Sem consenso e impreparada, a Europa acorda tarde para urgência de se defender sozinha
Foto: NATO

Sem consenso e impreparada, a Europa acorda tarde para urgência de se defender sozinha

Com a chegada ao poder de Trump e a sua aproximação à Rússia, a Europa despertou para a necessidade de se rearmar, para ajudar a Ucrânia e para se proteger de um ataque contra um dos seus membros.
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Já o tinha dito na campanha e Donald Trump reafirmou esta semana: com ele os EUA não irão defender os aliados que falhem os compromissos de despesas militares. O presidente dos EUA estará ainda, segundo a NBC, a preparar alterações significativas à forma como a América participa na NATO. Ora estes planos de Trump, aliados à suspensão da ajuda americana à Ucrânia, com a qual deixou também de partilhar informações das Secretas, lançaram a Europa num frenesim para garantir a sua própria Defesa, além de ajudar Kiev. E na semana em que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, apresentou um plano de 800 mil milhões de euros para rearmar a Europa, o primeiro-ministro polaco Donald Tusk, cujo país está na presidência rotativa da UE, garantiu num Conselho Europeu especial: “A Europa tem de enfrentar esta corrida ao armamento. E tem de vencer.”

Tendo em conta que só um dos dez maiores produtores de armas mundiais é europeu - a britânica BAE Systems, que nem é de um dos 27 Estados-membros da União Europeia - terá a Europa capacidade financeira e de produção para um grande programa de armamento militar?

Para Nuno Severiano Teixeira, “a Europa tem capacidade financeira. O Programa ReArm apresentado pela Comissão é um passo nesse sentido. A flexibilização das regras do Pacto de Estabilidade vai permitir aos Estados-membros endividarem-se mais para investir na sua Defesa sem entrar em défice excessivo. As compras conjuntas de material militar vão permitir economias de escala e comprar mais barato como aconteceu com as vacinas no covid.”

O antigo ministro da Defesa está convencido de que “a questão não estará na capacidade financeira, mas antes na vontade política e no tempo. Primeiro, é preciso um consenso alargado entre Estados-membros. Segundo, a geração de capacidades militares pode levar uma década ou mais.”

Ainda há dias o Bruegel, um think tank sediado em Bruxelas, traçava um cenário pouco animador da Defesa europeia. Sobretudo comparada com a russa. Numa análise intitulada Defender a Europa sem os EUA: primeiras estimativas do que é necessário, lembrava que, desde o início da guerra na Ucrânia, a Rússia tem reforçado as suas forças, sendo hoje “maiores, mais experientes e mais bem equipadas” do que no momento da invasão, em fevereiro de 2022.

Só em 2024, a Rússia “produziu e renovou cerca de 1550 tanques, 5700 veículos blindados e 450 peças de artilharia. Também usou 1800 munições de longo alcance Lancet 3”, diz o Bruegel, lembrando que em relação a 2022, este é um aumento de 220% na produção de tanques, 150% em veículos blindados e artilharia e 435% em munições de longo alcance - sobretudo equipamento soviético que foi modernizado. Também na produção de drones a Rússia, antes dependente do Irão, evoluiu muito.

“A Europa pode e deve desenvolver um pilar europeu da NATO. Capaz de cooperar com os EUA, se e quando eles quiserem, mas igualmente capaz de agir autonomamente quando ou se não quiserem.”

Nuno Severiano Teixeira

E a Europa? O Bruegel garante que esta até teria capacidade para substituir os EUA no apoio à Ucrânia. Mas um desafio diferente seria um ataque russo contra um país da NATO. Neste momento, os europeus poderiam contar de imediato com 100 mil tropas americanas estacionadas na Europa para contrariar uma invasão, às quais se juntariam pouco depois mais 200 mil. A Europa, com o Reino Unido, de fora da UE desde o Brexit, tem atualmente quase 1,5 milhões de militares no ativo, mas a sua eficácia é prejudicada pela falta de um comando unificado. Além de o orçamento militar dos EUA ser superior à soma do que os outros 31 membros da NATO juntos gastam.

