“Conheço muitos cardeais e digo que é muito difícil que haja um cardeal igual a outro ou como este Papa”
Escreveu há uma década Francisco, o Grande Reformador - Os Caminhos de um Papa Radical. Mario Jorge Bergoglio já era Francisco quando o conheceu?
Sim, eu não o conhecia pessoalmente antes de ser Papa. Mas tinha ouvido falar muito dele na Argentina quando era bispo. O meu primeiro encontro com ele foi dois ou três meses depois da sua eleição, na praça de São Pedro, como qualquer pessoa. E depois disso temo-nos encontrado várias vezes no Vaticano, sobretudo desde que publiquei a biografia. Mas quase sempre encontros breves. A primeira vez que, de facto, me lembro de estar sentado com ele foi em junho de 2018.
Mas a sua relação com a Argentina já é antiga?
Sou a prova de que às vezes as teses de doutoramento podem ser úteis. Porque fiz a minha sobre a Igreja e a política na Argentina. Foi uma tese defendida na Universidade de Oxford, em 1992. Digamos que isto foi uma vantagem, porque quando voltei à Argentina em 2013 para escrever a biografia do Papa, ajudou muito que falasse o espanhol com sotaque argentino. E conhecia, digamos, a realidade que estava no fundo de tudo isso. Também tinha sido noviço jesuíta [risos]. Então esta combinação de factos deu confiança aos jesuítas na Argentina, talvez, de se abrirem um pouco mais comigo sobre o percurso do Papa.
Quando conhece Francisco, sente de imediato, mesmo sendo já o Papa, que está a falar com um argentino?
Sim, porque Francisco é muito argentino. Na sua forma de falar, é muito portenho, muito de Buenos Aires. Uma forma de falar que é muito direta. E eu digo sempre isto, não sei qual seria a comparação em português, mas em inglês seria um pouco como falar com um nova-iorquino, do povo, digamos, não um nova-iorquino refinado. Foi muito impactante esse primeiro encontro em 2018.
Falou-se muito, quando Francisco foi eleito, de ser o primeiro Papa do Novo Mundo. Essa origem argentina, ser descendente de imigrantes italianos, vê-se na forma como atua enquanto Papa?
Sim, é interessante, porque havia um cardeal argentino, Pironio, muitos anos antes de Bergoglio, e falavam dele como uma ponte entre a Itália e o Novo Mundo, sobretudo a América Latina. E acho que isto é importante, que o primeiro Papa de fora da Europa seja um argentino, mas com raízes italianas. Não falo só de saber a língua, mas das raízes culturais. Nesse sentido, Francisco é muito típico dessa geração de argentinos que descende dos italianos que foram para lá no final do século XIX e princípios do século XX.
O que se destaca, até hoje, deste pontificado? Qual é o legado que já existe de Francisco?
Talvez o legado maior seja que o Papa Francisco, desde o início, compreendeu que a Igreja está a passar por o que chamam de mudança de época, na qual a Igreja já não é uma instituição privilegiada numa sociedade cristã. Isto requer da Igreja uma conversão na sua mentalidade, na sua forma de ser, e eu penso que o legado principal de Francisco é de demonstrar essa nova forma de ser nesta nova era. E as raízes latino-americanas são muito importantes neste respeito, porque ele foi o protagonista do encontro dos bispos latino-americanos que aconteceu no Brasil em 2007, onde fizeram uma análise dessa mudança de época, e se perguntaram como é que a Igreja tem de reformar-se para evangelizar essa nova era. E esse discernimento, diríamos próprio dos jesuítas, para mim, forma a base do pontificado. Então, há várias mudanças que ele tem feito, estruturais, mas o objetivo de tudo é facilitar essa transformação na cultura mesmo da Igreja. E vou dizer que quase todos os que sabem alguma coisa de Francisco dizem que é outro estilo de Papa, mas para mim não é o estilo que faz a diferença, para mim o fundamental é a substância dessa mudança.
Ser um jesuíta, o primeiro Papa jesuíta, explica também estes desejos de mudança?
No sentido em que não tem medo da conversão, porque os jesuítas, a espiritualidade inaciana, é no fundo um caminho de conversão. É a questão de escolher entre várias formas de ser e procurar o que Deus quer. E não tem medo, nesse sentido, de mudar. Tem ajudado muito, sim.
