"O bom Papa é aquele que é eleito entre os seus pares cardeais, seja ele africano, asiático, americano ou europeu"
Qual é hoje a força do catolicismo em África?
A força do catolicismo em África vem do facto de a igreja estar próxima da população, uma população tocada pela pobreza, tocada pelas injustiças, tocada também pela miséria e com a degradação que conhecemos a nível político, a igreja escolheu estar próxima dessa população. O povo vê isso, aprecia e também se sente articulado com esse catolicismo que o apoia, que defende os pobres e os pequenos, que se torna na voz dos que não a têm.
Vem de um país que é um país de fronteiras religiosas, com muita violência nos últimos anos. Existe um problema de coexistência entre os cristãos e os muçulmanos em África em geral e na sua República Centro-Africana em particular ou são outros interesses, e o envolvimento de potências, que fazem com que as pessoas tenham conflitos?
Sim. A questão dos conflitos inter-religiosos pôs-se no início de 2013 na República Centro-Africana pelo grupo Séléka que quis tomar o poder. O pastor, o imã e eu unimo-nos para dizer não. Na história centro-africana nunca existiram guerras religiosas, houve sempre uma coexistência pacífica. Os nossos antepassados trabalharam sempre em conjunto, cada um é livre de escolher a sua religião e isso nunca colocou problemas. Temos de no manter unidos, solidários, para barrar o caminho àqueles que querem instrumentalizar, para não dizer manipular, a religião para efeitos políticos. Foi por isso que nos opusemos a essa conceção de que os muçulmanos se deveriam opor aos cristãos, não! A religião em sentido lato significa, unir, conectar, ligarmo-nos uns aos outros. A religião significa coabitação. Na República Centro-Africana a vida humana foi ameaçada e nós devemos salvar as vidas humanas. Porque é que ultrapassámos os nossos antagonismos? Ultrapassámos as nossas paixões, as divisões históricas dizendo que tínhamos irmãos confrontados com a violência e dizemos "não!" em conjunto a esse invasor que destabiliza para seu proveito, tranquilamente.
Está a falar de interesses de potências estrangeiras cobiçosas?
Sim. Existem riquezas no nosso país que atiçam a cobiça e quando esta está presente e se mobilizam os meios, a conceção religiosa, o respeito pelo outro, desaparecem, mas nós dizemos que cada ser criado por Deus é importante.
Sabe que há também militares portugueses na República Centro-Africana para tentar assegurar a paz. Portanto, é possível existirem no terreno forças internacionais com um papel positivo?
Penso que sim, e os militares portugueses são apreciados porque são forças especiais. Há outros grupos das Nações Unidas que não conseguem fazer o que eles fazem, eles chegam e os inimigos recuam e, às vezes, a população tem um pouco de descanso. A paz dura uma, duas semanas, um mês no máximo, antes de eles partirem, mas há um mês de tréguas, um mês em que as pessoas podem também tratar de outras coisas. Isso é importante, é muito positivo.
A sua nomeação como cardeal foi vista como um sinal de uma igreja mais global. Agora, com o Papa Francisco, há pela primeira vez uma maioria de cardeais não europeus. É importante para a igreja refletir a diversidade dos cristãos que existem no mundo?
Eu creio que quando dizemos a palavra católica estamos a dizer universal, que é o seu significado. Penso que devemos ir até ao fim dessa palavra "católica", pois é a diversidade que vem enriquecer essa unidade em torno do Papa. Ao dizermos diversidade estamos a falar dos outros continentes, das outras esferas que devem unir-se em torno do Papa para refletir esse catolicismo. É necessária essa abertura ao universalismo, tal como o Papa regressa a essa origem do mundo católico, eu só posso encorajar isso, só posso dizer que sim, que temos de reencontrar as nossas raízes. Temos de voltar às nossas origens e não encararmos o futuro sozinhos, mas sim com os outros. Porque o catolicismo vivido na América Latina tem o seu sabor assim como o vivido em África, na Ásia ou na Europa, mas tudo isso configura o catolicismo e o Papa como pastor universal pediu, nesses lugares, aos padres, aos cardeais que o aconselhassem, que o ajudassem na tarefa de governar a igreja universal.
Falemos um pouco de África. Na Europa, nós falamos hoje muito de África a respeito da emigração ilegal, da pobreza que a explica. Qual é o grande problema de África? É a ausência de democracia? É a falta de alternativa para os jovens? Como é que analisa o seu continente?
