Nascida em 1970 com o nome Rawan Abu-Yousef, é diplomata de carreira desde 1996. Foi embaixadora nos Países Baixos entre 2017 e 2024, onde desempenhou também os cargos de representante da Palestina em organizações como o Tribunal Penal Internacional, o Tribunal Internacional de Justiça ou a Organização para a Proibição de Armas Químicas. Na sala do seu gabinete, além de uma moldura com uma fotografia com o presidente Mahmoud Abbas, tem outra do encontro com o papa Francisco no dia em que a Santa Sé reconheceu a Palestina. Os seus olhos brilham quando se recorda do encontro com o Jorge Bergoglio, a quem não poupa elogios. Dois anos após os ataques de grupos armados do Hamas contra Israel, e apesar de tudo o que aconteceu nesse dia e até agora, está mais ou menos otimista quanto ao futuro da Palestina e à paz na região?Eu não sei se devo dizer que estou otimista ou não, ou que a iniciativa de Trump é a salvação para Gaza. Só quero ver o meu povo em Gaza livre novamente, a poder comer, a poder ser tratado, a poder lamentar as suas mortes, a poder chorar, a poder ter tempo para si. E sem bombardeamentos, sem devastação, sem destruição. A poderem movimentar-se com liberdade, sem medo de serem mortos. A situação em Gaza tem sido tão cruel, tão desumana, tão dolorosa, e nunca deve ser colocada no contexto da autodefesa. Isto é realmente desumano. Sobre a iniciativa do presidente Trump, acolhemos oficialmente qualquer iniciativa que ponha fim ao genocídio. E é importante chamar-lhe genocídio, porque é assim que deve ser chamado. Partilhamos a nossa posição sobre o que está a acontecer, sobre o que aconteceu no dia 7 de outubro, e isso é claro na carta do meu presidente ao presidente Macron [enviada em junho, condena o ataque, pede a libertação dos reféns e o desarmamento do Hamas]. Mas é importante esclarecer o que aconteceu e o que foi dito no dia 9 de outubro. Quando fomos declarados animais humanos, quando o presidente de Israel disse que não há civis inocentes em Gaza, quando o ministro do Património disse que Gaza deveria ser alvo de bombas nucleares. Não se trata de um partido político aqui ou ali, são membros do governo israelita. Estes ainda eram vistos pela comunidade internacional como se Israel tivesse direito à autodefesa, enquanto Israel estava a destruir completamente Gaza. Ninguém foi poupado em Gaza. Não são só membros do Hamas. Temos mais de 250 jornalistas assassinados. Temos trabalhadores humanitários. Os médicos não foram autorizados a fazer o seu trabalho. Há dois anos que não há escolas, universidades, nem vida em Gaza. Mais de 80% de Gaza foi devastada e destruída.Como avalia o plano de Trump?Como disse, acolhemos qualquer iniciativa, incluindo os esforços do presidente Trump, mas tudo depende dos detalhes. Os bombardeamentos ainda estão a acontecer. Até o secretário de Estado dos EUA questionou como é que vão libertar os reféns enquanto há bombardeamentos. Espero que haja insistência do lado americano para continuar a pressionar Israel, porque não confio no atual governo [israelita] e nas suas intenções. Houve mais do que uma iniciativa [para o cessar-fogo], mas Israel nunca cumpriu com a sua obrigação. Houve sempre um pretexto, uma alegação, para que não o fizessem. Os relatórios internacionais devem ser realmente tidos em consideração. O relatório do IPC que afirma que há fome em Gaza deveria ser um sinal do que realmente se passa. E eu ouvi aqui em Portugal que não há fome, as pessoas em Gaza são gordas. Israel e os EUA dizem que a solução de dois Estados recompensa o Hamas. O reconhecimento recompensará a paz e recompensará aqueles que procuram a paz. E é um potenciador para quem neste mundo ainda acredita que uma solução política é possível. E, claro, trata-se de isolar o terrorismo, mas também de isolar a ocupação, a injustiça, o genocídio, o apartheid, a deslocação forçada e as políticas ilegais. Mas isso também faz parte de uma obrigação dos países, segundo o direito internacional. Faz um ano e dois meses que o parecer consultivo do Tribunal Internacional de Justiça afirmou claramente que a ocupação é ilegal e deve terminar o mais rapidamente possível. E volto ao reconhecimento. O reconhecimento é um primeiro passo positivo na direção certa, mas não é um ponto final. Precisamos agir. Para a Europa, precisamos que os líderes em Bruxelas cheguem a um acordo sobre as medidas a serem tomadas para suspender o acordo de associação com Israel. Porque a situação na Cisjordânia não é menos grave ou perigosa. Mais de 42.000 famílias foram deslocadas à força do norte da Cisjordânia. As restrições de movimento são horríveis. Temos colonos criminosos e agressivos a residir ilegalmente na Palestina, a torturar, a queimar as nossas árvores, a matar os nossos jovens e agricultores. O presidente Macron disse que reconheceria a Palestina e no dia seguinte o ministro da Defesa Katz