Quando diz que os jesuítas não têm medo da conversão, faz-me recordar de jesuítas dos tempos iniciais, como Matteo Ricci ou João Rodrigues, que foram homens que conseguiram evangelizar adaptando-se às culturas diferentes, seja na China, seja no Japão, seja na própria América Latina. Isso, de alguma forma, significa que Francisco está a ser jesuíta na abordagem aos desafios da Igreja?
Eu diria que ele tem, como jesuíta, uma visão global. É muito argentino, muito latino-americano, claro, mas a sua visão é muito mais ampla, não é restringida por uma cultura em particular. E ele sabe muito dessa história da enculturação da missão da Igreja noutras culturas. E o facto de ele ser de fora da Europa tem ajudado muito a que agora tenhamos uma Igreja muito mais autenticamente universal, global, ou, como eu diria, multipolar, porque, de facto, isto foi muito evidente no sínodo dos bispos, com um maior equilíbrio entre os da Europa e os da América, da África e da Ásia. A Igreja já não é europeia. As partes da Igreja que estão a crescer muito são precisamente as Igrejas não europeias, não ocidentais.
É curioso, porque graças à ação deste Papa, o colégio de cardeais, os futuros eleitores no conclave, hoje já é maioritariamente não europeu. Isso é uma revolução de Francisco, e significa que há probabilidades de haver novamente um Papa fora da Europa, mas desta vez, não um descendente de italianos, mas de África ou da Ásia.
Exatamente, neste sentido, este pontificado tem sido uma ponte para um Papa do futuro que não é europeu ou de origem europeia. Quanto à reforma do colégio cardinalício, o facto de ele ter nomeado cardeais não europeus não é tão significativo, porque os Papas anteriores também fizeram o mesmo, embora seja verdade que ele tenha ampliado. Destaco mais o facto de Francisco ter escolhido cardeais das periferias da Igreja, cardeais que são bispos de rebanhos pequenos.
Como ter um cardeal na Mongólia?
Exatamente, e jovem. A Mongólia tem 23 mil católicos numa nação de 3,5 milhões de pessoas. E o facto de Francisco, nas suas viagens, também se ter focado na periferia, é importante porque significa que está atento, e outra vez, esta é a minha tese, a de que o futuro da Igreja será uma Igreja de rebanhos pequenos numa sociedade não cristã. Então, o que ele quer do próximo conclave, aconteça quando acontecer, é que haja um discernimento autêntico, que a realidade do mundo, o sofrimento da fronteira, chegue a esse espaço onde os cardeais se reúnem antes do conclave. Porque normalmente, há um encontro dos cardeais mais ou menos 10 dias antes do conclave. Todos pensam no conclave, mas o conclave na Capela Sistina é só a votação. Antes disso há este discernimento, quando os cardeais se perguntam que Papa precisamos. Não falam de nomes, mas falam do perfil do Papa, de que Papa precisam para esta Igreja agora e este mundo agora, as duas coisas. E é muito importante que nesse discernimento, nessa conversação, haja aquelas vozes, digamos, da periferia do mundo.
Francisco está à frente de uma instituição que tem mais de 2000 anos, que teve altos e baixos ao longo da história, mas que é evidente que continua a ter uma grande influência. O Papa tem influência na política internacional? Seja quando fala de ambiente ou de imigração ou de paz?
Sim tem, e a sua autoridade é sobretudo uma autoridade moral, no sentido em que o Papa tem uma visão global. E pelo facto de ser o líder principal cristão do mundo, os líderes políticos querem um pouco disso, procuram a legitimidade de estar com ele, de ter uma relação com ele, e acho que há um certo temor do que ele diz. Por exemplo, eu acho que no caso da Ucrânia e da Rússia, é interessante que Putin não queira que o Papa vá à Rússia, não tem querido ter um diálogo com ele, porque tem medo, como é que vai dizer que não ao Papa? E este é o poder que Francisco tem. É um poder, nesse sentido, de influência moral.
Por exemplo, durante a recente campanha eleitoral nos Estados Unidos, o Papa fez declarações em que condenou muito a política migratória de Donald Trump, mas também condenou a política a favor do aborto da candidata Kamala Harris. Mesmo num país como os Estados Unidos, onde os católicos não são a maioria, a voz do Papa pode ser ouvida?