Eu analiso na perspetiva de que antes da colonização a África existia, isto quer dizer que os grupos tinham a sua forma de funcionamento. Nós sabemos que o encontro com a colonização mexeu com tudo, passa a haver uma nova maneira de funcionar em função da Europa. Se virmos bem, quando se pede muitas vezes aos africanos para instaurarem a democracia como se faz em Portugal, na Europa, nos Estados Unidos, isso não tem fundamentação, é outro mundo, outra forma de organização. É preciso ter uma forma própria e não importar a mesma, as constituições são preparadas aqui para serem aplicadas lá. Eu constato que há muitas vezes reticências, por vezes resistência, à adesão. O problema é que culturalmente, antropologicamente já sabemos que devemos deixar as pessoas implementarem a sua maneira de viver e que devemos respeitar isso. Devemos deixar as pessoas organizarem-se e, se o fizermos, há uma série de problemas que são evitados. Eu penso que há um problema, se não houver coragem para abordar essa questão continuaremos sempre às voltas a dizer: "a democracia não é para vocês", mais isto e mais aquilo, mas será que se levou em conta a cultura?
Sente-se otimista em relação ao futuro de África?
Enquanto cristão, eu sou habitado pela esperança e, portanto, otimista, porque seja qual for a duração da noite, o dia acabará por nascer.
Falou da colonização, da relação entre África e os seus antigos colonizadores. Atualmente, porque falamos muito da guerra na Europa, falamos também do Sul global por oposição ao Ocidente. Esta conceção de Sul global que une a América Latina, a África e a Ásia faz sentido para si?
Sabe que quando se começou a divisão do mundo havia os terceiro-mundistas, pessoas que se afastavam para dizerem que não aceitavam aquele sistema, que tinham outra visão [risos].
O Sul global é um pouco assim?
Sim, é isso. É para se demarcarem do Ocidente, para se demarcarem da América, etc. É uma outra maneira de ver as coisas, uma emergência nova. Penso que esses grupos também chegam a África para dizer que os africanos também têm o seu lugar nesse determinado grupo. Devemos ter cuidado e aprender com as lições do passado. O que é que fez com que a máquina deixasse de funcionar? Se não o que é que acontece? Repetimos os erros do passado, pensamos que é o caminho certo, mas não é. Há um pequeno grupo que adere à novidade, os intelectuais, mas as massas ficam desfasadas.
Fala-se muito de um Papa africano. Pensa que depois do argentino Francisco é importante um africano ou asiático para confirmar essa globalidade da igreja católica?
Penso que o bom Papa é aquele que é eleito entre os seus pares cardeais, seja ele africano, asiático, americano ou europeu, será o Santo Padre para todo o mundo. Se começarmos a compartimentar vamos fazer como as pessoas mundanas. No dia em que a questão se puser, os cristãos pagarão por isso. A eleição é clara, é aquele que for escolhido entre os cardeais seja qual for a sua origem geográfica.
Do seu contacto pessoal com o Papa Francisco qual é a sua impressão?
Tenho uma impressão forte e positiva deste Papa, que tem muita visão e um carisma único, que é audacioso, sabe falar, fala francamente e vai ao essencial. Penso que o Papa Francisco, se virmos bem, traz-nos muito e se estivermos atentos vemos que é um dos líderes atuais que mais atrai as pessoas. Digo-o porque fui à República Democrática do Congo na ocasião da sua visita e vi a multidão, o estádio a transbordar... este Papa tem qualquer coisa a dizer às pessoas. Aconselho-o a ver na Jornada Mundial da Juventude a quantidade de jovens que lá vai estar de todo o mundo para o ouvirem.
Há um grande debate atualmente em Portugal sobre a questão dos abusos sexuais na igreja, inclusivamente há muitos católicos que estão incomodados com a situação. É um problema da igreja ou é um problema geral da sociedade?
Eu creio que é um problema mais geral. A igreja faz parte da sociedade, portanto as pessoas que se comprometem a ser padres ou religiosos são pessoas que também têm as suas fragilidades. Claro que também se podem perder e é preciso condenar, mas também é preciso ter a coragem de dizer que esse comportamento não é o comportamento que a palavra de Deus quer, que a igreja quer. O que o Santo Padre faz, o trabalho que está a fazer, não é só pela igreja, é por toda a sociedade, mas existe a figura moral da igreja que exige que esta seja imaculada.
Mas a lei do silêncio não é aceitável?
Não. É preciso ultrapassar a lei do silêncio, é preciso ousar falar porque a vítima está à espera de uma palavra de verdade, de justiça, de reparação, portanto não, para mim não é aceitável.
leonidio.ferreira@dn.pt