Em 2021, Albarquel viu ser hasteada a bandeira "Praia Acessível - Praia para Todos" e ser reaberto o antigo forte militar, onde a aristocrata inglesa Helen Hamlyn investiu um milhão de euros. Mas, na memória dos que se dizem "guardiões" desta praia de Setúbal, fica o tempo em que ela era lugar de divisão social. Em tendas improvisadas, num areal cheio de pedras, ali acampavam os garotos e as famílias de pescadores do Viso e do Troino. Do outro lado da muralha rochosa, no parque de campismo, caravanistas veraneavam. Os dois mundos raramente se cruzavam..Com o olhar esticado desde o antigo edifício dos Estaleiros do Sado até à muralha que guarda o acesso à praia de Albarquel, José Ricardo, com 67 anos, Jaime Santos, com 70 e Idaleciana Soares nos seus inabaláveis 87 anos guardam o Parque Urbano de Albarquel, ao serviço da Câmara de Setúbal. Um espaço onde outrora os meninos do Troino e a menina do centro da cidade viam "um mundo inacessível, apenas reservado para turistas endinheirados"..Era histórico o parque de campismo de Albarquel, que abriu portas no início do século XX, batizado com o nome "Toca do Pai Lopes" em homenagem a um professor que ali viveu, pelo menos, até ao final da década de 1960. Encerrou portas em abril de 2003, depois de a Câmara de Setúbal ter concluído que precisava de várias intervenções e seria mais útil transformá-lo num espaço verde, acessível para toda a população. E no lugar da zona de campismo, a 8 de maio de 2008 foi inaugurado o Parque Urbano de Albarquel, que custou 3,7 milhões de euros e devolveu à população uma área de 3,5 hectares ligada à cidade e à praia de Albarquel. Derrubava-se finalmente a barreira social que mantinha os setubalenses apenas com acesso à praia "ainda conhecida como sendo dos pobres", dizem José Ricardo e Jaime Santos..Os dois reformados assentaram dezenas de acampamentos no areal de Albarquel. E é dos dias passados naquela praia, entre amigos e família, que Jaime Santos guarda as melhores memórias. Nasceu na Rua Guilherme Gomes Fernandes, paralela à Doca dos Pescadores, e passou a infância e a juventude a correr para Albarquel..Mesmo depois de casado, já manobrador na fábrica SAPEC, ainda acampava na praia com a esposa e um casal de amigos, "em tendas onde não faltava até uma cozinha improvisada". E nas antigas tabernas que ali se mantinham de pé comprava "tabaco, vinho, café e mercearias, para não faltar nada nos dias de acampamento"..Albarquel ainda hoje mantém a identidade ligada às famílias dos bairros do Troino e do Viso, "passada de pais para filhos", mas "está muito diferente", afirma Jaime Santos, à semelhança do colega José Ricardo. "Já não é um recanto guardado para os pobres", agora os turistas que antes ficavam do outro lado da muralha "procuram a praia da Arrábida mais próxima da cidade", que tem já mais areia..Ao contrário de Jaime Santos, para José Ricardo a Albarquel do passado não traz apenas recordações de lazer, foi mesmo local de trabalho. Nascido na Rua do Castelo, uma das mais antigas e populares do Bairro do Troino, o carpinteiro naval trabalhou nos Estaleiros do Sado. A empresa que, na década de 1980, construiu em Albarquel um veleiro encomendado por um casal de holandeses..O projeto naval "levou um ano e meio até estar concluído". E durante esse tempo "o casal ficou a viver no parque de campismo", recorda José Ricardo. Um período em que "esporadicamente" conseguia manter contacto com os caravanistas do parque..A imagem do espaço ajardinado que é hoje o Parque Urbano de Albarquel não apagou da memória de José Ricardo as formas do lugar onde, até 2008, o aspeto geral era "totalmente diferente", com "grandes tendas armadas" e de "acesso controlado". Assim como ainda estão vivas as memórias da praia onde não havia equipamentos balneares, nem bebedouros, chuveiros, passadiços no areal ou painéis com informações sobre a praia. Isso "eram coisas que nem sei se outras praias aqui perto tinham, quanto mais esta, tão pobre", recorda..Novos equipamentos que no ano passado valeram a Albarquel a distinção de "Praia + Acessível 2020" do país. E, neste ano, após um reforço de equipamentos feito pela autarquia de Setúbal, com a aquisição de uma nova cadeira e um andarilho anfíbios e um audioguia para pessoas com deficiência visual, permitiu hastear a bandeira "Praia Acessível - Praia para Todos"..No passado, também os acessos a Albarquel eram outros. Durante a maré baixa, "não aparecia areia como agora, havia mais lodo e pedras". Era equilibrados nelas que os garotos de Setúbal contornavam o parque de campismo e a muralha do forte e alcançavam Albarquel para ali passaram "dias ou semanas, se não houvesse no que trabalhar, como era o caso dos pescadores"..Já os caminhos de Idaleciana Soares levaram mais de sete décadas até se cruzarem com o Sado. Só mergulhou os pés nele aos 75 anos, depois de começar a