Nas ruas de Damasco celebrou-se e dançou-se a queda do regime de Assad pelo segundo dia enquanto o grupo armado islamista que à vez tomou Alepo, Hama e Homs até chegar à capital, Hayat Tahrir al-Sham (HTS), continuou a dar sinais de moderação, embora tenha nomeado para primeiro-ministro um dos seus. O vazio de poder, temido por todos os atores na região, e discutido no Conselho de Segurança das Nações Unidas, continua porém a impossibilitar uma avaliação mais do que provisória dos acontecimentos. Sírios Estiveram desde 1971 sob o jugo da família Assad e viveram a segunda guerra mais mortífera do século XXI, a seguir à segunda guerra do Congo (que transitou ainda do final do século anterior). Os números divergem, mas pelo menos 300 mil civis morreram, 7,2 milhões foram deslocados internamente e seis milhões fugiram do país. Aqueles que não fugiram para o Líbano ou para o Iraque nas últimas horas (militares e pessoal do regime dominado pelos alauitas, um ramo do xiismo) comemoram o fim de um regime cujas raízes remontam ao baathismo, o movimento nacionalista árabe, socialista e secular que chegou ao poder na Síria nos anos 60, depois da breve e falhada união política da Síria com o Egito de Gamal Abdel Nasser (1958-1961). O baathismo acabou por ser um veículo para ditadores: além de Hafez e Bashar al-Assad, o iraquiano Saddam Hussein também ascendeu ao poder nas fileiras do Partido Baath. Depois de quatro séculos sob administração otomana, e de um breve capítulo francês terminado em 1946, os sírios estão agora a respirar liberdade. Por quanto tempo, é a questão a que só os próprios irão responder. Mohammed al-Jolani, chefe do grupo rebelde dominante, HTS, emitiu uma declaração a delegar no primeiro-ministro de Assad, Mohammad al-Jalali, a responsabilidade pelo governo até que a transição política esteja concluída, para horas depois ser anunciado novo chefe de governo. Neste momento desconhece-se se a transição política envolve o estabelecimento de um outro tipo de regime autoritário, no caso islamista, se eleições livres e justas. Os líderes do HTS foram, no passado, aliados da Al-Qaeda, mas distanciaram-se do grupo terrorista, cortando oficialmente os laços em 2017, tal como antes cortaram com o Estado Islâmico. O HTS professa agora moderação e tolerância e diz que está concentrado na Síria e não em lutas ideológicas e políticas na região. No entanto, o assassínio, pelos rebeldes, de um homem da minoria yazidi na região de Alepo lançou sinais de alarme. E o seu passado é um cartão de visita pouco auspicioso: sob a mão de ferro do HTS, Idlib estava sujeito a patrulhas de polícias de costumes, prendendo as jovens que não cumpriam os códigos de vestuário religioso e os jovens que se barbeavam ou ouviam música. A Human Rights Watch denunciou ao longo de anos a detenção arbitrária e a tortura de jornalistas, figuras da oposição e ativistas. Curdos Fazem parte dos sírios, claro, mas merecem menção separada. Mais de um terço do país está sob controlo deste grupo étnico que teve um papel determinante (tal como as milícias xiitas) em derrotar no terreno o Estado Islâmico e que manteve um pacto de não agressão com o regime de Assad. Mas as alegadas ligações políticas de Rojava - o Curdistão sírio, uma região autónoma de facto onde as mulheres gozam de liberdades e têm um exército próprio, YPJ - com os movimentos curdos turcos, em particular o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, considerado terrorista) é um obstáculo para a estabilidade na região. Os norte-americanos, que mantêm uma base na Síria, têm mantido apoio aos curdos das Forças Democráticas Sírias com bombardeamentos aéreos. Mas estes temem que, com o regresso de Donald Trump à Casa Branca, e depois de este ter dito que o seu país não deve intervir de maneira alguma nos acontecimentos, se repita a operação militar da Turquia ocorrida em 2018, que levou à fuga de dezenas de milhares de curdos do norte da Síria. Turquia Se há um claro vencedor, este é Recep Tayyip Erdogan. O presidente turco amaldiçoou o seu amigo Bashar al-Assad quando este reprimiu os protestos populares em 2011 e desde então tem sido seu inimigo figadal, apoiando desde então grupos armados para derrubar o regime. Erdogan, com mais de três milhões de refugiados no seu país, tentou desde 2022 uma reaproximação, mas Assad exigia que as forças turcas saíssem do seu território em primeiro lugar. “Agora, com a mudança da situação no terreno, o equilíbrio de poder na Síria alterou-se: a Turquia é, neste momento, o ator mais poderoso dentro da Síria”, considerou o investigador turco Ömer Özkizilcik, do Atlantic Council, à AFP. Até que ponto Ancara vai coincidir com o HTS, é uma incógnita, mas Erdogan tem uma oportunidade de ouro para moldar o futuro governo sírio e, em paralelo, liderar a reconstrução do país. Israel Na segunda-feira, Israel efetuou mais de 100 ataques aéreos contra instalações militares sírias, incluindo navios da Marinha. Antes, o chefe da diplomacia, Gideon Sarr, disse que os alvos eram paióis com armas químicas ou de longo alcance para “não caírem nas mãos de extremistas”. Ao mesmo tempo, as forças israelitas ocuparam o lado sírio do Monte Hérmon, nos Montes Golã. E Benjamin Netanyahu aproveitou para dizer que esse território anexado aos sírios em 1981, “farão parte do Estado de Israel para toda a eternidade”. O primeiro-ministro israelita regozija-se com a queda de Assad: “A nossa vitória total está a tornar-se realidade”..Imprensa iraniana destacou o fim da era de Assad na Síria. EPA/ABEDIN TAHERKENAREH.Rússia e Irão Moscovo e Teerão eram os únicos aliados de Damasco. Putin reeditou com Bashar a aproximação de Hafez com a União Soviética em 1971: a troco da decisiva participação militar para salvar Assad, a Rússia instalou a base aérea de Hmeimim, em Latakia, e reforçou a presença naval no porto de Tartus. Apesar de horas antes da queda de Assad, o MNE Sergei Lavrov achar inadmissível que “terroristas” se apoderassem da Síria, o discurso oficial rapidamente mudou de tom e agora tudo fará para manter as suas bases. “Moscovo prefere lidar com aqueles que têm poder e controlo, e descarta aqueles que os perdem”, disse Nikolai Sokov, ex-diplomata russo citado pelo The Guardian. Enquanto a sua embaixada se manteve intacta, a missão diplomática iraniana em Damasco foi saqueada, tal como o palácio presidencial de Assad. O Irão parece ser o claro perdedor, ao ficar sem o seu principal aliado no chamado “eixo da resistência” e a ligação terrestre para o Hezbollah no Líbano.