"Vivemos com medo, sem comunicações, nem comida nem esperança.” É este o resumo do que se passa no campo de Zamzam, na província do Darfur do Norte, onde centenas de milhares de sudaneses tentam sobreviver. As declarações, à Associated Press, são de Amna Suliman. Esta mãe de quatro filhos conta que os refugiados sobrevivem alimentando-se de folhas de árvores e de capim. “Não temos escolha.” A fome aguda, que afeta mais de metade da população, ou 26 milhões, do terceiro maior país de África, é uma das consequências diretas da guerra que estalou há dois anos entre militares a disputar o poder depois da prometida transição para os civis ter sido negada. Em Londres, uma conferência reuniu mais de 800 milhões de euros para ajudar as organizações no terreno. Também se pediu “um cessar-fogo imediato e permanente”, mas não há perspetivas para que tal aconteça. Ao contrário das guerras civis entre o norte e centro muçulmano e o sul animista e cristão de 1962-1972 e 1983-2005, esta opõe dois senhores da guerra e antigos aliados: o general Abdel Fattah al-Burhan, chefe das forças armadas, e Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, líder das Forças de Apoio Rápido (RSF). Este é um grupo paramilitar com raízes na milícia árabe e nómada Janjaweed, com um histórico de massacres no Darfur contra três etnias, mas também na capital, quando em 2019 mais de uma centena de manifestantes pacíficos foram mortos a tiro, centenas foram feridos e dezenas foram violados. Burhan e Hemedti foram responsáveis pelo golpe de outubro de 2021 que pôs termo ao governo de unidade e de transição cujo primeiro-ministro era civil. Oficialmente, o que levou à guerra foi um desentendimento sobre a reforma para integrar a RSF nas forças armadas sudanesas. Além da fome e desnutrição, a guerra causou dezenas de milhares de mortes e mais de 13 milhões de deslocados e refugiados, segundo a ONU. “O Sudão é a pior crise humana do mundo hoje, mas não tem a atenção do mundo. Não podemos abandonar as crianças do Sudão”, disse a diretora da Unicef, Catherine Russell. A agência das Nações Unidas destaca as violações dos direitos das crianças, incluindo crianças mortas, mutiladas, raptadas, recrutadas à força e vítimas de violência sexual, que “aumentaram 1000% em dois anos” e se espalharam por todo o país.. “Dois anos é tempo demais - a guerra brutal no Sudão devastou a vida de milhões de pessoas - e, no entanto, uma grande parte do mundo continua a desviar o olhar”, disse o ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, David Lammy, antes da conferência em Londres para mobilizar a comunidade internacional a pôr termo ao conflito, e que reuniu 15 países, a União Europeia e a União Africana. “Os beligerantes demonstraram um desprezo horrível pela população civil do Sudão”, denunciou o britânico, mas não entre os países reunidos em Londres, que juntaram 800 milhões de euros, 522 dos quais da Comissão Europeia e dos estados-membros.O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse estar “muito preocupado com o facto de as armas e os combatentes continuarem a chegar ao Sudão”, sem especificar os países de origem. Na semana passada, o regime de Burhan acusou os Emirados Árabes Unidos de “apoio e cumplicidade” no “genocídio que está a ser cometido contra o grupo étnico Masalit no oeste do país”, acusou a ministra da Justiça, Muawia Osman, no início da audiência no Tribunal Internacional de Justiça. Além deste país, outros analistas apontam para o papel do Chade, Uganda, Quénia, Etiópia e Sudão do Sul. A captura de Cartum e da região vizinha de Gezira, no final de março, foi uma importante vitória para Burhan e marcou o início do regresso de deslocados (400 mil). No entanto, peritos apontam para o facto de as RSF terem consolidado as áreas que controlam no oeste e no sul do país. “A realidade no terreno já se assemelha a uma partição de facto”, disse à AP Federico Donelli, académico na Universidade de Trieste, em Itália.Sudão do Sul sem norte A sul, o mais jovem país do mundo não está melhor. Na segunda-feira, o hospital dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Ulang, junto à fronteira com o Sudão, foi pilhado depois de ter sido tomado de assalto por dezenas de homens armados. Segundo a organização médica, a suspensão das atividades daquela unidade de saúde terá consequências na região, em particular na interrupção dos esforços para controlar a atual epidemia de cólera. Segundo a Unicef, há cerca de 40 mil casos no país. O país tem sido palco de violência desde o início de março, com o regresso da rivalidade entre o presidente Salva Kiir e o vice Riek Machar. Depois de alguns episódios - incluindo um ataque a um helicóptero das Nações Unidas - Machar e alguns dos seus homens de confiança foram presos. É o mais recente episódio de rivalidade política e étnica entre os dois homens oriundos do Movimento de Libertação do Povo do Sudão. Em 2013, Kiir acusou Machar de conspirar contra si e exonerou-o do cargo: foi o acender do rastilho para uma guerra civil que durou cinco anos e custou 400 mil vidas. Teme-se que os mesmos protagonistas, reunidos nos cargos presidenciais em 2018 em resultado do acordo de paz, partam para um segundo capítulo da guerra. É esse o entendimento do chefe da missão da ONU naquele país, Nicholas Haysom. “O Sudão do Sul está repleto de tantos grupos armados, e todos parecem estar a preparar-se para um envolvimento militar”, considera Daniel Akech, analista do grupo de reflexão Crisis Group, citado pela BBC..Um país em dez datas1956Após mais de cinco décadas e meia sob administração britânico-egípcia, o Sudão torna-se independente.1972Ao fim de dez anos de guerra civil no sul do país entre as forças governamentais de Cartum e o movimento Anya Nya, o acordo de paz concede autonomia à região meridional.1989O general Omar al-Bashir chega ao poder em resultado de um golpe militar.2003Exército e milícias iniciam uma campanha de limpeza étnica contra os povos do Darfur, que se haviam revoltado contra Cartum, e que vai prolongar-se até 2005 em grande intensidade. A ONU estimou em 300 mil mortos o que foi designado de genocídio pelos EUA.2005Governo e rebeldes do sul assinam um acordo de paz para a guerra civil que voltara em 1983. O seu líder, John Garang, torna-se vice-presidente, mas ao fim de três semanas morre num acidente de helicóptero.2010No ano em que Bashir declara o fim da guerra no Darfur, o Tribunal Penal Internacional emite um segundo mandado de captura contra o líder sudanês, desta vez por genocídio.2011O Sudão do Sul torna-se no 55.º estado africano em julho depois de um referendo em que 98,8% dos eleitores votaram pela independência. 2019Após meses de protestos, um golpe militar acaba com 30 anos de poder de Bashir e cozinha-se um acordo de transição entre civis e militares.2021O general Abdel Fattah al-Burhan impede a transmissão programada de poder para os civis e toma o controlo do governo. 2023Rebenta uma guerra entre fações militares. As Forças de Apoio Rápido rebelam-se contra Burhan e nas primeiras horas conseguem controlar grande parte da capital, incluindo o aeroporto e o palácio presidencial. As forças paramilitares expandem-se para as cidades do centro do país e do Darfur, mas a partir de 2024 o exército inicia um movimento inverso.