Tosh Minohara: "A China é uma bênção disfarçada para a América. Vai uni-la"

Historiador disse ao DN por Zoom acreditar que o Japão e a Europa têm a ganhar com uma parceria baseada na partilha dos valores. Para lidar com os chineses enquanto os americanos andam distraídos.
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Defende que a relação entre a Europa e o Japão deve ser aprofundada. É uma relação económica, baseada em comércio, ou é possível dizer que há uma comunhão de valores, nomeadamente a democracia?
Vivi muitos anos nos Estados Unidos, e também na Europa, uns tempos no Reino Unido e outros na Holanda, e se é verdade que os japoneses gostam na maior parte das vezes de olhar através do Pacífico para a América, na realidade têm muito mais em comum com a Europa. Desde o modo de vida até à relação com a religião, tudo os faz mais próximos dos europeus do que dos americanos. No início, os europeus tinham imenso interesse no Japão, e os portugueses até foram os primeiros a entrar em contacto, no século XVI, e depois o Japão também se interessou em aprender com a Europa, mas isso foi se perdendo. Há muito tempo que o Japão insiste em olhar para os Estados Unidos e a Europa faz o mesmo. Creio que está na hora de mudar a situação, de existir uma reaproximação. E por duas razões: os Estados Unidos estão a perder a sua influência, e uma prova de que algo não está bem na América é alguém como Donald Trump ter chegado a ser presidente; a outra é a ascensão da China, e vários países europeus, como é o caso da Alemanha, estiveram de braços abertos para a China mas mudaram de atitude porque finalmente perceberam o risco.

Pensa que a ascensão da China, que começou por ser económica e hoje é também militar, pode ser uma ameaça não só para o Japão, como para a Europa? A China gosta de se apresentar como uma potência não agressiva, não expansionista, mas na Ásia Oriental acredita-se pouco nisso, certo?
Sim, não é verdade essa tese do não expansionismo. Lembro-me de que quando vivia na Europa a mensagem que chegava era da ascensão pacífica da China, mas como historiador nunca vi uma grande potência ter uma ascensão pacífica. Por que sempre quer mudanças. Quando se tem poder o objetivo é mudar a ordem internacional para a adaptar às necessidades. Nunca acreditei nas palavras suaves da China, mas os europeus sim, levaram à letra aquilo que a liderança chinesa dizia, e que não é a verdade.

Mas admite que se um dia o Japão tiver de se defender da China serão os Estados Unidos o grande parceiro a ter em conta e não a Europa?
Sim, mas é sempre bom ter muitos parceiros. E se o Japão e a Europa cooperarem, isso fará os Estados Unidos ouvi-los mais. Sabemos que se Portugal disser algo, ou o Japão disser algo individualmente, os Estados Unidos terão dificuldade em ouvir, o impacto será menor do que comparado com se o fizessem coletivamente. Portugal tem a sorte de integrar duas importantes organizações, a União Europeia, que infelizmente perdeu agora o Reino Unido, um Estado-membro que é uma potência nuclear, e a NATO. Mas o Japão não tem nada de semelhante. E assim, de uma perspetiva japonesa, faz todo o sentido coordenar-se mais com a Europa. O problema de coordenar-se com a Europa é que não existe uma Europa, são mais de 40 países, 27 deles na União Europeia. Durante a crise migratória há uns anos, e de certa forma agora também com a pandemia, viu-se que não existe uma verdadeira União Europeia em tempos difíceis. Que cada nação trata de si. Então o Japão tem que fazer escolhas e pessoalmente penso que as nações marítimas devem ser prioritárias na relação. Não espero que Portugal envie um dia a sua armada para o Japão, mas vejo-o como um país amigo que facilita o acesso do Japão à União Europeia e à NATO.

No ano passado, celebraram-se 160 anos de relações diplomáticas luso-japonesas mas na realidade o primeiro contacto foi há cinco séculos. Existe entre os japoneses a consciência da antiguidade desta relação?
Existe. Eu sou do Kansai, na parte ocidental do Japão, e para nós o grande herói é Hideyoshi, que lidou com os portugueses, e não Tokugawa, o senhor da guerra seguinte, que alinhava com os holandeses. Assim, na minha parte do Japão está muito viva essa ligação a Portugal, se bem que por causa da União Ibérica, entre 1580 e 1640, às vezes nos interroguemos sobre algumas figuras, se era um português ou um espanhol. O próprio Francisco Xavier, ainda antes da União, esteve no Japão ao serviço de Portugal mas era de Navarra, que hoje é Espanha.

Voltando à situação geopolítica do Japão do século XXI, há uns anos o maior perigo para o país vinha dos mísseis norte-coreanos. Hoje é o crescente poderio da marinha chinesa e a questão da liberdade de navegação no mar da China do Sul que mais preocupa o Japão?
É importante notar que a ameaça norte-coreana não desapareceu. Este ano, por causa da pandemia, os exercícios militares da Coreia do Sul com os Estados Unidos foram simulados, só computadores, mas no próximo ano a rotina vai voltar, com todo o uso de tanques e helicópteros, e a Coreia do Norte não vai gostar disso. E a reação vai ser forte. No fundo, voltamos ao ponto de partida. E numa situação regional muito mais complicada, pois a China está mais forte. A América está dividida, em crise, mas a China conseguiu crescer em 2020.

A China conseguiu sair mais forte da pandemia e aproveitou para aproximar-se dos Estados Unidos?
Desde quando no pós-1945 uma nação que desafia a supremacia dos Estados Unidos conseguiu ter 70% do PIB americano? A China está nesse ponto. E o fosso continua a ser reduzido. A Administração de Joe Biden está a ser dura com a Rússia, mas é fácil ser duro com a Rússia, exige muito menos do que com a China, as represálias são menores, o custo económico muito menor. Quando a América pressiona a Rússia, a Rússia aproxima-se da China e temos de novo a formação do tipo de alianças que surgiu a seguir à Segunda Guerra Mundial.

Trump foi derrotado nas eleições de novembro de 2020 e Biden é agora o presidente dos Estados Unidos. Que diferença faz para o Japão e para a sensação que tem de ser ameaçado pela China?
Trump já não é presidente mas continua por lá e a verdade é que a América está muito dividida. Falo muito com amigos americanos, com colegas também, e contam-me que as famílias estão divididas. Irmãos deixam de se falar por causa da política. A política divide mais agora nos Estados Unidos do que a religião. E agora faço uma analogia com as vésperas da Segunda Guerra Mundial, em que a América estava também muito dividida: foi o ataque japonês a Pearl Harbor em 1941 que uniu os americanos. E a China hoje pode ser uma bênção disfarçada para a América. Por que a China subestima a América e vai adotar ações ousadas. E ai haverá repercussões. Uma delas será unir de novo a América. Assim, não descarto a importância da América para o Japão, mas no entretanto acho que a Europa e o Japão ganham em estar mais juntos. Os europeus não são uns anjos, certamente não o foram no passado, mas aprenderam com os erros e adotaram uma moral que os faz preocupar-se com o mundo e em tornar o futuro melhor para a humanidade.

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