A ascensão e a queda de Omar al-Bashir

Um mês depois de Abdelaziz Bouteflika, na Argélia, Omar al-Bashir, no Sudão, é deposto por protestos pró-democracia da sociedade civil e militares que resolveram apoiar os manifestantes.
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Muitos se lembrarão da polémica que a vinda a Lisboa de três líderes africanos causou, em dezembro de 2007, quando da segunda cimeira entre a União Europeia e África: Muammar al-Kadhafi, da Líbia, Robert Mugabe, do Zimbabwe, e Omar al-Bashir, do Sudão. O primeiro acabou apanhado pela Primavera Árabe e morto por rebeldes a 20 de outubro de 2011, com o apoio internacional no âmbito da então denominada zona de exclusão aérea. O segundo foi deposto, em novembro de 2017, depois de os militares terem decidido apoiar uma vaga de protestos contra o homem que estava há 37 anos no poder. O terceiro foi deposto, nesta quinta-feira, após três décadas no poder. Também por protestos pró-democracia da sociedade civil. Igualmente apoiados, uma vez mais, pelos militares do país africano muçulmano com 40,5 milhões de habitantes.

Al-Bashir, de 75 anos, foi detido pelos militares e posto em prisão domiciliária num sítio seguro, segundo anunciou na televisão pública o ministro da Defesa do Sudão, Awad Mohamed Ahmed Ibn Auf. O mesmo responsável declarou o estado de emergência durante três meses, anunciou um cessar-fogo, a suspensão da Constituição e que vai haver um período de gestão de dois anos, levado a cabo pelos militares, seguido da realização de eleições presidenciais livres. O plano, porém, está longe de ser consensual e já foi rejeitado pela Associação de Profissionais Sudaneses, principal organizador dos protestos contra o chefe do Estado sudanês. Fonte da associação, citada pela Reuters, disse que tinha sido pedido aos manifestantes para não arredarem pé das ruas e manterem a pressão sobre o que sobra do regime.

O presidente deposto era, há anos, alvo de um mandado de captura do Tribunal Penal Internacional (TPI) por causa das alegações de genocídio na região do Darfur, onde, em 2003, eclodiu uma guerra que fez pelo menos 300 mil mortos e afetou 4,7 milhões de pessoas, entre deslocados internos, refugiados, etc... Em várias ocasiões, Al-Bashir desafiou esse mandato de captura, com deslocações ao estrangeiro, como por exemplo à África do Sul, em 2015, e à Jordânia, em 2017. Em ambas as ocasiões o mandado de captura do tribunal internacional não foi executado pelas autoridades desses países.

Al-Bashir é acusado de ter apoiado as violentas milícias árabes Janjaweed, que levaram a cabo crimes de guerra e ações de limpeza étnica contra as populações negras daquele país. As vítimas, segundo a acusação do TPI, eram sobretudo pertencentes às etnias fur, masalit e zaghawa. Mulheres que foram violadas por homens das Janjaweed contaram que, enquanto eram atacadas, eles lhes diziam que estavam a fazer um bebé mais clarinho. A ONU tentou, em vão, obter consenso no Conselho de Segurança da ONU para uma maior ação no Darfur. O atual secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, visitou a região, na altura na qualidade de alto-comissário da ONU para os Refugiados. Colin Powell, ex-secretário de Estado dos EUA, foi das poucas pessoas que ousaram, logo no início, em setembro de 2004, chamar genocídio ao que se passava naquela região do oeste do Sudão.

A carreira de Al-Bashir, cuja imagem de marca eram são os seus turbantes e anéis de ouro, sempre foi pautada pela guerra. Chegou ao poder, em 1989, depois de um golpe de Estado. Quando isso aconteceu, o país estava mergulhado numa violenta guerra civil, que opunha o norte e o sul e durou 21 anos. Apesar disso, em 2011, quando o Sudão do Sul se declarou um Estado independente, com apoio internacional, Omar al-Bashir não apresentou grandes entraves. O sul cristão separou-se do norte muçulmano, depois de, num referendo, 99% dos sul-sudaneses terem aprovado a divisão. A independência foi declarada a 9 de julho de 2011 e contou, desde logo, com o apoio dos EUA.

Nascido a 1 de janeiro de 1944, numa família de agricultores do norte do Sudão, Al-Bashir é membro de uma tribo beduína. Chegou a fazer parte do Exército do Reino do Egito enquanto jovem e a combater contra Israel em 1973. Pouco se conhece sobre a sua vida privada. Sabe-se apenas que não tem filhos e que, aos 50 anos, casou-se com uma segunda esposa. Trata-se da viúva de Ibrahim Shams al-Din, considerado um herói de guerra no norte, para dar o exemplo aos outros. A sua longevidade no poder deve-se, segundo alguns, às lutas internas no Partido Nacional do Congresso, a ponto de os membros desta formação desconfiarem mais uns dos outros do que do próprio Al-Bashir.

Os protestos contra o presidente começaram em dezembro do ano passado quando o governo anunciou o aumento dos preços dos combustíveis e do pão. O Sudão é o terceiro maior produtor de petróleo da África Subsariana. É membro da União Africana. Em 2017, segundo dados da agência noticiosa Bloomberg, produzia 72 mil barris de petróleo por dia. Começaram entretanto a surgir, nalguns círculos, apelos à demissão de Omar al-Bashir e dos seus próximos. Várias pessoas foram presas ou mortas durante a repressão das manifestações. A Amnistia Internacional fala em 2600 detenções. Mas a situação tornou-se insustentável. Em fevereiro, o presidente sudanês remodelou o governo e substituiu governadores dos estados por membros das Forças Armadas.

Apesar de tudo, os protestos continuaram e os militares, em vez de prosseguirem a repressão, juntaram-se ao povo. Um pouco como aconteceu, há um mês, na Argélia, com os protestos que forçaram a demissão de Abdelaziz Bouteflika. O líder argelino de 82 anos estava no poder desde abril de 1999 e o seu estado de saúde é bastante debilitado. Na Argélia, as eleições presidenciais, inicialmente previstas para 18 de abril, foram adiadas para 4 de julho. Ainda é cedo para dizer o que vai acontecer no Sudão e se Omar al-Bashir será entregue, pelo próprio país, ao TPI, como aconteceu com o ex-presidente da Costa do Marfim, Laurent Gbagbo. Este, em janeiro deste ano, foi absolvido de crimes contra a humanidade e libertado. Para já, o Conselho Militar de Transição do Sudão diz que não pretende extraditá-lo.

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