”Se Xi resolver a questão de Taiwan ganha a imortalidade”
Foto: Gerardo Santos

”Se Xi resolver a questão de Taiwan ganha a imortalidade”

O autor de Taiwan - Paz e Guerra na Ásia explica importância da reunificação com a ilha que Pequim vê como província rebelde para o legado do presidente chinês.
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Especialista em Estudos Asiáticos, Luís Cunha explica que destino de Taiwan depende de desfecho na Ucrânia. Sem esquecer o papel dos EUA e a incógnita Trump.

“O relógio da história pode ter entrado em contagem decrescente”, escreve no seu livro.  O presidente chinês Xi Jinping  deu início a essa contagem?
Nesse aspecto, sim. Agora, no que diz respeito a Taiwan, o relógio desta história começou há 75 anos, quando Chiang Kai-shek se refugiou na ilha com as suas tropas e com numerosa população civil. Mas sim, penso que com este líder da China a resolução da questão de Taiwan vai ter lugar mais cedo do que mais tarde. Resta saber de que maneira, se por via pacífica ou não pacífica. E essa é a grande questão em jogo.

Xi já disse que não é uma questão para ficar para as próximas gerações. Para o presidente chinês, a reunificação com Taiwan seria o ponto alto do seu legado?
É, sem dúvida. Mao Tsé-Tung morreu sem resolver a questão de Taiwan. Em 1949, Mao tinha tudo preparado para invadir Taiwan e resolver a guerra civil a título definitivo. Não aconteceu por causa da Coreia. Do ponto de vista americano, também, ele tinha a vida facilitada, porque a Administração Truman estava muito desiludida com Chiang Kai-shek, com a corrupção do seu governo e do seu exército. Se Taiwan caísse nessa ocasião, a administração americana não se envolveria. Mas dá-se a eclosão da guerra na Coreia. E tudo muda. Taiwan, pela sua localização geográfica e estratégica, passa a ter grande importância. Desde então que está congelada a questão de Taiwan. Vamos na 5.ª geração de líderes na China e a preocupação das quatro primeiras foi criar as condições para o desenvolvimento económico. Xi Jinping tem um conceito mais securitário, em que a prioridade é a questão de Taiwan. Que está prevista na Constituição da República Popular da China e nos estatutos do Partido Comunista da China. Tentando responder à pergunta, sim, se Xi Jinping conseguisse resolver definitivamente a questão de Taiwan ganharia a imortalidade no panteão dos líderes chineses. Se não conseguir, pode colocar em causa a própria existência do Partido Comunista da China. Estamos a falar de uma triangulação estratégica entre China, EUA e Taiwan, e de uma questão existencial para estes três vértices. Se Taiwan, por algum motivo, deixar de ter o apoio americano, e vamos ver o que acontece no próximo ano, colocaria em causa a sua própria existência enquanto entidade autónoma, com independência de facto, mas não de jure, desde 1949. Os EUA colocariam em jogo a sua credibilidade na Ásia Pacífica e a arquitetura de segurança que construíram nessa região. E, portanto, a China ganharia terreno, os aliados tradicionais dos EUA na região - Japão, Coreia do Sul, Filipinas e muitos outros - já não olhariam para os EUA e para a sua liderança da mesma maneira. Seriam tentados a ceder aos interesses geoestratégicos da China. Quanto aos EUA, também têm vindo a mudar a sua posição, no sentido do reconhecimento da soberania de Taiwan. E isso passou pelas declarações do presidente Joe Biden, mais de uma vez, a dizer que, no caso de uma invasão ou de uma ação militar agressiva por parte da China, as forças militares americanas iriam em socorro da ilha.

