Como se faz uma revolução em quarentena?

A música de Zeca Afonso guiou o primeiro 25 de abril em direção à liberdade. Agora, as colunas de Zeca Duarte num bairro em São Domingos de Rana mostram-nos como, das nossas casas, podemos fazer uma nova revolução - não contra um regime, mas contra um vírus.
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São quatro e meia da tarde do dia 25 de abril. Zeca Duarte acaba de fechar a porta aos agentes da polícia que foram chamados ao nº 90 da Rua dos Diamantes por causa de uma queixa de ruído. Nesta urbanização em São Domingos de Rana, no concelho de Cascais, algumas crianças ainda dormem e as colunas de Zeca, que prestam homenagem ao Dia da Liberdade em alto e bom som, são o seu maior inimigo.

Lá fora, dezenas de famílias juntam-se à varanda, de bandeira vermelha e verde, para entoar Grândola, Vila Morena de Zeca Afonso. Lançam-se acenos e beijinhos de longe. Pelo ar, voam também sorrisos e "boas tardes". Vivem-se tempos estranhos e as ruas deste bairro estão agora vazias - como têm estado há mais de um mês.

Para Zeca Duarte, de 37 anos, a ditadura do recolhimento domiciliário é "sufocante" e instaura uma "gripe da liberdade". E garante que "quando pudermos sair à rua, vai ser o nosso 25 de abril: não contra um governo, mas contra um vírus".

"É necessário tornar este momento mais sério, mas também menos difícil", sublinha. A solução passa, assim, por umas colunas de som e um microfone. Desses, Zeca Duarte já é mestre. A sua formação na produção de eventos deu-lhe as bases do mundo do espetáculo e agora, para animar as noites no bairro em confinamento, desenrasca-se com um sistema improvisado: um computador em cima da máquina de lavar, colunas de 2000 watts a um canto da marquise e um suporte para o telemóvel empoleirado na janela.

Incentivar as pessoas a fazer a revolução entre quatro paredes é, para além disso, a única forma que o gestor de eventos tem de trazer a mulher, Carmen, de volta à normalidade - o seu trabalho como enfermeira no Hospital de Cascais já a levou a trabalhar 14 horas por dia e a passar um mês longe da família. "Já que é preciso ficar em casa, vamos manter o compromisso, de maneira a que a minha mulher e todos os heróis do nosso país - os polícias, os funcionários de higiene urbana e os profissionais de saúde - possam voltar para casa e para que nós possamos também voltar a sair", resume.

"Estamos de parabéns, mas isto ainda está longe de chegar ao fim".

Às 20h30, já o filho de quatro anos de Zeca está sentado no sofá da sala a colocar os auscultadores para se alhear do serão que se avizinha. Entretanto, o pai corre de um lado para o outro, montando a sua estação, fazendo testes de som, cumprimentando os vizinhos que se chegam à janela e os curiosos que espreitam o direto no Facebook.

A sessão à janela começa às 21h e dura trinta minutos, Depois, quando o relógio aponta para as 21h30, está pronto para fazer malabarismos entre eventos ao vivo e intervenções nas redes sociais, sessão que o fará ficar acordado até às três da manhã - mas que nunca o impedirá de fazer tudo de novo no dia seguinte.

Não só se dá música a quem queira ouvir, como também se passa mensagens. "Às vezes isto é mais um momento de sensibilização do que de animação", assegura o gestor de eventos, que dedica algum tempo a transmitir informações sobre o novo coronavírus e acaba sempre com uma mensagem de resiliência: "estamos de parabéns, mas isto ainda está longe de chegar ao fim".

E mesmo com tudo isto, há sempre espaço para deixar mensagens especiais, seja para os que querem passar palavras de apoio, para os que querem dar a boa noite aos avós dois prédios ao lado, para os que querem fazer pedidos de casamento ou ainda para os que querem celebrar os primeiros batimentos do coração do futuro neto. O "homem do leme", como todos lhe chamam, confirma que são estes "os momentos que marcam".

"2020 é o ano das nossas vidas, literalmente"

Nem na noite de 25 de abril os moradores da urbanização se esqueceram da rotina. À hora marcada, lá estavam bandeiras e famílias inteiras à janela, enquanto luzes de todo o tipo ondulavam pela escuridão no interior dos apartamentos. Mesmo os residentes de ruas mais distantes, juntaram-se nos passeios - mantendo sempre a distância de segurança - e aprontaram-se a receber o ritual que se celebra todas as noites sem falha desde o início do confinamento.

A noitada foi dedicada ao povo, com notas de música revolucionária - E Depois do Adeus, do antigo morador do bairro Paulo de Carvalho, foi a canção de encerramento - e de música pimba. O bater ritmado do pé no chão, as buzinas, as palmas e os assobios harmonizaram com "Pimba Pimba" do cantor Emanuel, enquanto miúdos e graúdos cantavam e dançavam à varanda.

E se há bailarico, é sinal de que o espírito bairrista se entranha. O cumprimento ao passar na rua e os favores ao vizinho tornam-se hábitos e os minutos de conversa à janela transformam-se nos mais fundamentais momentos de comunidade. Até já se fala num arraial de bairro assim que se regresse à normalidade. "Será uma réplica disto [noites de animação] durante uma semana", confirma Zeca.

Por outro lado, o recolhimento domiciliário tem igualmente servido para a reinvenção individual. Já no dia de Páscoa, a vizinhança celebrou a reentrada neste ano e houve até quem fizesse a contagem decrescente ou comesse as doze passas. O homem que todos conhecem no quarteirão tem razão quando diz que "2020 é o ano das nossas vidas, literalmente".

Não é por coincidência que ressurreição rima com revolução, porque o que todos querem é voltar a viver livremente, sem medos. Durante a quarentena, uns aprendem a tocar um instrumento - como fez o residente Tiago Pimentel -, outros criam novas tradições com a família e alguns ainda aproveitam para escrever - é o caso de Zeca Duarte, que procura deixar gravadas as aventuras da comunidade durante o confinamento num livro intitulado "Somos Todos Diamantes".

Seja em 1974 ou em 2020, o 25 de Abril conta histórias que tão cedo não esquecemos. Antes unidos para sair à rua, agora unidos para ficar em casa. Mais que tudo, a situação que vivemos fez-nos encararmo-nos enquanto povo. "Hoje" - garante Zeca - "unimos as nossas vozes para dar voz à nossa causa". "Uma rua, um país, o mundo". São esses os lugares percorridos pelos gritos de liberdade dos moradores. E não foi também justamente isso que aconteceu há 46 anos?

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