Sim, sim, é ouvido, e por isso a sua intervenção foi importante, pouco antes da recente hospitalização, corrigindo o que tinha dito J.D. Vance sobre Ordo Amoris e foi uma aclaração muito contundente com numerosos parágrafos, como se fosse um documento de magistério. Sim, sim, é importante porque, afinal, num mundo cheio de populistas cristãos, que estão a procurar a legitimidade do cristianismo, o papel da Igreja é de esclarecer o que é do Evangelho e o que não é. E o que estava a dizer o Papa nesse momento é que a versão, digamos, da doutrina católica que tinha descrito o vice-presidente dos Estados Unidos não era correta. No fundo, o poder da Igreja não é criar alianças com o poder. O Papa não quer guerras culturais, mas defende a autoridade moral da Igreja de definir o que é a tradição cristã, o que diz essa tradição e o que não diz.
Especula-se sobre o sucessor de Francisco, e já disse que pode ser alguém da periferia do mundo cristão. Sendo Francisco quem escolheu boa parte dos atuais cardeais eleitores, é muito possível que o futuro Papa possa sair dessas escolhas. Isso não significa que tenha de ser automaticamente um continuador?
Bom, eu conheço muitos cardeais e posso dizer que é muito difícil que haja um cardeal igual a outro ou como este Papa. São todos bastante diferentes os cardeais. São líderes que pensam por eles mesmos e por isso estou certo de que o próximo Papa será diferente de Francisco. Neste momento os cardeais estão a pensar muito no que estamos a viver, que é o colapso da ordem ocidental, um futuro de impérios onde não há direito internacional e sim rivalidade entre as grandes potências. E os cardeais já estão a pensar no que isto significa para a Igreja e o que é que devia fazer a Igreja, qual é o papel da Igreja neste contexto. E como historiador, eu penso no que aconteceu há 100 anos na Europa, nos anos 1920 e 1930, o colapso da democracia liberal e os autoritarismos, e o caminho é para uma guerra. A Igreja não pode evitar uma guerra, mas o que pode fazer é fomentar uma cultura que permita que haja uma sociedade civil, uma forma de viver juntos, com diálogo e instituições cívicas. No final de contas, o papel da Igreja é esse, de fomentar essa cultura cívica. E o legado de Francisco nesse sentido é muito importante porque ele nos tem ensinado nos seus documentos como podemos ter uma relação com Deus, com a Criação e com os outros seres humanos, baseada na fraternidade, no diálogo, na caridade. E talvez nesta época na qual estamos a entrar, esse legado vá ser muito importante para a criação dessa cultura.
Na questão da ordenação das mulheres, é onde o Papa poderia ir mais além?
O Papa tem dito desde o princípio que o que precisamos na Igreja é uma presença muito maior das mulheres em posições de liderança, e ele tem nomeado muitas mulheres. No Vaticano agora há uma freira que é a líder da administração do Vaticano, para dar o melhor exemplo. Quanto ao ministério, ele tem tentado abrir espaços e reconhecer o ministério das mulheres, sem confundir esse ministério com o sacerdócio. Isto é muito criticado por fações mais progressistas da Igreja, que veem essa questão como uma questão de igualdade. Mas a igualdade não é a única ótica. Para Francisco, a tradição da Igreja é importante, mas o que é mesmo mais importante é a missão da Igreja, o que requer a missão da Igreja. E para ele, a prioridade é que os fiéis normais da Igreja assumam responsabilidade para a vida e missão da Igreja. E a questão da ordenação feminina tem o risco de reclericalizar a questão, porque dá a impressão de que as únicas pessoas importantes na Igreja são os clérigos.
O que está a dizer é que muitas decisões do Papa, como essa sobre as mulheres serem ou não ordenadas sacerdotes, não é meramente uma questão de convicção pessoal, é o que ele sente que é útil para a Igreja?
Bom, eu acho que qualquer Papa sempre está a procurar, primeiro, fazer a vontade de Deus. Nesse sentido, não é simplesmente uma questão política humana. Mas também está muito consciente da unidade da Igreja. No debate que tem havido entre os bispos, a questão da mulher é muito importante, mas não houve nenhum consenso sobre essa questão da ordenação. Os que mais queriam isso eram alguns europeus e americanos, mas em geral não houve consenso. Eu acho que o Papa está a expressar também, mais ou menos, onde está a Igreja total e global. Mas este sínodo de que falo, no documento final incluiu um parágrafo muito importante sobre a mulher, basicamente dizendo que tudo o que permite o direito canónico deve ser respeitado. Se uma mulher leiga, uma religiosa, não importa quem seja, tem as capacidades e o carisma de fazer um ministério, a Igreja deveria facilitar isso, senão seria misoginia.
Em Primeiro Lugar Pertencer a Deus
Austen Ivereigh
Paulinas Editora 16,20 euros
240 páginas