Três décadas a promover a amizade Portugal-China que valeram o elogio do presidente Xi Jinping

Professora de língua e culturas chinesas três décadas a promover a amizade Portugal-China que valeram o elogio do presidente Xi Jinping.

Foi há meio século, mas Wang Suoying e o marido, Lu Yanbin, recordam-se bem dos tempos como guardas vermelhos, durante a Revolução Cultural com que Mao Tsé-tung quis fazer a sociedade chinesa, comunista desde 1949 mas de novo a aburguesar-se, retomar o contacto com a realidade da vida nas fábricas e no campo. Wang e Lu, então adolescentes, tiveram de suspender os estudos e ir ela para uma região agrícola perto de Xangai e ele trabalhar como operário naquela que ainda hoje é a capital económica da China. Sem traumas, falam ambos abertamente dessa época que já passou, que é distante vista hoje de uma China desenvolvida e próspera, mas que deixou algumas memórias dolorosas, pois o Partido Comunista Chinês em busca de pureza ideológica foi duro com muitos dos quadros.

Combinámos almoçar em Lisboa, na Almirante Reis, num restaurante chinês onde nos conhecemos há já alguns anos. O New Wok, por causa da pandemia, deixou de ter buffet e agora vão trazendo pratinhos com comida diversa, desde os crepes ao pato à Pequim, passando pelas lulas com piripíri, a carne de vaca com pimentos ou a galinha com amêndoas. A dona, Wang Xiuyu, é oriunda de Zhejiang, a província costeira a sul de Xangai de onde vem a maior parte da comunidade chinesa em Portugal. E há uma menina pequenina, sobrinha, que vem ser apresentada ao casal de professores, personalidades tão distintas da comunidade chinesa que num artigo publicado no DN quando visitou Portugal em 2018 o presidente Xi Jinping as referiu: "Há, em Portugal, um casal de professores chineses idosos que ao longo de décadas, apesar de terem problemas de saúde, não se cansam de ensinar a língua chinesa e divulgar a cultura chinesa."

O pretexto para esta conversa com a professora Wang é duplo: a sua recente jubilação pela Universidade de Aveiro, onde ensinava língua e cultura chinesas e tradução chinês-português e português-chinês, e a reedição atualizada do livro em que traduziu para chinês as primeiras impressões dos portugueses que visitaram no século XVI o Império do Meio (ou País do Meio, Zhongguo). "São relatos positivos, de grande admiração, viam a China como quase perfeita, tirando a religião, por não ser cristã", explica Wang, sobre a sua Antologia dos Viajantes Portugueses na China.

Nascida em Xangai em dezembro de 1951, é do signo chinês Coelho, e Capricórnio no Zodíaco ocidental, e um dia, numa entrevista sobre o Ano Novo chinês, Wang descreveu-se referindo-se a essa duplicidade: "Sou Coelho e Capricórnio e identifico-me com eles. Sou firme, gentil, com bom coração, características do Coelho, e também sou honesta, responsável e determinada, qualidades atribuídas normalmente a capricórnios."

O casal tem um filho e uma neta. A menina, hoje com 7 anos, é bilingue português-mandarim, só não gosta de ouvir os avós falarem "o outro chinês estranho", que na realidade é o dialeto de Xangai. Em casa, com o marido, a professora diz que "é como calha: umas vezes em mandarim, outras em dialeto de Xangai, outras ainda em português". E ri-se.

Alunos da mesma escola, Wang e Lu estudavam espanhol quando a reitora lhes disse que era importante que se dedicassem antes ao português para depois serem professores daquela instituição. "Havia uma brasileira que era casada com um professor alemão e foi ela a nossa primeira professora. Eu falava tal qual os brasileiros e, depois de 30 anos em Portugal, continuo a ter algum sotaque, por isso dizem que tenho um pouco de pronúncia brasileira", conta Wang Suoying.

Hoje serão 50 universidades chinesas a ensinar português como língua estrangeira a cerca de 5 mil alunos inscritos todos os anos, mas praticamente Wang e o marido foram pioneiros na aprendizagem da língua que, por obra do jesuíta italiano Matteo Ricci, até foi a primeira europeia a ter um dicionário para mandarim, idioma hoje com quase mil milhões de falantes.

Hoje serão 50 universidades chinesas a ensinar português como língua estrangeira a cerca de 5 mil alunos inscritos todos os anos, mas praticamente Wang e o marido foram pioneiros na aprendizagem da língua que, por obra do jesuíta italiano Matteo Ricci, até foi a primeira europeia a ter um dicionário para mandarim, idioma hoje com quase mil milhões de falantes.

