uma fundação criada em memória das minhas três filhas que morreram em 2009. Um amigo disse-me que acabariam por ser esquecidas e eu respondi-lhe que mesmo que as pessoas as esquecessem, eu continuaria a viver por elas. Decidi que a tragédia da morte das minhas filhas iria tornar-se um investimento a favor do bem. Um assassínio não teria como resposta outros assassínios, o ódio não teria como resposta mais ódio. Criei a fundação para manter vivas as minhas filhas através de factos positivos, de boas ações, com trabalho a favor da educação de jovens e mulheres de todo o Médio Oriente, seja qual for a sua origem nacional ou religião...
Inclusive israelitas?
Sim. Pessoas que têm o potencial mas não têm meios para o concretizar. É fundamental dar mais educação às mulheres, dar-lhes oportunidades nos centros de decisão de serem agentes de mudança a favor de um mundo mais humano.
Quantas pessoas apoia a fundação?
Mais de 450 no Médio Oriente e outras 50 a estudarem nos EUA, Canadá, Reino Unido e Bangladesh. E espero que o governo português e as universidades possam colaborar connosco.
Um dia afirmou que "a tragédia não deve o ser fim da nossa vida. Não podemos admitir que nos controle e vença", falando do facto de as suas filhas já não estarem vivas...
Elas estão vivas em mim. Não estão mortas. Estão longe de mim. Vivem em mim. Vejo-as diante de mim. Falam comigo. Vivo por elas. Divulgo a sua mensagem. Não quero assistir a mais mortes. Em particular, de mulheres e crianças. Sinto raiva quando sei da morte de mulheres, adolescentes, crianças, qualquer ser humano, mas se uma tragédia não é o fim de tudo, então viver pelas minhas filhas é uma forma de impedir mais mortes. Por isso, digo às pessoas: não se deixem vencer pela tragédia, há coisas boas para fazer: sermos corajosos, corretos com os outros, bondosos. Há pessoas que acham que a bondade, tolerância, tenacidade são sinónimos de fraqueza. Não entendem que é necessária mais coragem para ser tolerante e bondoso. A tragédia por que passei deu-me mais força e coragem para defender aquilo em que acredito. E mais responsabilidade para fazer mais. E como vivi o sentimento de perda, quando vejo algo semelhante a desencadear sentimentos de raiva, sei que é preciso transformar esta raiva em algo positivo.
É a mensagem que procura transmitir às pessoas em situações semelhantes?
Sim. Sei que é muito difícil, doloroso. Quando penso nas minhas filhas, a única certeza é de que não as posso trazer de volta. É certo, mas posso fazer muitas coisas.
Faz isto em nome das suas filhas?
Sim. O que faço, faço em nome das minhas filhas. Elas vivem em mim. São elas que me motivam. E quando falo, quero que elas fiquem vivas também nos corações, nas mentes das outras pessoas e que estas entendam que somos responsáveis pelo mundo em que vivemos.
Após a morte das suas filhas, publicou o livro I Shall Not Hate (Não Odiarei, na tradução em português). Uma forma de perpetuar a sua memória?
É uma autobiografia. Escrevi-a porque a história de uma vida pode ser informação útil para outros, um exemplo, uma inspiração. Com o livro procurei transmitir uma mensagem universal de esperança. Ainda que seja palestiniano, não é só o conflito israelo-palestiniano que me preocupa - é o que se passa no mundo. O livro já deu origem a uma peça de teatro na Alemanha.
Foi traduzido em Israel?
Sim, em hebreu e também em árabe.
Pensa escrever um novo livro?
Estou a escrever I Will Shall Not Fear (Não Temerei). Não devemos ter medo. O medo é um terrível agente de poluição das sociedades.
Como vê o conflito israelo-palestiniano?
Não posso deixar de ver este conflito na perspetiva de médico. É uma doença cujo diagnóstico tem de ser feito com rigor e clareza. Uma vez estabelecido o diagnóstico, podemos definir o tratamento adequado. O meu diagnóstico é o seguinte: estamos perante um conflito entre duas nações, a palestiniana e a israelita, um conflito sobre a posse de terra e um conflito colonial, em que os palestinianos são ocupados e Israel o ocupante. É um conflito de longa duração, anterior a 1948, anterior à Declaração Balfour [1917] e em que, como disse, os palestinianos são ocupados por Israel, mas os israelitas são também ocupados pelas suas narrativas e experiências históricas de que os palestinianos não fazem parte, mas estão a pagar um preço. Os palestinianos merecem a liberdade e os israelitas têm de ser libertados das barreiras políticas criadas pelo ocupante que é o medo, a ganância. E a única forma de conseguirmos a cura de ambos os doentes e de os tornar ambos iguais um perante o outro é acabar-se com os dois tipos de ocupação.
O que seria uma revolução cultural em ambas as sociedades.
Pode ser necessária uma revolução cultural dos dois lados, mas não devemos nem podemos colocar em plano de igualdade o ocupante e o ocupado. E, sem dúvida, que a sociedade palestiniana também tem responsabilidades a cumprir. Deve encontrar formas de unidade e de trabalharem para alterar a sua própria situação e enfrentar o ocupante.
