Uma semana e um dia volvidos sobre os acontecimentos que levaram à saída da Guiné-Bissau do presidente cessante, também candidato às eleições decorridas no dia 23 de novembro, e à instalação de um alto-comando militar, presidido pelo até então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, observadores, políticos da oposição e ativistas coincidem na conclusão de que não houve qualquer golpe de Estado, mas o seu simulacro, com o intuito de Umaro Sissoco Embaló se manter de alguma forma no poder. O regresso à ordem constitucional poderá dar-se caso as instituições externas e Portugal exerçam pressão. Em paralelo, o diretor de campanha do candidato Fernando Dias da Costa afirmou que este irá tomar posse em breve.A missão de observadores eleitorais da União Africana foi liderada pelo ex-presidente de Moçambique Filipe Nyusi. Em público, este não teceu comentários sobre o ocorrido. Já o ex-presidente da Nigéria, Goodluck Jonathan, que também fez parte da delegação, não teve dúvidas: “O que aconteceu na Guiné-Bissau não foi um golpe... por falta de uma palavra melhor, eu diria que foi um golpe cerimonial.” Este “golpe cerimonial” ocorreu na véspera do anúncio dos resultados oficiais das eleições, alegadamente para proteger o país de um atentado à democracia em preparação por uma força política em conluio com um narcotraficante. Houve tiros no Palácio Presidencial, seguidos de telefonemas do presidente para meios de comunicação em língua francesa a dar conta de que tinha sido detido e deposto. Além disso, os militares que tomaram o poder prenderam vários políticos e invadiram as instalações da Comissão Nacional de Eleições (CNE). O presidente da CNE, Npabi Cabi, assim como os seus secretários-executivos, ficaram detidos pelos militares nas instalações daquele órgão até terça-feira, dia em que a CNE anunciou ter perdido as atas de apuramento eleitoral, pelo que o processo teria de ser interrompido de forma permanente e os resultados não podem ser divulgados. Os jornalistas presentes, sem direito a perguntas, na declaração de um dos secretários da CNE, Idrissa Djaló, notaram como Cabi, mudo e quedo, estava abalado. A RFI dá conta de relatos de que o presidente da CNE teme pela sua segurança, bem como a da sua família, e que terá apelado para a comunidade internacional agir. ."Isto é um golpe contra a democracia, é um golpe contra o processo eleitoral. E é um golpe contra as condições em que a Guiné-Bissau está a receber apoio institucional da União Europeia de Portugal. Portanto, a União Europeia e Portugal têm de agir."Fernando Jorge Cardoso. Fora dos círculos do poder, a versão da CNE não convence. Prova disso é que, na quarta-feira, a Ordem dos Advogados e associações cívicas assinaram uma carta conjunta a exigir o anúncio dos resultados e o regresso à ordem constitucional. “É preciso dizer que o sistema eleitoral guineense, apesar de todos os problemas do país, é profundamente transparente e, do início ao fim, possibilita a qualquer cidadão atento detetar tentativas ou até práticas irregulares de fraude e outras práticas não-legais ao longo de todo o processo, desde o recenseamento até à publicação dos resultados finais”, explica ao DN o ativista Sumaila Djalo, do movimento Firkidja di Pubis. “As atas são públicas de acordo com a Lei Eleitoral, tanto as atas de apuramento nas mesas de voto como as atas dos apuramentos das regiões eleitorais”, prossegue. Além disso as atas de apuramento ficam na posse de várias entidades: magistrados do Ministério Público, Polícia Judiciária, representantes dos partidos políticos e missões de observação eleitoral. A Guiné-Bissau está divida em nove círculos eleitorais nacionais e outros dois na Europa e em África. “Restava apenas o apuramento da diáspora africana, e é nesta circunstância que se deu a encenação do falso golpe por invasão da sede da Comissão Nacional de Eleições pelas forças da guarda Presidencial e uma encenação de tiros ao ar nas imediações da Presidência da República, orquestradas pela própria força da Guarda Presidencial”, comenta Djalo. “Esse apuramento já estava feito. E as projeções a partir das atas das mesas de voto demonstraram uma clara