Sofi Oksanen nasceu na Finlândia há 48 anos e há 42 decidiu que queria ser escritora. Antes de ser alfabetizada fazia teatrinhos com os bonecos e depois passou as histórias para o papel. Filha de um finlandês e de uma estónia, os seus romances e peças de teatro revisitam a opressão totalitária da União Soviética e abordam a violência sobre as mulheres. A quatro romances publicados em Portugal, incluindo o multipremiado Purga, junta-se A Guerra de Putin Contra as Mulheres, um ensaio que teve como base um discurso proferido pela autora feminista na Academia Sueca. Um livro que, a partir do caso da sua tia-avó estónia, abusada pelas autoridades soviéticas, liga à atualidade na Ucrânia e ao retrocesso dos direitos das mulheres em solo russo.No livro sustenta que a misoginia é uma arma utilizada por Putin para controlar a sociedade russa, assim como para oprimir os ucranianos nos territórios ocupados. Putin seguiu a cartilha de Estaline? É uma cartilha atualizada, mas as ocupações seguem o mesmo padrão. Os princípios básicos são a mesma forma russa de imperialismo: quando se ocupa um território remove-se um determinado grupo de pessoas e depois traz-se os colonos. Sobre a Ucrânia em particular, a Revolução da Dignidade, em 2014, foi também uma revolução da igualdade. E acho que nos países ocidentais as pessoas não prestaram muita atenção a isso. Talvez também porque, para nós, começa a ser bastante comum que um político possa ser mulher. Por isso, não prestámos muita atenção ao facto de muitos líderes dos países da Europa de Leste terem começado a ser mulheres. Isso foi muito importante. Aconteceu muito, muito depressa, se pensarmos no ponto de partida, a mudança para a qual o rosto da política pode ser feminino. Por isso, não creio que esta mudança tenha sido realmente apreciada ou reconhecida. Em 2014, na Ucrânia, o número de mulheres envolvidas na revolução foi simplesmente alucinante. E depois essas pessoas, que não tinham antecedentes políticos, entraram na política. Isso foi assustador para o Kremlin, porque viram que coisas como esta acontecem de facto. Elas podem deitar abaixo um presidente. As mulheres já estavam ativas na Revolução Laranja, também na Ucrânia. Todo o poder político e económico na Rússia está nas mãos dos homens, e eles não o querem ceder. Por isso, faz sentido que queiram esmagar os países onde o progresso é diferente, e também que queiram usar a misoginia para manter o poder. Esta é a história que não foi contada. E penso que essa é também uma das razões pelas quais quis escrever este ensaio.Há alguma pergunta sobre este livro que ainda não lhe fizeram e à qual gostava de responder?Menciono a senhora russa Olga Bukovskaya, cujo telefonema para o marido foi intercetado e no qual ela estava a incentivar o marido a violar mulheres ucranianas, desde que usasse proteção. Em março, ela foi condenada à revelia por um tribunal em Kiev. Não ouvi falar de nenhuma outra condenação deste tipo e considero isso extremamente positivo. É um sinal de justiça. Não sei que tipo de vida ela deseja ter, mas está na lista da Interpol, portanto não pode ter férias em Paris, por exemplo, a menos que tenha um passaporte falso. Espero que algumas pessoas compreendam que este tipo de conduta tem de ser levado a sério, que o incentivo conduz a crimes.O alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, no seu último relatório, mencionou 370 casos de violência sexual cometidos por tropas russas, sendo que 68% das vítimas são homens. Qual é o significado? As mulheres continuam a optar pelo silêncio?Não, diz que tipo de provas os procuradores que constroem um caso têm e que depende se as vítimas são prisioneiras de guerra e se há testemunhas oculares. Também depende das circunstâncias de vida em que a vítima se encontra, por exemplo, se for vítima de violência sexual em territórios temporariamente ocupados. Como se constrói um processo aí? O que está a acontecer agora nos territórios ocupados, na verdade, não sabemos, exceto