Visita de Francisco à Papua-Nova Guiné, em 2024, é uma prova da vontade da Igreja Católica de ser verdadeiramente universal.
Visita de Francisco à Papua-Nova Guiné, em 2024, é uma prova da vontade da Igreja Católica de ser verdadeiramente universal.EPA/ALESSANDRO DI MEO

Só a geopolítica papal para explicar Francisco na Mongólia ou na Papua

Análise à estratégia dos papas para fazer da universalidade da Igreja Católica a sua grande força.
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Javier Cercas tem-se multiplicado em entrevistas nos últimos dias sobre o seu novo livro. Não surpreende a curiosidade, afinal é o autor de Soldados de Salamina e também de Anatomia de um Instante, um romance e um ensaio histórico que foram grandes sucessos, mas surpreende o tema deste El loco de Dios en el fin del mundo: Francisco e a sua viagem à Mongólia. O próprio escritor espanhol confessou a surpresa pelo convite que lhe foi feito pelo Vaticano para acompanhar o papa em 2023, até porque nunca escondeu ser “ateu, anticlerical e militante do laicismo”. Ontem, já depois de saber dá morte do papa, disse que Francisco “começou uma Revolução”.

Sobre o resultado literário da viagem de Cercas àquele país no coração da Ásia, fruto do acesso privilegiado que teve ao papa argentino, falaremos noutra ocasião, mas vale a pena refletir acerca do que terá levado o octogenário Francisco a voar umas 12 horas de Roma até Ulan Bator, um destino tudo menos óbvio para um chefe da Igreja Católica. Claro que alguns que conheçam um pouco mais da história mongol vão relembrar que Gengis Khan teve noras cristãs nestorianas, e até que o seu neto que fundou a dinastia Yuan na China chegou a convidar missionários cristãos a instalar-se no império. Mas isso foi há 800 anos.

Hoje os cristãos são uma minúscula comunidade na Mongólia, e os católicos uma minoria dentro dela, o que não impede que haja um cardeal, o italiano Giorgio Marengo, que irá ajudar a escolher o novo papa quando se reunir o Conclave. E quem ofereceu o chapéu de cardeal ao bispo de Ulan Bator? Francisco, claro, três anos antes de voar nove mil quilómetros para a missa em conjunto com Marengo.

“Às vezes não é fácil ver realmente tudo o que está por trás das viagens papais. Por exemplo, para visitar a Mongólia, o avião de Francisco teve de sobrevoar a China. Teve de ter autorização do governo chinês. E houve até troca de cumprimentos oficiais durante o sobrevoo. Um dos objetivos da viagem à Mongólia era certamente mandar uma mensagem à China, país que não tem relações diplomáticas com a Santa Sé, mas que está numa região onde o papa esperava que se pudesse expandir muito a religião católica”, comenta Dennis Redmont, jornalista americano a viver em Portugal, e que chefiou a agência noticiosa AP na Europa do Sul, baseado em Roma.

“Francisco não foi o primeiro papa viajante. Nem João Paulo II. Foi Paulo VI. Que visitou Jerusalém, a Colômbia, a Índia, a China e mais alguns. Deu-se conta, e os sucessores também, que a religião católica é seguida por mais de mil milhões de pessoas e que as grandes áreas de crescimento são fora da Europa, na América e sobretudo na África e na Ásia”, explica Redmont, que fez a reportagem da visita papal de 1967 a Fátima e depois acompanhou durante décadas ao serviço da agência americana as peregrinações globais, com destaque para João Paulo II, que nos 27 anos de pontificado visitou mais de 120 países, alguns várias vezes.

O papa polaco, aliás, eleito numa época em que se vivia ainda a Guerra Fria, é um excelente exemplo do valor da geopolítica do Vaticano, basta pensar como o apoio da Igreja Católica ao Sindicato Solidariedade, de Lech Walesa, abalou os alicerces do regime na Polónia na década de 1980, criando um efeito dominó que não poupou o resto do Bloco Comunista e até a própria União Soviética, mesmo que nos seus antigos territórios domine a Igreja Ortodoxa Russa, historicamente antagonista do Vaticano (apesar do encontro em Cuba de Francisco com o patriarca Cirilo, em 2016, que ajuda a explicar o elogio agora de Vladimir Putin, que fala de cooperação construtiva entre a Santa Sé e a Rússia).

