O resultado da primeira volta das eleições na Bolívia marca o fim de uma era. Dois candidatos da direita - o senador Rodrigo Paz Pereira e o ex-presidente Jorge ‘Tuto’ Quiroga - vão disputar a segunda volta a 19 de outubro, pondo fim a quase 20 anos de governos do Movimento ao Socialismo (MAS) do ex-presidente Evo Morales. Impedido pela justiça de se candidatar e em choque com o chefe de Estado Luis Arce, o antigo líder cocalero apelou ao voto nulo - houve 1,2 milhões - e vai continuar a ensombrar a política boliviana.A segunda volta sem um candidato de esquerda explica-se, em parte, pela divisão dentro do MAS. “O partido do governo partiu-se em três”, explicou ao DN o investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Andrés Malamud.O candidato apoiado pelo presidente, Eduardo del Castillo, não foi além dos 3,2% de votos - e o MAS, que tinha 75 deputados (42 da ala de Arce e 33 da ala de Morales), arrisca ficar apenas com um representante na Câmara dos Deputados. E sai do Senado. Já o candidato que tinha a esperança de ficar com os votos do ex-presidente, de quem chegou a ser visto como possível sucessor, Andrónico Rodríguez, teve 8,15%. E, por último, o voto nulo, defendido Morales, que subiu mais de um milhão de votos em relação às eleições de há cinco anos.O primeiro presidente indígena do país chegou ao poder em 2005 e liderou uma revolução na Bolívia, um dos países mais pobres da América Latina. O antigo dirigente sindical dos produtores de folha de coca fê-lo à boleia da riqueza do gás natural, setor que nacionalizou e que lhe permitiu investir em projetos de infraestruturas e nos programas sociais que beneficiaram a população mais pobre.O que falhou na experiência do MAS? “A revolução ficou sem combustível. Literalmente. Acabou o gás”, explicou Malamud. “A ‘onda rosa’ latino-americana foi produto do boom das commodities mais do que do espírito revolucionário dos seus líderes”, acrescentou o analista, referindo-se aos vários governos de esquerda que chegaram nessa altura ao poder na América Latina.Na Bolívia, a principal commodity era o gás natural, exportado principalmente para o Brasil e a Argentina. As exportações de gás natural caíram de 6,6 mil milhões de dólares, em 2014, para apenas dois mil milhões em 2023, devido a outras apostas dos países compradores e à falta de investimento no setor. E o país não conseguiu encontrar uma alternativa económica. Hoje, a população enfrenta a inflação e o país a falta de reservas de dólares, além de um elevado défice.Reeleito em 2009 e 2014, após alterar a Constituição, Morales quis perpetuar-se no poder em 2019, após um novo referendo. Mas, no meio de denúncias de fraude, acabaria por fugir da Bolívia quando as Forças Armadas deixaram de o apoiar - os seus apoiantes denunciaram sempre um golpe de Estado e a sucessora, a senadora Jeanine Áñez, acabaria condenada por assumir a Presidência de maneira irregular. Morales regressou do exílio quase um ano depois, mas vive numa região montanhosa, rodeado de aliados que o protegem de uma ordem de detenção. É acusado de tráfico de seres humanos e de engravidar uma adolescente de 15 anos quando era presidente - ele fala num “julgamento político”.Em rutura com Arce, seu antigo ministro das Finanças que ajudou a eleger em 2020, mas que decidiu não concorrer a um segundo mandato, Morales lançou-se na corrida, mas foi impedido pela Justiça eleitoral. “Morales está proibido de voltar à Presidência pela sua própria Constituição”, lembrou Malamud, explicando que o ex-presidente “é muito impopular fora do seu território”..Dois candidatos de direita vão disputar segunda volta das presidenciais na Bolívia.Duelo finalRodrigo Paz Pereira. O senador de 57 anos foi a grande surpresa da primeira volta das presidenciais, que ganhou com 32% dos votos (as sondagens davam-lhe apenas 8%). Filho do ex-presidente Jaime Paz Zamora (1989-1993) e da espanhola Carmen Pereira, nasceu durante o exílio dos pais em Espanha. Economista formado nos EUA, já foi deputado e presidente da Câmara de Tarija entre 2015 e 2020. Era atualmente senador pela aliança de centro-direita Comunidade Cidadã, do ex-presidente Carlos Mesa (2003-2005). Concorreu agora com o apoio do Partido Democrata-Cristão, sendo o seu candidato a vice o antigo polícia Edman Lara, que se tornou famoso nas redes sociais pelas denúncias de corrupção nessa instituição. É casado e tem quatro filhos.Jorge ‘Tuto’ Quiroga.O ex-presidente conservador (2001- 2002) foi segundo, com 27% dos votos, e disputará a segunda volta a 19 de outubro. Engenheiro industrial e administrador de empresas, nasceu em Cochabamba há 65 anos. Foi ministro das Finanças e era vice-presidente de Hugo Banzer quando o ex-ditador da década de 1970 (eleito democraticamente em 1997) renunciou por motivos de saúde. Crítico desde a década de 1990 de Evo Morales (então deputado e líder do sindicato de produtores de folha de coca) procurou (sem sucesso) ser de novo eleito presidente em 2005, 2014 e 2020. Ex-membro do Partido Democrata-Cristão (que agora apoia o adversário), concorre agora pela aliança Liberdade e Democracia. É casado em segundas núpcias e tem quatro filhos.