Giambattista Bodoni notabilizou-se nos séculos XVIII e XIX como tipógrafo e impressor. Por décadas, a sua mestria granjeou-lhe reputação junto de políticos, diplomatas e académicos europeus. Nascido em 1740, em Piemonte, Península Itálica, foi na cidade de Parma que Bodoni elevou a sua tipografia a arte, enquanto tipógrafo ducal, na Stamperia Reale. Em 1806, o tipógrafo publicou Oratio Dominica, livro recordatório da viagem do Papa Pio VII a Paris para assistir à coroação de Napoleão Bonaparte. Bodoni, responsável pela impressão da obra, incluiu-lhe um Pai-Nosso traduzido em 155 línguas. O caráter universal da obra do homem que faleceu em Parma em 1813 garantiu-lhe posteridade, com o seu nome associado a uma família tipográfica ainda hoje usada. Bodoni pertence às fontes gráficas com serifa, aquelas que apresentam pequenos traços e prolongamentos no fim das hastes das letras..Em 1977, Bodoni apadrinhou de nome a capital de um minúsculo país insular situado no oceano Índico, o arquipélago de San Serriffe. Um suplemento de sete páginas publicado no jornal britânico The Guardian pormenorizava vida, cultura, economia e política de uma jovem democracia parlamentar, no momento em que celebrava o décimo aniversário sobre a independência do Reino Unido. Um território tropical, a sudoeste da Índia, a norte das Seychelles, formado por duas ilhas, Upper Caisse e Lower Caisse. Bodoni, a capital, partilhava com Arial, Baskerville, Port Claredon, Garamondo o título de maiores urbes, num país de jovem população e com pouco mais de um milhão e setecentos mil habitantes, entre europeus, flongs (os naturais do arquipélago), crioulos, malaios, árabes e chineses. Uma pequena Babel que, de acordo com o jornal britânico, beneficiava de uma economia enérgica, impulsionada pela descoberta de petróleo em 1971, e nas exportações de fosfatos e aço. O robusto suplemento do The Guardian revelou-se um sucesso comercial com a presença de anunciantes de peso, entre outros a cervejeira Guiness, a petrolífera Texaco e a gigante da imagem Kodak. A viagem a San Serriffe promovida pela publicação britânica revelou-se igualmente um sucesso editorial, consubstanciada na verve de jornalistas como Mark Arnold-Forster, autor do livro de 1973 O Mundo em Guerra (e ulterior série para televisão)..San Serriffe desencadeou no público britânico duas reações: a dos que identificaram no território de clima brando e paisagem tropical potencial como destino de férias; a dos que perceberam nas entrelinhas do artigo um mundo de trocadilhos e jogos de palavras relacionados com a arte da impressão e suas fontes gráficas: Bodoni, Arial, Claredon, Upper Caisse, Lower Caisse. No mapa, San Serriffe desenhava a sua geografia como um ponto e vírgula. Ao suplemento do The Guardian não foi indiferente a data em que mereceu publicação, 1 de abril de 1977, dia das mentiras..Os promotores da brincadeira, Philip Davies, encarregado do desenvolvimento de cadernos especiais do jornal, Stuart St. Clair-Legge, escritor, e Geoffrey Taylor, autor do mapa de San Serriffe, não imaginariam o impacto social daquilo que começou por ser um golpe publicitário e editorial do jornal..Na época, o The Guardian contendia com o Financial Times na publicação de reportagens sobre pequenos países, havendo particular interesse em territórios insulares, apetecíveis do ponto de vista turístico. San Serriffe, enquanto embuste de 1 de abril, afigurou-se aos seus autores como um cocktail de atributos capazes de cativar a atenção do público: um paraíso para férias, seguro, com uma economia em crescimento, dotado de boas infraestruturas e com uma jovem presidente, Maria-Jesu Pica, chegada ao poder seis anos antes. Esboçada a ideia, contratada uma equipa de escritores para a desenvolver, havia que encontrar suporte financeiro para o suplemento especial. Este materializou-se através de gigantes da indústria que compactuaram com o projeto. A Texaco oferecia aos leitores do The Guardian a possibilidade de ganharem umas férias na Praia de Copacabana de San Serriffe, como convidados de James Hunt, piloto britânico de Fórmula 1. Por seu turno, a Kodak desafiava os leitores a revelarem as suas melhores fotografias do arquipélago Índico, sob a promessa de integrarem a exposição A beleza intemporal de San Serriffe. Não faltava um anúncio de candidaturas ao cargo de leitor de espectroscopia lunar na Universidade de San Serriffe..Milhares de carateres elogiaram o milagre económico de San Serriffe. Sobre o arquipélago, escreveu Geoffrey Taylor, a abrir o suplemento: "Os dez anos de independência de San Serriffe, celebrados hoje, constituem um período de expansão económica e desenvolvimento social provavelmente inigualado por qualquer outra nação." Geoffrey elogiava a democracia parlamentar e informava investidores e visitantes britânicos sobre oportunidades para o desenvolvimento daquele país. O suplemento incluía artigos como "Três pontos-chave para a prosperidade" ou "A ascensão de um líder ao poder". Peças num tom sóbrio, consubstanciadas por gráficos de crescimento e bem-estar social, assim como informação de caráter geográfico. O leitor inteirava-se de uma singularidade do território. Este movia-se 1,4 km por ano em direção a nordeste, fruto de um processo conjunto de erosão e correntes oceânicas, que subtraiam areia da costa oeste das ilhas para a depositar na costa leste. Um movimento que era contrariado pelo transporte incessante de areias a bordo de embarcações para assorear a costa oeste. Habitado originalmente pelo povo flong, o arquipélago fora colonizado por portugueses e espanhóis, ainda no século XV, e, mais tarde, no século XVII, tomado pela Grã-Bretanha, que ali se manteve até à década de 60..San Serriffe teve um considerável impacto junto do público britânico, com o The Guardian a acolher inúmera correspondência de leitores a denotarem sentido de humor. Muitos descreviam as suas férias nas ilhas paradisíacas. A suposta Frente de Libertação de San Serriffe não deixou de endereçar a sua crítica à inclinação pró-governo do suplemento. Não faltaram leitores que assumiram como verídico o conteúdo do suplemento, almejando umas férias tropicais no areal de Copacabana. O The Guardian voltaria a San Serriffe em anos subsequentes. A 1 de abril de 1999, o jornal britânico anunciava, na peça "Regresso a San Serriffe", que Maria-Jesu Pica fora deposta dez anos antes, soçobrando a um golpe militar. Antonio Bougeois chegara ao poder em eleições livres em 1997..Em 2007, a Wikivoyage, guia de viagens online colaborativo, abria um artigo sobre San Serriffe. Sobre o "como chegar", o leitor foi informado que o meio mais barato era "a partir das costas da Indonésia ou do Japão, à boleia de um tsunami. Se este fenecer antes de chegar ao arquipélago, o viajante tem o direito de processar Deus quando chegar ao céu". Os autores do artigo não perderam o espírito da reportagem original. San Serriffe não é assunto para levar a sério..dnot@dn.pt