Nuno Severiano Teixeira lembra que há ainda outro obstáculo para a UE que é convencer 27 opiniões públicas da necessidade de ir para a guerra: “Em democracia o apoio das opiniões públicas é fundamental. E, neste caso, esse apoio depende da perceção da ameaça, que é diferente de acordo com a geografia: mais forte e imediata no centro e leste da Europa, mais perto da Rússia, mais fraca e mais distante na Europa Ocidental e do Sul, mais longe.” O professor catedrático e diretor do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) admite contudo que “o medo é uma força poderosa. Foi isso que levou à fundação da NATO no pós-Segunda Guerra. E a ameaça pesa sobre toda a Europa.”

Neste cenário, continua, “a Europa pode e deve desenvolver um pilar europeu da NATO. Capaz de cooperar com os EUA, se e quando eles quiserem, mas igualmente capaz de agir autonomamente quando ou se não quiserem.” “A europeização da NATO não é um cenário impossível”, admite.

Perante um mundo onde “certezas com décadas ruíram”, Ursula von der Leyen, no discurso em que assinalou os 100 dias da nova Comissão Europeia, lembrou ontem que neste momento “é essencial forjar outras parcerias”.

Menos travão da dívida alemã e treino para todos na Polónia

Confrontados com a aproximação de Trump ao presidente russo Vladimir Putin, e na perspetiva de ficarem de fora das futuras negociações de paz para a Ucrânia, os europeus já começaram a tomar medidas para mitigar a crescente retirada americana e a potencial ameaça russa. Na Alemanha, onde, depois da vitória dos democratas-cristãos nas eleições de 23 de fevereiro, Friedrich Merz ainda procura formar governo, a CDU e o provável parceiro de coligação, o SPD, disseram estar de acordo para reduzir as regras sobre o endividamento de modo a permitir maiores gastos com Defesa. Ambos propõem a isenção das despesas de mais de 1% do PIB em Defesa de regras que limitam a capacidade de o governo pedir dinheiro emprestado. O “travão da dívida” alemã, introduzido há mais de uma década, permite novos empréstimos só até 0,35% do PIB, mas pode ser suspenso em caso de emergência que fuja ao controlo do Estado.

Já na Polónia, com fronteira com a Rússia e uma conturbada história comum, o governo de Tusk está a trabalhar num plano para a formação militar em grande escala para todos os adultos do sexo masculino, em resposta à mudança da situação de segurança na Europa. Isto num momento em que o debate sobre o serviço militar obrigatório está de volta ao continente.

Este esforço de defesa europeu não arrisca descredibilizar a NATO? O major-general Carlos Branco começa por recordar que “estamos a falar, para já, de rearmamento. Reunir fundos e decidir o seu emprego. Isso requer tempo. É um processo moroso. Mais tempo requer o fabrico seja do que for. A capacidade industrial instalada não se multiplica do dia para a noite. Parte-se do princípio de que se irão fabricar e produzir equipamentos já existentes. Ou, comprar aos EUA, se os tiverem disponíveis. Conceber um avião ou um carro de combate e pô-los no campo de batalha demora anos.”

O especialista, observador militar da ONU na ex-Jugoslávia e porta-voz do comandante das forças da NATO no Afeganistão, lembra que “atuar autonomamente exige muito mais do que carros de combate, peças de artilharia e drones. É preciso uma rede de comunicações, e de comando e controlo, que a UE não tem. Terá de recorrer à NATO, à sua estrutura de comando e controlo, e aos acordos de Berlin Plus concebidos para situações em que os europeus queiram intervir sem os americanos, numa parceria entre UE e NATO”. E “este mecanismo já funcionou na Operação Althea, na Bósnia Herzegovina, sob liderança da UE”, recorda.

"À proposta de rearmamento de Ursula von der Leyen falta de pensamento estratégico. Uma estratégia inclui objetivos, caminhos e meios, por esta ordem. A UE está a começar pelo fim."

Carlos Branco

Quanto à capacidade de dissuasão em relação à Rússia, Carlos Branco não tem dúvidas: “A Europa tinha essa capacidade há três anos. A desmilitarização dos países europeus no final da Guerra Fria foi replicada pela Rússia. No entanto, o reforço da sua capacidade militar, consequência da guerra [na Ucrânia], e o esvaziamento dos arsenais europeus para apoiar Kiev poderão ter comprometido a capacidade de dissuasão europeia.”

