Filha de mãe somali e pai iemenita, Zaynab Abdi foi obrigada a sair do Iémen por causa da guerra, fugiu do Egito devido a uma revolução política e acabou nos EUA, onde ganhou voz como defensora dos refugiados e das mulheres. A sua irmã mais nova foi uma das milhares que arriscaram a vida a cruzar o Mediterrâneo para chegar à Europa. Zaynab, de 29 anos, esteve nas Conferências do Estoril para contar a sua história e mostrar que os refugiados não são apenas vítimas. Somália, Iémen, Egito, EUA... onde é que considera ser a sua casa? É uma questão profunda... Diria que, tendo passado por tantos lugares, as pessoas às vezes pensam que, quando saímos de casa, já não é a nossa casa. Mas diria que todos são casa para mim. O que faz com que seja casa são as memórias que levo comigo..Sente que as pessoas confundem refugiados e imigrantes e os põem a todos no mesmo saco? Sim, acho que as pessoas não percebem a diferença entre refugiados, deslocados internos e imigrantes. Todos viveram experiências diferentes. E não há forma de dizer qual delas foi a pior. Mas os refugiados e os deslocados internos são forçados a deixar as suas casas, por muitas causas. Eu foco-me na guerra, porque essa foi a minha experiência pessoal, mas também há refugiados climáticos. É algo de que não se fala muito. E há outras questões que forçam as pessoas a deixar o seu país. Do outro lado estão os imigrantes, que não digo que tenham uma vida mais fácil. Porque muitos imigrantes têm de deixar os seus países porque não conseguem uma boa vida a nível económico ou de educação. Outros têm membros da família em quem precisam de pensar. .E a verdade é que só conseguimos saber quem é um refugiado ou quem é um imigrante falando com essa pessoa. E é isso que quer que as pessoas façam, que falem umas com as outras. Exato. Se não falarmos uns com os outros, limitamo-nos a assumir coisas. .Os refugiados ou os imigrantes são parte das lutas políticas. Vemos, por exemplo, o crescimento da extrema-direita na Europa devido a um discurso anti-imigração. Como se sente com isso? Como contadora de histórias e defensora dos refugiados, penso que muitas pessoas sentem que podem simplesmente usar-me para a sua própria agenda. E acho que cheguei a um momento em que soube dizer não. Porque o meu sofrimento enquanto refugiada, a minha história, não é uma agenda para o ganho político de alguém. É uma agenda para uma mudança global, para garantir que acabamos com esta crise de refugiados em todo o mundo. Por isso, se não estão alinhados com a minha própria agenda de garantir que podemos enfrentar esta crise, estão a usar indevidamente a minha história. Estão a usar-me para diferentes agendas que não vão ao encontro dos meus valores e objetivos. E acho que uma das coisas que tenho estado a fazer é ajudar os jovens a perceber o seu poder de contar as suas histórias, mas também a perceber que assim que se tornam vulneráveis, algumas pessoas se vão aproveitar. Sejam vulneráveis, sejam autênticos, partilhem as vossas histórias e exijam mudanças, mas não permitam que pessoas vos usem para uma agenda diferente..A sua história não passou pela Europa, mas a da sua irmã mais nova sim. Ela cruzou ilegalmente o Mediterrâneo até Itália e agora vive na Bélgica. A União Europeia está a querer mudar a sua polícia de acolhimento, empurrando as pessoas para centros fora dos 27. O que acha deste tipo de leis? Acho que não permitir que os refugiados venham de forma segura e legal não faz com que eles não recorram a formas ilegais. Deixa-os vulneráveis a traficantes de pessoas e outros que só querem ficar com o dinheiro e aproveitar-se da sua vulnerabilidade. Não falamos o suficiente das mulheres que estão a ser violadas nas fronteiras quando tentam atravessar de um país para outro, às vezes por militares desses países. Há tantos riscos que os jovens, os seres humanos têm de enfrentar e isso é algo de que não falamos muito quando pensamos nas políticas. Quando dizemos “não” à entrada de migrantes ou de refugiados, isso não os impede de vir. As pessoas ainda vão querer vir. Não há escolha para eles. Ainda antes de a guerra começar no Iémen, o meu primo era um jovem a querer encontrar um lugar melhor. Queria ir para a Grécia, para