que há violência. E se a mulher tem filhos, preocupa-se que eles possam ser levados, e assim por diante. Na Estónia há uma significativa minoria russa. Há dias, Moscovo emitiu um protesto sobre o vandalismo de um monumento soviético. Existem tensões na sociedade? Em 2007 é que a situação foi complicada e o que me incomoda é que, embora tenha sido uma notícia de alcance global na altura, parece que muitos dos chamados especialistas ocidentais em Rússia esqueceram o incidente. Quem ler livros sobre guerra de informação russa e operações híbridas, muitas vezes este caso é mencionado, mas apenas como um ciberataque ou coisa do género, sem descrever o que realmente foi. Antes de mais, foi a primeira operação híbrida internacional da Rússia. Não se tratava apenas de ciberataques. Houve tumultos nas ruas, levaram os chamados ativistas, mobilizaram a minoria de língua russa na Estónia, numa operação coordenada essencialmente pelo FSB. Existem relatórios sobre isso, mas levou anos para os redigir com provas. Na altura foi muito difícil para a Estónia apontar o dedo à Rússia. O caso era que se tratava do direito dos estónios de escreverem a sua história [remoção de uma estátua soviética do centro da cidade para um cemitério]. Foi um alerta em muitos aspetos para a Estónia. Também tiveram de se concentrar na educação de falantes de russo. Os professores ainda ensinavam a história soviética. Desde a ocupação da península da Crimeia pela Rússia e a invasão em grande escala em 2022, é claro que os falantes de russo na Estónia não desejam ser salvos pela Rússia. As tensões são menores do que eram naquela época [2007]. Além disso, os serviços de informações não permitem aos chamados ativistas ou ativistas pagos que entrem no país para criar tensões.Há quem critique o facto de a UE ter retirado do ar os canais russos no espaço europeu.Não há qualquer necessidade de permitir que a propaganda russa tire proveito da nossa liberdade de expressão. Propaganda não são notícias. Antes da guerra ter começado, em 2014, deveríamos ter já há muito tempo apoiado jornalistas e meios de comunicação russos livres também fora da Rússia. A Estónia, a Lituânia e a Letónia são países pequenos. É difícil obter media de boa qualidade em duas línguas num país pequeno. É uma questão de recursos e, ainda assim, para a segurança nacional e para a segurança do espaço informativo, isso seria crucial. Cada pessoa deve ter informações e notícias básicas na sua língua materna. Quando Anna Politkovskaya foi assassinada, foi um alerta para apoiar a comunicação russa livre fora da Rússia.Diz que 20% dos russos se opõem à guerra, outro tanto está a favor e o restante não quer ter uma opinião. Podemos esperar outra era depois de Putin ou a cultura e mentalidade russas são incompatíveis com os valores europeus?Não, não são, mas é uma questão se falarmos de valores patrocinados pelo Estado. A maioria dos cidadãos russos deveria desejar ter um futuro diferente. Esse seria o ponto de partida. E enquanto não desejarem, então é isso que irão ter, terão outro Putin. Cada momento com o regime de Putin é um momento mais distante de um futuro diferente.No livro exemplifica como as pessoas saídas da URSS não entendiam o funcionamento das nossas sociedades.O significado do dinheiro era tão diferente, porque não era uma sociedade baseada no salário. Portanto, para entender isso, é preciso ter dinheiro para poder obter algo numa sociedade onde ninguém realmente o conseguia.Ou que existe desemprego. Exatamente. Não creio que os países ocidentais, de certa forma, tenham compreendido isso. É sempre difícil tentar entender como as pessoas que pensam de maneira diferente de mim realmente pensam, mas é isso que preciso fazer como escritora. Essa é também uma das razões para ser autora, é tentar entender as pessoas que não pensam como eu. Se pensarmos na realidade soviética, a maioria das pessoas não obtinha informações de fontes noutras línguas; a realidade era a realidade