Quanto à proposta de rearmamento de Ursula von der Leyen, o major-general garante que “revela falta de pensamento estratégico. Uma estratégia inclui objetivos, caminhos e meios, por esta ordem. A UE está a começar pelo fim, por onde ir buscar dinheiro sem se saber porquê e para quê.”

Manifestando dúvidas sobre a capacidade de dissuasão europeia e ainda mais sobre a hipótese de a UE “escalar o conflito e confrontar militarmente a Rússia”, Carlos Branco sublinha que no segundo caso, “é clara a impreparação da Europa. Vai precisar de anos.”

Guarda-chuva nuclear

O regresso de Trump à Casa Branca também levou muitos europeus a preocuparem-se com a sua dependência em relação ao “guarda-chuva” nuclear americano. Única potência nuclear dos 27 depois da saída do Reino Unido, a França já está a avaliar a extensão da sua capacidade de dissuasão nuclear a outros países da UE, uma hipótese que a Alemanha colocou.

Para Carlos Branco, esta “não é alternativa ao guarda-chuva nuclear americano. Não se percebe por que é que Merz fala no assunto, quando os EUA declararam a intenção de o manter. Está a provocar uma rotura desnecessária com os EUA, num domínio onde as vulnerabilidades são enormes.”

O major-general alerta ainda que “o programa nuclear inglês depende dos EUA para tudo (manutenção, arquitetura, teste dos submarinos) e os mísseis Trident são alugados aos EUA e atingirão a sua vida útil em 2026. Se os EUA desligarem o programa nuclear, os Trident ficam imediatamente incapazes de serem disparados.” Ontem Merz apelou à França e Reino Unido para partilharem as armas nucleares, mas não como substituto dos EUA.

“A maioria dos Estados europeus e as instituições supranacionais perceberam que têm de depender de si próprios para assegurar a sua Defesa. Os EUA deixaram de ser um parceiro confiável e a Rússia tornou-se uma ameaça incontornável. A única coisa a lamentar é que tenham acordado tão tarde para esta realidade.”

Diana Soller

Também Diana Soller se mostra cética quanto à capacidade de a Europa se defender sem apoio da América. “A UE, sem o apoio americano, é uma instituição muito mais frágil e, em fase de adaptabilidade, fazia sentido ter muito atenção à coesão entre todas as suas peças”, diz a investigadora do IPRI/Nova.

Quanto a um grande programa de armamento militar, a académica destaca que a Europa “tem instrumentos financeiros, o que não é exatamente o mesmo que capacidade financeira. Daí recorrer à mutualização da dívida e a fundos de programas que não se destinavam à Defesa.” Já capacidade produção, também Diana Soller admite que a UE “não tem”, apesar de haver agora vontade de a desenvolver. “A decisão está dependente dos países europeus individualmente. Daí a necessidade da criação de uma coligação de vontade, que tem maior capacidade de avançar mais rapidamente.”

Amanhã, Paris recebe uma reunião de chefes de Estado-Maior europeus para discutir um possível “destacamento de forças europeias” na Ucrânia, que “não iriam combater na linha da frente”, mas “pelo contrário, uma vez assinada a paz, garantir o seu total respeito”, como explicou o presidente francês Emmanuel Macron na semana passada. No dia seguinte, será a vez de o ministro da Defesa francês receber os homólogos de Reino Unido, Alemanha, Itália e Polónia para debater o mesmo assunto.

Estamos então perante uma Europa da Defesa a duas velocidades? Para Diana Soller “isso não tem de ser um problema em si. Há países europeus mais preparados para dar início a esta mudança que é drástica, dispendiosa, vai ser moderada e é (já era) urgente. Mas seria importante um compromisso dos países europeus em cooperar neste sentido.” E resume: “A maioria dos Estados europeus e as instituições supranacionais perceberam que têm de depender de si próprios para assegurar a sua Defesa. Os EUA deixaram de ser um parceiro confiável e a Rússia tornou-se uma ameaça incontornável. A única coisa a lamentar é que tenham acordado tão tarde para esta realidade.”

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