Logo corrigido pela Casa Branca…
Imediatamente corrigido pela sua própria Administração, sim. Porque a política de Uma só China é a posição oficial não só dos EUA, mas de mais de 180 países, incluindo Portugal e a União Europeia. Em 1970, 67 países reconheciam a República da China e 54 a República Popular da China. Hoje, são mais de 180 países a reconhecerem a República Popular da China e apenas 11, mais a Santa Sé, a reconhecerem Taiwan. A China está a usar uma dupla via na pressão que exerce sobre Taiwan: a via da persuasão e a via da coerção. Pela via da persuasão, estamos a falar da revolução pacífica, que continua a ser, pelo menos em teoria, a prioridade da liderança chinesa. São iniciativas como a de tornar a região fronteiriça a Taiwan, nomeadamente o Fujian, irresistível para a população taiwanesa mais próxima, com zonas de comércio livre, todo tipo de concessões e de facilidades para os taiwaneses. Do lado chinês, está tudo preparado em termos de infraestruturas para se fazer a ponte, literalmente, para essas ilhas. São as chamadas táticas híbridas, que passam por um conjunto de atrativos, o que se chama soft power. Depois, há o outro lado, que tem sido muito visível nos últimos anos, que é a demonstração da força. Que, aliás, está prevista legalmente desde 2005 na chamada Lei Anti Secessão. Isto é um eufemismo, claro, para o recurso à força. E essa força tem sido exibida desde 2015, mas, sobretudo, desde 2022, depois da visita da [então presidente da Câmara dos Representantes dos EUA] Nancy Pelosi. E aí, pela primeira vez, assistiu-se àquilo que as Forças Armadas Chinesas podem fazer de facto, que é um cerco. A navegação marítima e aérea parou. A China aproveitou a ocasião para mostrar que pode exercer a coerção quando quiser. De lá para cá tivemos muitos outros exercícios. 

Para garantir seu legado, Xi Jinping estaria disposto a arriscar uma guerra com os EUA?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Não sei ler nas folhas de chá, mas, no limite, sim. Há aqui um fator extremamente importante chamado Ucrânia. A liderança taiwanesa usou e ainda usa a frase “Ucrânia hoje, Taiwan amanhã”. O modo como vai ser resolvida a Ucrânia vai ser fundamental para entendermos o que se passará em Taiwan. Estamos a assistir a esta aliança, resta saber se circunstancial, entre a Rússia e a China, que, historicamente, não foram as melhores amigas. Mas neste momento têm um adversário comum. Tudo depende do conflito na Ucrânia.

A que se acrescenta uma incógnita chamada Donald Trump?
Mais uma vez, não temos à disposição folhas de chá, mas temos um histórico que foi o seu primeiro mandato. Na altura, a presidente [de Taiwan] Tsai Ing-wen telefonou a dar-lhe os parabéns quando ele foi eleito. Mas, Tsai era  uma independentista, mal vista por Pequim e por Washington. O facto é que, enquanto ela foi líder, as relações com a China não se deterioraram, pelo menos ao ponto de um conflito aberto. Embora, desde 2006, os canais de comunicação estejam fechados. Ora se Trump conseguisse colocar Pequim e Taipei a falarem, já seria um avanço. Voltando a Trump 1.0, este apoiou Tsai. Até porque do outro lado estava numa guerra comercial com a China. Trump 1.0 foi de algum modo benéfico para Tsai. Houve venda de material militar e o status quo manteve-se sem grandes alterações. Mas, de lá para cá, as coisas mudaram para pior na perspectiva de um conflito. E, embora a Administração Trump 2.0 venha a ter falcões no seu núcleo, quem manda é Trump. E o que ele já disse é que Taiwan teria que pagar uma espécie de taxa de proteção, que passa por maior investimento em material militar,  um pouco como ele faz em relação à NATO e aos 2% do PIB em defesa. Depois há a questão dos semicondutores. Taiwan é líder nesta indústria - 60% dos semicondutores a nível mundial são produzidos em Taiwan, 90% dos chips de alta tecnologia. Um dos grandes avanços da primeira administração Trump foi conseguir um consenso bipartidário em relação à China, fazendo de Pequim o grande adversário dos EUA. Esse consenso continuou na Administração Biden e até foi aprofundado, com mais medidas protecionistas. Quanto aos semicondutores, Biden conseguiu que algumas fábricas fossem transferidas para os EUA, tentando chamar a si a galinha dos ovos de ouro de Taiwan. A ilha não quer abdicar dos chips mais avançados porque sabe que se abdicar dessa tecnologia, perde tudo. O “escudo de silício” passa por aí. Trump também diz que Taiwan deve transferir toda a tecnologia, incluindo os semicondutores mais avançados, para os EUA. Vamos ver o que acontece. Trump tem duas opções - fragilizar ou proteger Taiwan. Olhando para o passado, temos razões para crer que Trump estaria hesitante em envolver meios militares americanos num conflito em Taiwan. Sabemos que ele tem uma visão mercantilista das relações internacionais e que evitou envolver-se em conflitos no primeiro mandato. Se Xi avançar, a política oficial dos EUA, a ambiguidade estratégica, será posta em causa de uma vez por todas. 