trabalhar no Parque Urbano de Albarquel. A conserveira reformada passou a infância e a juventude "a pedir esmola pelas ruas da cidade". E a distância entre si e o rio não diminuiu com o passar dos anos. Mulher feita e mãe, apenas via o brando movimento da água "quando passava na berma da estrada nacional, a caminho do antigo sanatório, hoje Hospital do Outão", onde a filha com deficiência estava internada..Na berma da Estrada Nacional 379-1, palmilhada por Idaleciana Soares centenas de vezes, ficou terminado neste ano o novo acesso pedonal à praia de Albarquel. Uma nova ligação à cidade..A notícia foi avançada pela presidente da câmara, Maria das Dores Meira, a 25 de fevereiro de 2019. Setúbal ia ter um passeio pedonal de ligação à praia de Albarquel, traçado na berma da nacional, que serpenteia pela Arrábida..O caminho de 600 metros saiu do papel 15 anos depois de o primeiro plano ter sido traçado e ficou concluído no início de 2021. Começa no restaurante Restinguinha e termina no Forte de Albarquel. Mas quem estiver no Parque Urbano pode subir a colina ajardinada e alcançar esta pequena rota a partir desse ponto..A ligação pedonal começou a ser planeada durante a requalificação da frente ribeirinha de Setúbal, ao abrigo do programa Polis. Mas, em 2006, Demétrio Alves, na época diretor executivo da Sociedade SetúbalPolis, anunciou que o plano de ligar os dois lados da muralha, através de um acesso na frente ribeirinha, ficava "suspenso" devido ao "impacto visual que a construção causaria". Como alternativa a sociedade ponderava, no futuro, com data por definir, "uma ligação pela parte superior do Parque Urbano de Albarquel não concretizou apenas um plano antigo. Também melhorou a mobilidade no acesso às praias da Arrábida ao abrigo do plano Arrábida sem Carros que desde 2018 promove a utilização de transportes públicos, ciclovias e vias pedonais no acesso às praias..Num fim de tarde de verão, terça-feira, o corrupio de gente a pé, em bicicletas ou trotinetas, desde a frente ribeirinha de Setúbal até à praia de Albarquel é intenso e começa no Jardim da Saúde..Depois da Doca dos Pescadores uma rulote de venda de farturas, e churros abre o movimento. Pelo caminho ficam famílias setubalenses que, de cadeira no braço, procuram o melhor lugar à sombra para contemplar o Sado e a vista sobre Troia, de vez em quando rasgada por um barco. Estão os Lopes, que unem pais, filhos e netos à beira-rio "para refrescar e conversar em família". E está o jovem casal Karatz, que veio da Alemanha "passar férias a Portugal" e anda "à descoberta de outras cidades para além de Lisboa"..Adiante, na praia da Saúde, o areal está lotado e avós setubalenses chamam netos com nomes distantes do habitual em português. Jane e Christopher saem da água, vieram passar férias a Setúbal com a avó e "depois de um dia de mergulhos faz-se tarde para ir jantar". Na esplanada ninguém parece ter pressa para essa demanda..Entre turistas e setubalenses levantam-se copos com bebidas frescas e esticam-se conversas triviais até ao pôr do Sol. Na ciclovia salta um artista de rua ao som do flamenco. E, ao fundo, avista-se o Parque Urbano de Albarquel, "o PUA" das gerações mais jovens, porque os mais velhos ainda o conhecem por "Toca do Pai Lopes". A partir de ali, se a maré estiver baixa, pelo pequeno areal alcança-se a praia de Albarquel. Com a maré alta, o caminho faz-se pelo novo acesso pedonal que liga agora dois mundos outrora distantes..Na falésia sobranceira à praia mais acessível do país, em tempos local de eleição para as famílias do Troino e do Viso, o Forte de Albarquel mantém-se inquebrável desde o século XVII, renovado agora com a ajuda do fundo de apoio à cultura da aristocrata britânica, Lady Helen Hamlyn..O edifício histórico é a "nova sala de visitas da cidade e centro cultural e educativo", como descreve a presidente da Câmara Municipal de Setúbal, Maria das Dores Meira..As obras que reabilitaram o imóvel "desprezado, esquecido e abandonado durante décadas", surgiram depois de, em janeiro de 2015, o Ministério da Defesa ceder à câmara o antigo equipamento militar, por um período de 32 anos..Depois desse ato seguiu-se em 2016 a assinatura de um memorando com The Helen Hamlyn Trust, para realizar em parceria as obras necessárias, no valor de 1,6 milhões de euros. E a 10 de julho as portas do Forte de Albarquel voltaram a abrir-se..Durante a inauguração, Maria das Dores Meira acentuou que foi preciso chegar 2021 para Setúbal ter o património edificado do concelho "praticamente todo recuperado", depois de décadas de "inoperância", que levaram "à degradação do património coletivo"..Já Helen Hamlyn, também presente na inauguração, confessa-se muito entusiasmada pela "abertura do histórico forte num local verdadeiramente deslumbrante". Na cidade que conheceu há 12 anos e pela qual se diz "apaixonada"..dnot@dn.pt