vantagem entre 51% e 53% dos votos a favor do Fernando Dias”, continua o ativista que, há seis anos, se viu obrigado a procurar refúgio em Portugal.No mesmo sentido se pronunciou o porta-voz do PAIGC, Muniro Conté, cujo candidato Domingos Simões Pereira foi impedido de concorrer - e que está detido (ou “sequestrado”, como prefere Djalo, porque não há qualquer ordem judicial). “Existem condições óbvias para o anúncio dos resultado, tendo em conta o nosso sistema eleitoral”, afirmou Conté à RFI. “Não é necessário procurar aqui interpretações arrevesadas, complôs externos ou qualquer outra coisa”, diz Fernando Jorge Cardoso, especialista em assuntos africanos, ao pronunciar-se sobre “as férias douradas” de Embaló, um plano não isento de riscos, porque, recorda, “o problema dos ditadores e dos autocratas é que facilmente os seus braços-direitos lhes dão um golpe”..“O Presidente da República deve retirar a condecoração a Sissoco Embaló, porque está a manter esta condecoração de grande prestígio do Estado português a um autoritário, a uma pessoa que está contra todos os valores do 25 de Abril.”Sumaila Djalo. Aqui chegados, o que se segue? Para Sumaila Djalo, internamente, há que publicar os resultados eleitorais e Fernando Dias da Costa deve ser empossado. Do estrangeiro, cabe às organizações regionais, a Comunidade Económica de Estados da África Ocidental (CEDEAO) e a União Africana, aplicarem pressão e sanções, para lá da suspensão da Guiné-Bissau como Estado-membro. “Já houve momentos em que estas sanções ajudaram a Guiné-Bissau a minimizar os danos das crises”, tendo exemplificado quando o presidente José Mário Vaz, em 2019, “teimou em nomear um governo, quando o seu mandato já tinha cessado”. Perante a ameaça da CEDEAO aplicar sanções, o projeto foi abandonado. Ainda no que se refere a atores externos, lamenta que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o então primeiro-ministro António Costa tenham “ajudado a consolidar uma ditadura”, e sugere que seja retirada a condecoração com que Embaló foi agraciado.. Já Fernando Jorge Cardoso defende a atuação descomplexada de Portugal e, por extensão, da União Europeia. “A Guiné está dependente de duas fontes principais de sobrevivência. Uma delas é extrair mais dinheiro dos traficantes de droga. Isso é válido para uma dúzia de pessoas ou uma centena de pessoas, vamos dizer assim, não é válido para a manutenção de um país em funcionamento. A outra é a ajuda externa, ou seja, a ajuda da União Europeia e de Portugal. Portanto, as posições que tomarem são absolutamente determinantes neste jogo e não vale a pena Portugal assobiar para o lado”, diz o professor da Universidade Autónoma. Nesse sentido, defende a aplicação de sanções aos envolvidos, o que, em conjunto com a pressão dos países africanos - “os amigos regionais que Umaro foi criando não ficaram satisfeitos” -, poderá voltar a encarrilar o país. Se na Guiné-Bissau decorre até amanhã uma greve geral convocada pelos movimentos cívicos, em Lisboa prepara-se nova manifestação contra o golpe antidemocrático. Depois da mobilização ocorrida na semana passada em frente à sede da CPLP, desta vez está marcada para o Largo de São Domingos, ao Rossio, no sábado, às 15h. Longo historial de golpesA Guiné-Bissau não foi palco de guerras civis como, por exemplo Moçambique ou Angola, mas por sua vez a sua curta história enquanto Estado independente está manchada por golpes, motins e outros atentados à ordem constitucional, sempre com o envolvimento dos militares. Desde o primeiro golpe, levado a cabo em 1980 por Nino Vieira - que viria a ser por duas vezes vítima, a última das quais, em 2009, que lhe tirou a vida - dir-se-ia que se instalou uma cultura do golpe. Contam-se pelos dedos das mãos, bem ou mal-sucedidos, sucessivas interrupções do poder instituído, e nem sempre dirigido ao presidente. Aconteceu também a prisão do primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior (também hoje detido) e dos militares Zamora Induta e Na Tchuto, em 2010, ou duas fações das Forças Armadas se guerrearem, no ano seguinte. Durante a presidência de Embaló decorreram dois alegados golpes falhados, em 2022 e em 2023.