A história do futebolista que é chutado como uma bola entre três países
Quando os portugueses ocuparam o arquipélago de 30 ilhas junto à península arábica o conceito de direitos humanos estava por formular. Do século XVI para cá, a terra a que chamámos de Barém passou para as mãos dos persas e, no final do século XVIII, a dinastia Khalifah estabeleceu o emirado, que é desde 2002 um reino. Durante cerca de 140 anos, até 1971, foi um protetorado britânico. Estamos em 2019 e o conceito de direitos humanos continua por apreender naquela terra que conheceu um desenvolvimento ímpar nas últimas décadas graças aos rendimentos da exploração do petróleo e do gás natural. Exagero?
Prisioneiros políticos como Ali Alarab e Ahmed Almalali aguardam execução no corredor da morte. A principal figura da oposição, Ali Salman, viu a sua sentença de prisão perpétua confirmada no dia 28 de janeiro. Estes prisioneiros são a face visível, como o defensor dos direitos humanos Nabeel Rajab (também preso), de um número que ascende a 5000 prisioneiros de consciência - numa população de cerca de 1,5 milhões de habitantes.
Um grupo de 19 deputados britânicos subscreveu uma petição para o MNE Jeremy Hunt apelar para a libertação de Nabeel Rajab - um dos 100 pensadores globais para a Foreign Policy.
Porém, as relações do Reino Unido com o Bahrein têm sido de apoio incondicional, quer ao nível institucional, quer na formação policial e judicial, o que é usado pelo regime como argumento para não deixarem, por exemplo, a entrada do relator da ONU sobre tortura. Em 2016, o Observer noticiou a forma como um relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre o Bahrein foi branqueado devido à intervenção britânica.
Na década de 90, resultado de uma aliança de grupos de esquerda, liberais e islamistas, houve um levantamento contra o regime autoritário. A repressão prendeu centenas de pessoas e quatro dezenas acabaram mortas, .
A primavera árabe, iniciada em 2011 na Tunísia, estendeu-se também ao Bahrein. Manama tudo fez para reprimir a dissidência. Em março de 2011, tropas da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos foram enviadas para ajudar o Bahrein. Associações de defesa dos direitos humanos reportam a morte de 90 pessoas e de centenas de feridos. Milhares foram presas e muitas sofreram abusos e tortura.
Jamal Khashoggi, o jornalista e ativista assassinado no consulado da Arábia Saudita na Turquia em 2018, foi o diretor-geral da TV Al Arab. Um projeto de um canal noticioso pan-árabe iniciado em 2011 e que só durou umas horas de emissão, em 2015, ao dar voz à oposição. A emissão foi cortada para sempre na sequência de uma divergência "técnica e administrativa" com o regime.
Em 2017, o parlamento do Bahrein aprovou - e o rei Hamad bin Isa Al Khalifa ratificou - o julgamento de civis em tribunais militares, uma medida considerada pelos defensores dos direitos humanos equivalente à imposição de uma lei marcial não declarada. Nesse ano o único jornal independente foi fechado e cessou a moratória à pena de morte. Como se lê no relatório de 2018 da Human Rights Watch o panorama piorou. Ou num relatório realizado em 2017 por três associações de direitos humanos: em 2012 o Conselho de Direitos Humanos da ONU enviou 176 recomendações ao Bahrein. Das 158 recomendações que as autoridades aceitaram, só pôs parcialemente em prática duas, criar um tribunal de direitos humanos e reconstruir os templos xiitas.
Mas não é só o Reino Unido (e os estados do Golfo com a Arábia Saudita à cabeça, diga-se) que tem relações estreitas com o Bahrein. A Tailândia também e isso pode ser um fator adicional de preocupação para Hakeem al-Araibi e a sua família. "Tememos que Hakeem pague a fatura pela relação forte entre estes dois países", diz Fatima Yazbek, do Gulf Institute for Human Rights, sedeado na Austrália, à SBS News.
A família real do Bahrein visita anualmente a Tailândia; o primeiro-ministro (desde 1970) Khalifa bin Salman Al Khalifa foi proprietário, em conjunto com o antigo rei da Tailândia, do grupo de hotéis de luxo Kempinski. E na capital do Bahrein, Manama, vai abrir um centro comercial dedicado apenas aos produtos tailandeses. O Thai-Mart deverá ser inaugurado nos próximos meses.
Al-Araibi aguarda numa prisão de Banguecoque pela decisão do tribunal sobre o pedido de extradição efetuado pelas autoridades do Bahrein. A forma como um jogador de futebol se apresentou, no dia 4, em tribunal, descalço e agrilhoado, chocou o mundo. A forma como se dirigiu aos jornalistas também não vai ser esquecida: "Por favor, digam à Tailândia, não me enviem para o Bahrein! O Bahrein não me defende. O Bahrein mata os xiitas!".
Em tribunal, o jogador que fugiu do seu país em 2013, primeiro via Qatar, depois para o Irão, e por fim desembarcando na Austrália, negou as alegações do regime do Bahrein e disse que se voltasse para o seu país iria ser torturado.
Al-Araibi tem sido um crítico das autoridades desde que foi detido em novembro de 2012 e sujeito a tortura. Em 2014, as autoridades do Bahrein condenaram-no à revelia a 10 anos de prisão sob a acusação de atacar uma esquadra de polícia. O seu irmão está atualmente a cumprir uma pena de prisão com as mesmas acusações. Acontece que Hakeem estava num jogo de futebol que foi transmitido pela televisão.
O futebolista foi detido no dia 27 de novembro quando aterrou na capital tailandesa, resultado de um alerta vermelho emitido pela Interpol. As versões são contraditórias: o jogador, que tem estatuto de refugiado desde 2017, nunca poderia ser preso com base num alerta emitido pelo país do qual fugiu. Manama emitiu o alerta para a Interpol no dia 8 de novembro, no mesmo dia em que o jogador e a sua mulher receberam o visto para visitar a Tailândia em férias.
O papel de Camberra no processo também não está isento de críticas. A Austrália alertou igualmente a Tailândia da chegada de Hakeem al-Araibi e só dias mais tarde revogaram o pedido, tendo depois os funcionários consulares pedido a sua libertação. Mas os tailandeses explicaram então que que tinham um pedido de detenção e extradição do Bahrein.
Apesar de ter chegado à Austrália em 2014, Hakeem al-Araibi recebeu o estatuto de refugiado em 2017. Mas continua a ser um cidadão baremita, pelo que a Austrália não pode valer toda a sua influência.
Para a Tailândia, o ideal seria que a situação fosse resolvida entre a Austrália e o Bahrein, como admite num comunicado. De outra forma, afirma, cabe ao tribunal decidir e o poder político não vai interferir.
Como jogador de futebol, Hakeem devia também protegido pela política de direitos humanos da FIFA, o organismo internacional que governa o futebol. Mas não se ouviu nada, o que reforça a teoria do jogador de que está a pagar o preço das entrevistas que deu em 2016. Nelas criticou o compatriota Salman bin Ebrahim Al Khalifa, vice-presidente da FIFA e presidente da Confederação Asiática de Futebol. Khalifa concorria à presidência da FIFA.
"Isto não tem nada a ver com minha condenação. O Bahrein quer que eu volte para me punir porque falei com a imprensa em 2016 sobre os direitos humanos terríveis e sobre como o xeque Salman é um homem muito mau, que discrimina os muçulmanos xiitas", disse numa entrevista na prisão ao Guardian.
"Tenho tanto medo de ser enviado de volta ao Bahrein, tanto medo porque 100% vão prender-me, vão torturar-me novamente, possivelmente vão matar-me", disse Al-Araibi.