Taiwan - Paz e Guerra na Ásia
Luís Cunha
Edições 70
280 páginas

Como é que Taiwan poderia resistir?
As suas forças armadas foram perdendo influência e poder do ponto de vista de tecnologia militar. Durante anos, Taiwan tinha umas forças armadas poderosas, até superiores às da China. Isso deixou de ocorrer ainda antes de Xi, mas sobretudo depois do fortíssimo investimento que a liderança chinesa fez nas suas forças armadas. Tem a maior marinha de guerra, o maior exército e a segunda maior força aérea do mundo. É um poder tremendo, que Taiwan e as suas forças armadas não têm maneira de combater. Do ponto de vista da população, que é fundamental, como vimos na Ucrânia, também há grandes debilidades. Durante anos, a prioridade era a economia, não a defesa e a segurança. A Ucrânia foi um sinal de alarme - os taiwaneses tiveram de acordar da pior maneira. Neste momento há um grande investimento  militar; do ponto de vista da população é que ainda têm um longo caminho a percorrer. O governo de Taiwan teria de começar pelo recrutamento. O serviço militar era de quatro meses até janeiro deste ano, só a partir daí é que passou a ser de um ano. Resta saber se é suficiente. Há um longo caminho a percorrer e tem que ser rápido, porque há várias datas que são apontadas para a invasão, valem o que valem, mas a próxima é já 2027. Há quem diga, inclusive, que as forças armadas chinesas já estão com capacidade para essa ação, que poderá não ser uma invasão, esse que seria o último recurso. Se as forças chinesas cercarem Taiwan, como é que seriam os abastecimentos e, em caso de conflito, como é que seria a reposição de material militar e de munições? É muito complicado, Taiwan não é a Ucrânia. A geografia manda.

Imaginemos uma invasão em que a China absorve Taiwan. Estamos a falar de uma população em que só 10% nasceu na China continental, em que ainda menos admitem uma reunificação. Como é que seria essa absorção?
Seria dramático. Aqui temos que falar da fórmula Um País, Dois Sistemas. Esta foi pensada para Taiwan. Hong Kong e Macau vieram por acréscimo. Acontece que Taiwan está por resolver, Hong Kong e Macau já estão resolvidos. Mas estão bem resolvidos? Sim e não. Há dias 45 ativistas pró democracia em Hong Kong foram condenados a penas pesadas por crime de delito de opinião. Isto porque a China resolveu impor a Hong Kong, desde 2020, uma lei draconiana de segurança nacional. Foi assim que resolveu as manifestações pró democracia, que chegaram a juntar 2 milhões de pessoas, num universo de 7 milhões. Desde 2020, que a fórmula Um País, Dois Sistemas foi definitivamente posta em causa. Em rigor, dos 50 anos previstos, durou 23. Menos de metade do que estava previsto na Lei Básica da Região Exclusiva Especial de Hong Kong. É óbvio que Taiwan sempre olhou para Hong Kong, desde 1997, para o seu desenvolvimento político. E esta evolução veio esclarecer de uma vez por todas, o que poderá acontecer a Taiwan no futuro. Estamos a falar de 24 milhões de pessoas, de um sistema democrático pleno, vibrante. E isso acabaria. Alguns embaixadores chineses chegaram a falar em reeducação da população. Que é o que está a acontecer em Hong Kong. A fórmula Um País, Dois Sistemas foi sempre mais atrativa para Taiwan do que para Hong Kong e Macau. Porque permitiria uma autonomia muito grande, até o envio de alguns dirigentes de Taiwan para o governo central, a preservação das suas Forças Armadas. Mas no último livro branco, de 2022, a referência às Forças Armadas já não está. Isto quer dizer que a possibilidade de uma resolução pacífica para a questão de Taiwan tem vindo a estreitar-se. 

Apesar desta tensão, Taiwan e a China mantém relações comerciais. A economia é um garante do status quo, neste momento?
Nunca é. Antes da Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra e a Alemanha tinham intensíssimas relações comerciais. Além disso, temos assistido a uma evolução negativa. Nos anos 80 e 90, a China tentou atrair o empresariado de Taiwan. A Foxconn, que fabrica os iPhones, é uma empresa de Taiwan, sediada na China. Isso teve implicações, porque os empresários acabaram por influenciar a esfera política a favor da China. Mas, neste momento, o que está a acontecer é o que os americanos chamam decoupling. Os empresários taiwaneses estão a sair da China. 

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