E os israelitas?
Os israelitas, por outro lado, devem compreender que nada será alcançado por meios militares. O que se aplica também aos palestinianos. Não será por aí que se chega à estabilidade, segurança e paz. Não é pela violência que se chegará à liberdade, segurança e a igualdade e o direito ao futuro para todos na região. Sublinho que os israelitas não serão livres enquanto os palestinianos também o não forem, e não terão segurança enquanto os palestinianos também a não tiverem. Só um caminho em comum é que permitirá chegar aos resultados pretendidos.
O momento político palestiniano é complexo: há tensões, divisões entre os principais organizações, alguns palestinianos sugerem que a sua liderança não está à altura das circunstâncias...
É indispensável uma liderança unida, uma comunidade unida. E a primeira nunca pode esquecer que tem de estar ao serviço da segunda e preocupada com o interesse nacional que é a criação de um Estado palestiniano livre e soberano de acordo com as resoluções da ONU. Esta é a grande e principal responsabilidade da liderança palestiniana e os palestinianos devem apoiá-la nesse sentido. Mas também penso que os israelitas devem optar por lideranças que defendam uma solução justa e pacífica para ambos os lados.
Há um elemento novo no conflito israelo-palestiniano, que afeta principalmente o lado palestiniano que é a extensão do conflito entre potências sunitas e xiitas e as respetivas tentativas de o influenciar de algum modo...
Essa divisão não é real na nossa sociedade. Somos palestinianos e não recorremos à religião para fazer política. Somos muçulmanos, cristãos, beduínos e até judeus, mas somos uma só nação. Mesmo que haja alguns grupos tentados por esse caminho, devemos ter presentes as nossas prioridades próprias e o objetivo nacional. Não se deve politizar a religião nem torná-la presente em qualquer conflito. Para mim, a religião é entre cada pessoa e o seu Deus, não é algo entre nós dois. O importante entre as pessoas é a relação humana e se há uma qualquer religião não interessada em promover o relacionamento humano, qual é o seu valor?
Mas a religião tornou-se um elemento político na região e no conflito.
É isso que temos de evitar e quanto aos que a estão a politizar em proveito de uma agenda própria, devemos evitar as armadilhas que nos estendem como devemos evitar abraçar o clima de medo que alguns procuram instilar por toda a parte. Estas são duas armadilhas contra as quais todos nós nos devemos precaver.
Como se tornou o primeiro médico a integrar o quadro de um hospital israelita?
Acreditei no meu trabalho, no que estava a fazer. Quando entramos num hospital em qualquer parte do mundo, seja em Lisboa seja noutra cidade, encontramos doentes de diferentes origens. Um médico vai tratá-los de maneiras diferentes? Não. São tratados de acordo com a doença e o diagnóstico que é feito. O importante é que estamos a lidar com pessoas. A medicina e a saúde tornam todas as pessoas iguais. Uma vez no hospital, todas as pessoas são doentes, mesmo aquele que cometeu um crime lá fora é tratado como qualquer outro doente. Aquilo a que ele tem de responder, será perante um tribunal. Pergunto eu: por que é que não seguimos fora dos hospitais, os princípios que observamos no interior deles? Deixe-me contar isto: um dos momentos mais felizes da minha vida é quando coloco nos braços de uma mãe o bebé que ajudei a trazer ao mundo. Geralmente, a criança está a chorar e consegue-se diferenciar o choro de uma criança palestiniana de uma israelita ou de outra qualquer? É isto que é preciso compreender e usar o exemplo desta profissão como exemplo para o mundo fora dos hospitais. É nisto que acredito e é isto que defendo ser o caminho a seguir.
Diria que ser médico ditou a sua visão do mundo?
Como médico e como palestiniano. Mas não só os médicos, também os professores, os jornalistas podem transmitir a mesma mensagem, uma mensagem humana, sem quaisquer preconceitos e sem a politizarem. E com verdade. Não minto aos meus doentes. Se um deles tem cancro, não posso fazer outra coisa que não seja dizê-lo e dizer também que farei tudo para o tratar. O importante é valorizar as vidas humanas, defender valores realmente humanos. Esse é o desafio. Fazer um mundo melhor para todos.
A sua perspetiva tem aceitação em Israel?
A minha mensagem é idêntica para todos. Não varia. Digo o mesmo em toda a parte. Procuro motivar as pessoas, aproximá-las, dar-lhes esperança, ajudar a combater o desespero. E lembrar que ninguém deve escapar às suas responsabilidades. Não vale a pena responsabilizar os outros para evitar as nossas próprias responsabilidades.
PERFIL
Nasceu em fevereiro de 1955 no campo de Jabbalia, em Gaza; estudou Medicina no Cairo, com uma bolsa, e em Londres. É Professor na Universidade de Toronto. Pai de seis filhos (quatro raparigas e dois rapazes), Izzeldin Abuelaish tornou-se desde cedo defensor do diálogo israelo-palestiniano. Perdeu três filhas em 2009 devido a um ataque israelita. Tem nacionalidade canadiana desde 2015.
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