"Uma guerra aberta entre Rússia e NATO seria, literalmente, o fim do mundo"

Investigador associado do CIEP / Universidade Católica Portuguesa, Bernardo Ivo Cruz fala ao DN sobre o risco de haver uma catástrofe nuclear na Ucrânia, sobre a "fibra moral" do presidente Zelensky e sobre uma solução diplomática que teria de ser "aceitável para todo".
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Força de dissuasão posta em alerta por Putin, central nuclear ucraniana em chamas. A ameaça nuclear é apenas uma forma de dissuadir a NATO de ir em socorro da Ucrânia ou é uma ameaça que pode tornar-se real?
Mesmo assumindo que o Kremlin ainda domina o processo de decisão e que os acontecimentos ainda não ganharam uma dinâmica própria e fora do controlo do próprio Putin, o risco de uma catástrofe nuclear é real e não deve ser menosprezado. Este risco explicará, em grande parte, a contenção e cabeça-fria da NATO e dos países ocidentais quando, embora apoiando a Ucrânia de forma nunca vista, evitam uma situação em que pudessem ter de confrontar o exército russo diretamente. Uma guerra aberta entre a Rússia e a NATO seria, literalmente, o fim do mundo. Mas o risco de uma catástrofe nuclear não vem só das decisões que os dirigentes russos possam ou não tomar. Como o bombardeamento da Central Nuclear de Zaporizhzhia mostrou, um erro de cálculo, um comandante no terreno que desobedeça ou que simplesmente não saiba o que está a fazer e a Europa pode ver-se a braços com uma tragédia que nos marcaria por muitas décadas.

As forças russas parecem estar a encontrar mais resistência do que estariam à espera. Perante isso é de esperar que Putin passe para ataques mais destrutivos e mortíferos para tentar acabar com a guerra mais rapidamente?
A diferença de meios e capacidade militar entre a Rússia e a Ucrânia é de tal forma substantiva que as expectativas dos dirigentes russos antes da invasão seriam de uma vitória rápida e Putin não poderá deixar a guerra arrastar-se por muito tempo. Mas, claramente, o Estado-Maior russo subestimou a capacidade militar ucraniana, a vontade do seu povo e a resposta da comunidade internacional. Se a Rússia utilizar toda a sua capacidade militar de forma indiscriminada, mesmo sem o recurso a armamento nuclear, certamente será capaz de obter uma vitória militar na Ucrânia, mas será um Estado-pária, isolado na comunidade internacional, numa altura em que ninguém, por maior e mais poderoso que seja, consegue sobreviver fora dos mecanismos económicos, comerciais e de cooperação internacional modernos. Não nos esqueçamos que o PIB da Rússia era em 2020 cerca de US$ 10 mil por pessoa, enquanto que o nosso PIB per capita no mesmo período era de quase US$ 22.500 e os Estados Unidos era US$ 63.500.

O presidente Volodymyr Zelensky conseguiu mobilizar o país e enfrentar Putin, tornando-se um líder credível em tempo de guerra. É de esperar que resista até ao fim?
Os poucos relatos independentes que nos chegam da moral das forças de Putin referem que os militares russos pensavam que seriam vistos pelos ucranianos como heróis libertadores, recebidos de braços abertos e com flores. Basta ver o que está a acontecer para percebermos que o povo ucraniano está a resistir e a lutar corajosamente na defesa do seu país. E as dúvidas que pudessem existir sobre a fibra moral e coragem pessoal do presidente Zelensky terão ficado esclarecidas na já famosa resposta à oferta de asilo dos Estados Unidos: "Eu preciso de balas, não de uma boleia".

Qual será o objetivo final da Rússia? As ambições de Putin podem alastrar a outros países da ex-URSS?
Antes de começar o conflito na Ucrânia, o presidente Putin fez um discurso de mais de uma hora onde falou longamente sobre a sua visão da Rússia e da História. Segundo Margaret MacMillan, professora em Oxford e uma das mais respeitadas historiadoras da atualidade, o discurso de Putin alinha-se na tradição histórica do czar Pedro, o Grande, que unificou a Rússia ao derrotar os suecos numa batalha que teve lugar em solo ucraniano no século XVIII. Por outro lado, numa reunião do Governo russo, Putin terá feito uma referência ao "maldito artigo 5.º" do Tratado da NATO, que diz que um ataque contra um membro da Aliança Atlântica é um ataque contra todos os seus membros, o que explicará os avisos e ameaças do Kremlin contra a expansão da NATO, incluindo à Finlândia e à Suécia. Sem pretender entender o que se passa na cabeça do presidente Putin, parece que ele gostaria de reconstruir o império mas percebe que a NATO é o limite da sua ambição. Os factos dos últimos dias terão mostrado que não é só a NATO mas quase toda a comunidade internacional, a sociedade civil e até as empresas.

Num cenário extremo e em caso de o conflito se arrastar, poderá haver uma revolta na Rússia que possa tirar o presidente Putin do poder?
Há um precedente histórico: quando a União Soviética foi obrigada a retirar os mísseis de Cuba, o secretário-geral do partido foi substituído. O Kremlin não gosta de perder... Mas a sua pergunta levanta uma questão muito importante. Sem hesitar no apoio à Ucrânia e sem tolerar a violação dos Direito Internacional e da Carta da ONU, temos que começar a pensar no dia seguinte ao fim da crise. Quais são os cenários que se colocam? Como vamos nós agir em cada um deles? Que tipo de relacionamento iremos estabelecer com a Rússia? Como vamos impedir que a situação se repita noutro ponto do globo? Aconteça o que acontecer, a Rússia continuará a existir e a ter armas nucleares.

Os encontros entre russos e ucranianos na Bielorrússia têm servido para marcar novos encontros. Ainda acredita numa solução diplomática?
Uma solução diplomática obriga a um acordo que seja aceitável para a Ucrânia, para a Rússia e para a ONU e para o mundo, o que não será fácil pois todos terão que ceder alguma coisa. Mas é a única forma de evitar a destruição da Ucrânia, milhões de refugiados e de mortes.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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