“Os historiadores vão publicando regularmente novas revelações sobre fundos vindos do Ocidente, muitos deles dos Estados Unidos, distribuídos para o Solidariedade nos anos 1980 através dos canais do Vaticano”, sublinha Redmont, que como vaticanista não deixou de estar presente nas vindas de Bento XVI e de Francisco a Portugal, a última das quais em 2023 para a Jornada Mundial da Juventude.

Mesmo quando a prioridade parecia ser o combate ao ateísmo comunista, o Vaticano já estava especialmente atento às margens, às periferias, que com Francisco tanta importância ganharam. Um bom exemplo foi a própria relação do Vaticano com Portugal, por causa da recusa de descolonização. A visita de Paulo VI no cinquentário de Fátima foi estudada para reduzir as hipóteses ao regime salazarista de a transformar em apoio, com o papa a voar para a base de Monte Real, daí seguindo para a Cova da Iria. Em 1970, já com Marcelo Caetano no poder, o papa recebeu Amílcar Cabral, do PAIGC, Agostinho Neto, do MPLA, Marcelino dos Santos, da Frelimo, uma derrota para a diplomacia portuguesa que tentava evitar o isolamento de um país que combatia em Angola, na Guiné e Moçambique, numa África já quase toda descolonizada e onde a Igreja Católica apostava forte.

Ainda há dias, entrevistado em Lisboa, o historiador britânico Austen Ivereigh, biógrafo do papa, chamava a atenção para a visão global do jesuíta Francisco, o primeiro sucessor de São Pedro oriundo do Novo Mundo: “ele é muito argentino, muito latino-americano, claro, mas a sua visão é muito mais ampla, não é restringida por uma cultura em particular. E ele sabe muito da história da enculturação da missão da Igreja noutras culturas. E o facto de ele ser de fora da Europa tem ajudado muito a que agora tenhamos uma Igreja muito mais autenticamente universal, global, ou, como eu diria, multipolar, porque, de facto, isto foi muito evidente no sínodo dos bispos, com um maior equilíbrio entre os da Europa e os da América, da África e da Ásia. A Igreja já não é europeia. As partes da Igreja que estão a crescer muito são precisamente as Igrejas não europeias, não ocidentais”.

Visita de Francisco à Papua-Nova Guiné, em 2024, é uma prova da vontade da Igreja Católica de ser verdadeiramente universal.
“Conheço muitos cardeais e digo que é muito difícil que haja um cardeal igual a outro ou como este Papa”

Se os números dos católicos mostram há décadas a perda de influência da Europa, a verdade é que foi só com Francisco que os cardeais europeus deixaram de ser maioritários no Colégio Cardinalício que elege o papa. Hoje, mesmo que os europeus ainda sejam em maior número, a soma dos cardeais das Américas, de África, da Ásia e da Oceania é já superior, o que reforça as expectativas de que depois de Francisco, um argentino neto de imigrantes italianos, venha um papa culturalmente oriundo das tais margens. Por exemplo, há pela primeira vez no Conclave um cardeal timorense (e é indesmentível o papel da Igreja na resistência à anexação pela Indonésia), e também pela primeira vez o arcebispo de Goa é cardeal.

“Este pontificado tem sido uma ponte para um papa do futuro que não é europeu ou de origem europeia. Quanto à reforma do colégio cardinalício, o facto de ele ter nomeado cardeais não europeus não é tão significativo, porque os papas anteriores também fizeram o mesmo, embora seja verdade que ele tenha ampliado. Destaco mais o facto de Francisco ter escolhido cardeais das periferias da Igreja, cardeais que são bispos de rebanhos pequenos”, afirmou Ivereigh na entrevista ao DN. E acrescentou, referindo até a tal viagem à Mongólia: “o facto de Francisco, nas suas viagens, também se ter focado na periferia, é importante porque significa que está atento, e outra vez, esta é a minha tese, a de que o futuro da Igreja será uma Igreja de rebanhos pequenos numa sociedade não cristã”.