No New Wok continuam generosamente a renovar os pratos sobre a mesa, agora com a novidade também de umas miniespetadas de camarão frito e gyosas, enquanto a professora relembra que o marido chegou primeiro a Portugal e ela foi entretanto para Macau, então ainda sob administração portuguesa (a cidade do rio das Pérolas, vizinha de Hong Kong, foi devolvida à China em 1999, após mais de quatro séculos e meio). A primeira visita a Portugal aconteceu como bolseira, no final dos anos 1980, e a partir de 1991 fixou-se em Lisboa. Agora mora nas Olaias, depois de muitos anos a viver num prédio em Arroios, perto do restaurante onde estamos a almoçar, daí a ligação de alguma proximidade aos donos.

Autora de vários livros, Wang recorda-se que o primeiro foi A Fonética da Língua Portuguesa, seguido de O Português para Um Chinês - Abordagem simultânea sobre os métodos de ensinar português aos chineses, resultado da investigação como bolseira, na tal primeira vinda a Portugal. Depois, em parceria com o marido, publicou o Dicionário Conciso Chinês-Português e uma Gramática da Língua Portuguesa, que constam da bibliografia dos cursos de português na China, além da série de Lições de Chinês para Portugueses, para a aprendizagem de chinês. Juntamente com Ana Cristina Alves, escreveu Contos da Terra do Dragão e Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Mulher de grande dinamismo, tem servido de tradutora em visitas oficiais (uma vez a pedido do gabinete de António Guterres em 1999 quando este era primeiro-ministro e o presidente Jiang Zemin visitou Portugal), tem dado aulas não só em universidades, incluindo a Nova, mas também a crianças e chegou a ser notícia um projeto educativo em São João da Madeira em que a língua chinesa chegava aos mais novos. Também já vi a professora organizar no Centro Científico e Cultural de Macau em Lisboa, onde há um excelente museu, um concurso de interpretação de músicas chinesas por não nativos. E ajudar equipas de jornalistas chineses de visita. "Gosto muito de desafios", diz, ela que todos os anos aceita o meu convite para explicar aos leitores do DN os signos chineses, com os seus 12 animais e cinco elementos. Este ano é do Tigre, "considerado, desde a antiguidade, animal auspicioso, conseguindo afastar maus espíritos e devorar monstros, consagrado como animal protetor das crianças". Mas está sempre a dizer que o meu signo é o melhor, rindo-se de seguida, para acrescentar que os meus filhos, um Dragão e uma Tigre, têm sorte de terem um pai Porco.

Nestes anos todos em Portugal, a linguista foi ganhando costumes portugueses. Gosta, por exemplo, de arroz de pato, de bacalhau com natas e de cozido à portuguesa e criou o hábito, com o marido, de levar visitantes chineses à Adega das Gravatas, restaurante em Carnide. "Durante a pandemia, claro, tivemos de parar", esclarece. Também nos gostos literários, Portugal conquistou Wang, que tem especial interesse por Camilo Castelo Branco, já fez comunicações sobre o escritor do século XIX e traduziu livros como A Queda de Um Anjo e Amor de Perdição.

Nascidos pouco depois de Mao ter proclamado em 1949 a República Popular da China, Wang e Lu testemunharam a grande transformação do país, que hoje é a segunda maior economia mundial e a caminho de ser a primeira, que era o seu lugar antes da decadência no século XIX, quando os últimos imperadores da dinastia Qing se mostraram incapazes de competir com o Ocidente. Wang é otimista para o futuro e numa conversa em 2021 a propósito do centenário do Partido Comunista Chinês a professora fez um balanço dos progressos recentes e declarou que "na mentalidade chinesa, o mais importante para um povo é viver em paz e trabalhar com gosto. Vivi 40 anos na China e senti a melhoria constante da vida, para a grande maioria dos chineses. Tivemos períodos em que a comida era racionada e as pessoas de uma família compartilhavam apenas uma divisão. Mas hoje em dia está totalmente diferente. A minha família e os meus amigos que vivem na China, não sendo empresários ou comerciantes, vivem em paz e com certa abundância, tendo de vez em quando planos de férias, tendo visitado até Portugal. O governo investiu muito para a garantia mínima da vida dos habitantes, incluindo os que vivem no campo. E é um povo de 1400 milhões!"

O casal Wang e Lu espera agora que a pandemia passe e a normalidade regresse não só a Portugal e à China como ao mundo. Estão tristes com a guerra atual na Ucrânia e querem que a paz volte. Sobre as relações Portugal-China diz Wang que são "excelentes, desenvolvidas e mantidas com base no respeito mútuo".

No final do nosso almoço, a professora conta-me que é a primeira vez em dois anos que, tirando a cantina da Universidade de Aveiro no almoço oferecido no dia da jubilação, fazem uma refeição fora de casa. Até agora tiveram muito cuidado por causa da covid-19. Mas estão muito felizes por terem voltado ao New Wok.

leonidio.ferreira@dn.pt

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