Itália, para a Europa e encontrar um bom emprego. Ele foi até à Turquia e da Turquia tentou atravessar para a Grécia e afogou-se nas águas. Até hoje o seu corpo não foi recuperado. A família assume que está morto, mas até hoje não tiveram um fecho. E essa é a história de milhares de pessoas. Se alguém lhe tivesse dito “não viajes, vais morrer” ele teria ido na mesma. Só em 2023 houve 2500 pessoas que morreram no Mediterrâneo e as pessoas ainda o estão a tentar atravessar. Isso não as impede. .E muitos países precisam dos imigrantes. Como é que devemos passar essa mensagem? Acho que quando admitirmos que todos fomos refugiados, de uma maneira ou de outra, então percebemos que esta não é uma experiência única das pessoas do Médio Oriente, de África ou da Ucrânia. É a história de todos nós, a história de como a humanidade se começou a movimentar de local para local, quando não havia comida num local íamos para outro. Assim que compreendermos que os refugiados existem há muito tempo, é nesse momento que compreendemos que os refugiados beneficiam cada local onde estão. Por exemplo, o fundador da Apple [Steve Jobs] era filho de um refugiado sírio. Acho que ver as conquistas dos refugiados e a forma como têm tido impacto nas comunidades é muito importante. Mas também não devemos descurar as histórias de pessoas vulneráveis, o trabalhador do dia a dia que pode não estar a fazer grandes conquistas, mas está a cuidar das nossas ruas, a limpar as nossas casa. E que tem a dignidade como qualquer outro ser humano. .Já é cidadã norte-americana, por isso pode votar nestas eleições... Que são complicadas. .A imigração tem sido um tema em destaque. Como analisa esta campanha? Fiquei desapontada. Já sabia do ódio de [Donald] Trump aos imigrantes e refugiados. Antes de ser cidadã americana, os meus dois países, Iémen e Somália, estavam incluídos no veto migratório aos muçulmanos. Foi por isso que não pude ver a minha irmã quando ela conseguiu chegar à Europa. Tecnicamente, com o meu Green Card [cartão de residência] poderia viajar até à Europa. Mas com o veto era mais arriscado para mim. Se deixasse os EUA, talvez não pudesse voltar. E tive que esperar oito anos até ser cidadã americana para poder ver a minha irmã. Já tinha falhado o casamento dela, o nascimento do primeiro filho... Todos esses capítulos. Não estava com ela. E isso não é justo. E olhando para os políticos de hoje... Eles estão entusiasmados por todos nós nos tornarmos cidadãos dos EUA e votarmos, mas nunca somos um tópico de preocupação para muitos políticos norte-americanos e para o Governo. E penso que focar no tema dos refugiados é realmente importante, não apenas a nível global. Estou a falar dos nossos vizinhos, no México, na Guatemala, na Colômbia... tantos refugiados na fronteira. A desumanização dos refugiados que procuram asilo na fronteira é mais do que horrível. As crianças não devem ser detidas e separadas dos pais na fronteira. E penso que esse tema não tem de ser abordado apenas com base no que os republicanos e os democratas precisam, mas também no que os seres humanos precisam e nos direitos que têm de ter. .Teme mais quatro anos de uma eventual presidência de Trump? Definitivamente é algo que temo. E é um momento realmente assustador, não só para nós nos EUA, mas também para o mundo que está a assistir. Digo sempre que em 2016, quando estávamos a alertar toda a gente para o perigo de Trump, ninguém acreditou em nós. Porque a agenda dele não era algo que preocupava a maioria das pessoas. Era mais contra os muçulmanos, os árabes, os imigrantes, as comunidades LGBT e outras minorias. E agora, após termos vivido isso, todos percebem que hoje somos nós, amanhã são vocês. .Que mensagem gostaria de deixar aos portugueses? Nestes dias vi como as pessoas em Portugal são incríveis e gentis. Apenas dizer que se encontrarem um refugiado, não há problema em serem vulneráveis, empáticos, em partilhar histórias. Ser vulnerável para compreender de onde todos vêm. E acho que se não falarmos com estranhos no comboio nunca saberemos a sua história. E precisamos de ter esse tipo de esperança de que a nossa humanidade é o que nos liga, independentemente das nossas diferenças. .susana.f.salvador@dn.pt