Francisco visitou mais de 60 países nos 12 anos de Pontificado. Alguns de grande peso para o catolicismo mundial, como o Brasil (onde enfrenta a concorrência dos evangélicos) e as Filipinas, onde o catolicismo chegou com Fernão de Magalhães, e outros de um surpreendente exotismo visto da Europa, como a Papua-Nova Guiné, mas com fervorosos católicos. Também não esqueceu a Terra Santa, e nunca deixou de apelar à paz entre israelitas e palestinianos. Não foi à Rússia, apesar de ter expressado esse desejo e acreditar que assim poderia trazer paz à Ucrânia, e obviamente não foi à China, pois a Santa Sé continua a ter relações com Taiwan, oficialmente República da China. Aos Estados Unidos foi uma vez, em 2015, e se chegou a receber em tempos Donald Trump no Vaticano, não deixa de ser relevante que o seu último encontro oficial tenha sido no sábado com o vice-presidente JD Vance, convertido ao catolicismo já adulto, para apaziguar uma polémica de cariz teológico, mas ligada à crítica à política de migrações da nova Administração americana.

Foi pioneiro entre os papas em sete países, com destaque, além da Mongólia, para o Iraque e o Sudão do Sul. Este último, nação jovem, nascido de uma secessão de um país islâmico, simboliza claramente a importância de África, continente onde o número de fiéis aumenta tanto pela explosão demográfica como pelas conversões e onde são muitas as áreas de choque com o islão (apesar de Francisco ter procurado o diálogo, como provam o encontro com o mufti da al-Azhar, Ahmad al-Tayeb).

O arcebispo de Bangui, Dieudonné Nzapalainga, chegou a ser o mais jovem cardeal quando foi nomeado em 2016. A sua visão do futuro da Igreja foi tema de uma conversa que tivemos em Lisboa em 2023, ele que vem de uma República Centro-Africana onde o conflito religioso tem trazido tal violência que foi preciso a ONU enviar uma força de paz, que incluiu portugueses.

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"O bom Papa é aquele que é eleito entre os seus pares cardeais, seja ele africano, asiático, americano ou europeu" 

“A força do catolicismo em África vem do facto de a Igreja estar próxima da população, uma população tocada pela pobreza, tocada pelas injustiças, tocada também pela miséria e com a degradação que conhecemos a nível político, a igreja escolheu estar próxima dessa população. O povo vê isso, aprecia e também se sente articulado com esse catolicismo que o apoia, que defende os pobres e os pequenos, que se torna na voz dos que não a têm”, disse Nzapalainga. O cardeal de Bangui lembrou na conversa, quase que como a citar Francisco, que quando dizemos “católica estamos a dizer universal, que é o seu significado. Penso que devemos ir até ao fim dessa palavra ‘católica’, pois é a diversidade que vem enriquecer essa unidade em torno do papa”. E sublinhou, olhando para o futuro, “que o bom papa é aquele que é eleito entre os seus pares cardeais, e seja ele africano, asiático, americano ou europeu, será o Santo Padre para todo o mundo. Se começarmos a compartimentar vamos fazer como as pessoas mundanas. No dia em que a questão se puser, os cristãos pagarão por isso. A eleição é clara, é aquele que for escolhido entre os cardeais seja qual for a sua origem geográfica”.

Quem já viu o filme Conclave, de Edward Berger, sabe bem como toda esta questão do futuro da Igreja Católica e da sua universalidade pode ser fascinante. Não direi mais. A geopolítica papal vai prosseguir, seja quem for o sucessor de Francisco. Não esquecer que a Igreja Católica tem 2000 anos e uma diplomacia que já enfrentou muitos desafios.

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Corpo do Papa desde esta quarta-feira na Basílica de São Pedro. Mais de 200 mil pessoas esperadas no funeral

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