Mundo
11 agosto 2020 às 12h09

Atriz Daniella Perez, vítima de um crime que parou o Brasil, faria 50 anos

Em 1992, atriz foi morta a punhaladas pelo ator com quem contracenava na telenovela em exibição no Brasil e em Portugal. Hoje, Guilherme de Pádua, solto desde 1999, é pastor evangélico e fervoroso apoiante do presidente Jair Bolsonaro.

Horas antes de ser condenado pelo Senado Federal, Fernando Collor de Mello decidiu renunciar à Presidência da República, naquele 29 de dezembro de 1992. E, no entanto, a notícia de que pela primeira vez na história do Brasil um presidente eleito era afastado por impeachment não foi a abertura dos telejornais. O corpo da atriz de 22 anos Daniella Perez fora descoberto num terreno baldio do Rio de Janeiro. Se fosse viva, ela faria hoje 50 anos.

O crime ganhou ainda mais repercussão por Daniella estar a atuar na telenovela do horário nobre da TV Globo, De Corpo e Alma, também em exibição em Portugal por aquela altura (foi a primeira novela brasileira da história da recém criada SIC). E, sobretudo, por o principal suspeito do crime ser o ator Guilherme de Pádua, 23 anos, com quem Daniella contracenava - protagonizavam um casal romântico, Yasmin e Bira, que acabara de romper na novela.

Ao fim da tarde de 28 de dezembro, Daniella, que era casada com o ator Raul Gazzola, e Guilherme, casado com a contabilista Paula Thomaz, grávida de 4 meses na época, gravaram a cena do fim da relação.

Segundo testemunhos de funcionários, Guilherme chorou em seguida: ele temia que, dessa forma, o seu papel fosse substancialmente reduzido e atribuía a Daniella e à sua mãe, Glória Perez, autora da novela, a decisão. Para ele, como Daniella rejeitara o seu assédio, a separação na novela era retaliação das duas a essas aproximações.

Pádua saiu ao fim da tarde dos estúdios, onde Daniella continuou até às 21.00 a gravar outras cenas, e voltou ao local de gravação, com Paula escondida no carro. Depois de tirar fotografias com a colega atriz e um punhado de fãs, saiu. Esperou Daniella num posto de combustível e seguiu-a.

Logo após, atravessou o carro na frente do da vítima. Ambos saíram. Ele socou-a, segundo os funcionários do posto que viram a cena. Desmaiada, Daniella foi levada para a viatura de Pádua, onde a mulher dele assumiria o volante a partir dali. O ator passou a guiar o automóvel da atriz.

Pararam então num terreno baldio. Lá, o casal desferiu 18 punhaladas em Daniella, perfurando pescoço, pulmões e coração da vítima.

Ainda naquela noite, a polícia encontraria o carro de Daniella e, horas depois, o corpo. Já na esquadra, Glória Perez e Raul Gazzola, aos prantos, receberam o apoio do elenco e da equipa de produção da telenovela - incluindo de Guilherme e de Paula, os assassinos.

Segundo testemunhas, Gazzola terá dito até a Pádua que ele era "um bom amigo".

No dia seguinte, mais ou menos à mesma hora que Collor renunciava, a polícia, com base nos depoimentos dos funcionários do posto de combustível e em outras provas, prendeu o casal. No último dia de 1992, Guilherme de Pádua confessou o crime. Dias depois incriminou Paula Thomaz.

Ele, cuja motivação fora a perceção de que veria o seu papel na novela reduzir-se, e ela, sobretudo movida por ciúmes doentios de Daniella, foram condenados a 19 anos de prisão. Mas cumpriram apenas sete, por bom comportamento. O filho de ambos, Felipe, nasceu em 1993.

Os dois acabariam por se divorciar logo após o homicídio, por causa de um conflito de versões entre os advogados de ambos - o de Paula alegou que ela estava num centro comercial à hora do crime, o de Pádua sustentou que foi ela quem desferiu as punhaladas.

Bailarina profissional

A Prefeitura do Rio de Janeiro deu o nome de Daniella Perez a uma creche, e em dezenas de cidades do Brasil, incluindo as populosas Joinville, em Santa Catarina, e Vila Velha, no Espírito Santo, há ruas em sua homenagem.

Antes de De Corpo e Alma, onde depois da morte da atriz e a detenção do ator a personagem Yasmin "fez longa viagem de estudos para o estrangeiro" e Bira simplesmente desapareceu da história, Daniella, ou Dany, como era chamada em família e no círculo de amigos, participara em três novelas, entre as quais Kananga do Japão, onde conheceria o marido Raul Gazzola. Na noite de Natal de 1992, três dias antes de morrer, interpretou a Virgem Maria num concerto televisionado do cantor Roberto Carlos.

Além de atriz, Daniella era bailarina profissional.

Solto desde 1999, Pádua, que se estreava em televisão em De Corpo e Alma, uma novela que fez sucesso por abordar temas incomuns até então, como doação de órgãos, subcultura gótica e clubes de strip tease masculinos, casou-se segunda vez em 2006, com Paula Maia, 14 anos mais nova, que conhecera na igreja evangélica que passou a frequentar. Os dois divorciaram-se oito anos depois. "Ele é um grande manipulador", acusou ela após a separação.

Em 2017, Pádua casou-se com Juliana Lacerda e tornou-se pastor da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, sua cidade natal.

A sua última aparição pública foi a 24 de maio deste ano, em Brasília, numa manifestação de apoio ao presidente da República Jair Bolsonaro e contra o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e a imprensa. "Se Deus quiser, o Brasil vai mudar", publicou, entre ofensas à classe política, nas suas redes sociais, como legenda de uma fotografia onde surge de máscara com as cores da bandeira do Brasil.

Paula Thomaz, que agora prefere ser chamada de Paula Nogueira, depois de sair da prisão tirou curso de Gestão de Empresas.

Mudança na lei

Raul Gazzola, 65 anos, sofreu de depressão, pânico e ansiedade nos anos seguintes à morte de Daniella. Voltou a casar-se 12 anos depois, com a estilista Mariuza Palhares, com quem teve uma filha e de quem se separou em 2003. Em 2005, casou-se com a piloto de aviões Fernanda Loureiro.

Sofreu três ataques cardíacos nos últimos anos, mas sem sequelas graves.

A sua última participação como ator de televisão foi em A Força do Querer, telenovela da Globo da autoria da ex-sogra e amiga, Glória Perez, hoje com 71 anos, que nos três anos seguintes à morte da filha não escreveu para se dedicar a tempo inteiro ao caso.

Depois da morte da sua primogénita em 1992, Glória foi abalada, em 2002, pela morte de Rafael, o seu terceiro filho. Portador da síndrome de Down, morreu aos 25 anos, por infeção intestinal generalizada após uma operação.

Por iniciativa da escritora, com base no crime de Guilherme e Paula, a Lei de Crimes Hediondos no Brasil foi alterada, passando a incluir "homicídios qualificados praticados por motivo torpe ou fútil, ou cometidos com crueldade" e não permitindo pagamento de fianças.

Hoje, como todos os dias 11 de agosto desde o crime, Glória Perez recordou a filha nas suas redes sociais. "11 de agosto. Cada aniversário faz a conta de um tempo que ela não viveu. É um parto às avessas. Um dia que doi.."