soviética. Os estónios, os lituanos e os letões compreenderam o que significa um tipo diferente de sociedade, tiveram um Estado democrático antes da ocupação soviética. Além disso, durante a ocupação soviética, os estónios podiam assistir à televisão finlandesa, que era uma janela para o Ocidente.. Outra questão que levanta é o colonialismo soviético, e o facto de essa noção ser um pouco estranha para o Ocidente. Por que razão é tão importante reconhecê-lo? Porque a guerra da Rússia na Ucrânia surpreendeu o Ocidente e não deveria ter surpreendido. Nas antigas potências coloniais ocidentais, as pessoas não conseguiam imaginar que na década de 2010 existia um país que realmente queria ser uma potência colonial. Isto passou despercebido, exceto em países onde enfrentavam problemas com o colonialismo russo. Por exemplo, após a Revolução Russa, os emigrantes russos foram considerados como os bons russos e a União Soviética foi vista como a má. Mas os emigrantes russos representavam os russos brancos [em oposição aos vermelhos] e eram eles que, na verdade, escreviam os livros sobre a Rússia em países ocidentais. Portanto, a maioria dos livros sobre a Rússia foram escritos por imperialistas russos. A União Soviética e, posteriormente, a Rússia, foram vistas através da lente de Moscovo. E quando só se vê a Rússia através da lente de Moscovo, então todas as vozes nativas não existem.Numa entrevista, disse que O Arquipélago Gulag esteve proibido na Finlândia. Os romances de Soljenítsin foram publicados anteriormente. Mas quando O Arquipélago Gulag foi publicado em França, ficou claro que não era um romance, mas um romance documental. E então, a editora finlandesa recebeu instruções políticas do topo para não publicar o livro. Durante a Perestroika, a URSS começou a publicar livros sobre deportações. O livro foi publicado na Rússia. E na Estónia, logo após o colapso da União Soviética. Mas na Finlândia? Não. Perguntei aos editores finlandeses porque não o publicavam. Consideraram que era complicado e que os leitores não estavam interessados. Então, eu contactei a agência de Soljenítsin, que está em França, comprei os direitos e publiquei-o eu mesma, em 2012.Vendeu bem?Vendeu de imediato 10 mil exemplares e mostrou que eu estava certa. Este é um exemplo de como a finlandização [neutralidade deferente para com a URSS resultante de um tratado assinado em 1948] criou autocensura, o que se traduz numa distorção do sistema de valores, ao relativizarmos ou pensamos que certas coisas não são importantes. Isto incomoda-me porque inclusive antes da invasão [russa] alguns políticos recomendavam a finlandização como solução para a Ucrânia. E ninguém perguntava aos finlandeses se aconselhariam a finlandização para a Ucrânia. Diríamos todos não. Não, porque é uma linha política oriunda da Rússia, mas também porque afeta a vida quotidiana como a indústria cultural e artística, a liberdade de expressão e a investigação académica. Oficialmente, a finlandização terminou com o colapso da URSS, mas na realidade terminou em 2022. A finlandização na Finlândia também afetou o nosso conhecimento, porque afetou a educação. Porque tinham de seguir as diretrizes do Kremlin, não havia uma linha sobre a ocupação dos estados bálticos nos manuais escolares. Um investigador contou todos os adjetivos que tínhamos nos nossos livros de geografia na Finlândia relacionados com a União Soviética e a Rússia, ao longo de 50 anos. Havia três adjetivos neutros, nem um único negativo, e apenas positivos. E os positivos eram repetidamente “grandioso”, “espantoso”, “enorme”... Tudo estava relacionado com a grandeza da União Soviética. A Rússia usa a influência psicológica de forma a criar uma realidade diferente, e podem fazê-lo, por exemplo, removendo certos adjetivos. Podemos pensar que é uma coisa pequena, porque não é uma arma apontada à nossa cabeça, mas muda a forma como aprendemos a falar sobre um tema..A Guerra de Putin contra as MulheresSofi OksanenObjectiva214 páginas