fez o anúncio de 22 colonatos a construir em terras palestinianas e disse: “Vamos ver como Macron criará um Estado palestiniano.” Eles deram o sinal verde, e isso é muito importante para um projeto que garantirá que nunca haverá um Estado palestiniano, contíguo e soberano. É preciso um momento de verdade, um momento de coragem da comunidade internacional para impedir isso e também para responsabilizar os perpetradores.Está em Portugal há cerca de um ano e disse que um dos seus objetivos era reforçar os laços bilaterais. O que conseguiu até agora?Penso que um bom líder, um bom político, ou como quer que se chame, não diz "eu consegui". Diz que alcançámos algo. Creio que a Palestina conseguiu muito. Não começou há um ano. Isto faz parte de uma longa relação especial entre a Palestina e Portugal. Um dos jornalistas perguntou-me se eu estava surpreendida [sobre o reconhecimento de Portugal]. Sorri e disse: “Bem, se é uma surpresa, então é uma surpresa agradável.” Mas, claro, não foi uma surpresa, porque se fosse então teria ficado no meu escritório o ano inteiro, a fazer nada, sem encontrar ninguém, sem falar com ninguém. Bati à porta do sistema político português, de amigos, e não digo não amigos, porque não acredito que não tenhamos não amigos em Portugal. Precisamos apenas do nosso trabalho enquanto diplomatas, precisamos de abrir portas, abrir canais de comunicação com todos, mesmo com aqueles que discordam de nós. Esta foi a nossa política: bater de porta em porta, falar com toda a gente, contestar os argumentos, porque precisamos de ter argumentos para convencer os diferentes políticos sobre o direito do povo palestiniano a existir, a viver, a acabar com a ocupação e as suas políticas ilegais, e a viver como qualquer outro país do mundo. Portanto, penso que ainda há muito a fazer, e acredito que as portas estão abertas, claro, com o governo, mas também com os partidos políticos, com o incrível grupo de solidariedade em Portugal que apoia a Palestina e a sua justa causa.Com o reconhecimento português, a missão diplomática mudará de estatuto, como aconteceu em Londres, e tornar-se-á oficialmente embaixadora?Haverá acordos protocolares, e isso será discutido com o ministro dos Negócios Estrangeiros. Sou diplomata, conheço as regras e respeito o país de acolhimento. Estou aqui como convidada, e isso precisa de ser discutido mais detalhadamente. Mas, como sabem, a decisão política já foi tomada, e ouvimos isso do ministro dos Negócios Estrangeiros em Nova Iorque, e também durante o discurso do Presidente da República, e também da moção do Parlamento a saudar a decisão do governo de reconhecer a Palestina. Portanto, toda a questão política foi resolvida, encerrada. Os acordos políticos serão discutidos com a autoridade competente, ou seja, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, e nós respeitamos isso. Mas, em relação à minha posição aqui, antes de mais, sinto-me não só calorosamente acolhida pelo governo português, mas também pelo povo. Fui recebida por sua Excelência o Presidente numa cerimónia oficial, como qualquer outro embaixador. Sou convidada para cerimónias e ocasiões oficiais realizadas pelo Presidente e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, para o Parlamento. Claro que é completamente diferente agora, porque há reconhecimento oficial, reconhecimento político do Estado da Palestina, e esse é um passo muito importante que foi dado. Estou muito feliz por isto ter sido feito e decidido durante o meu mandato. Isto é muito emocionante para mim, e também me deixa orgulhosa. Não apenas daquilo que temos feito como missão, mas também do meu povo, que há muito, muito tempo espera ser reconhecido pela comunidade internacional. E estou muito feliz por isso ter acontecido também em Portugal. Israel acusa a organização da flotilha Global Sumud de estar ligada ao Hamas. Em Portugal, o ministro da Defesa disse que seus participantes apoiavam o Hamas. Quer comentar? Permitam-me aproveitar a oportunidade para cumprimentar os participantes e dizer-lhes o quanto nos inspirámos com a sua coragem e que estamos gratos pelo seu apoio, mas também pelos seus princípios. Ninguém arrisca a vida por publicidade, Facebook ou redes sociais. É lamentável que isso seja dito por políticos. Mas para Israel insere-se no contexto do isolamento total de Gaza, porque para Gaza não foi há dois anos. Gaza está sob bloqueio ilegal há mais de 17 anos. Eles querem decidir o destino do povo palestiniano e isso nunca acontecerá. A ocupação existe e esta é uma realidade cruel, mas é por isso que os palestinianos não devem ser deixados sozinhos. Há obrigações da comunidade internacional, mas também a mensagem de solidariedade global, incluindo aqui em Portugal, é algo nobre, de que os palestinianos não estão sozinhos e nunca estarão sozinhos..Trauma e esperança. Dois anos após o ataque do Hamas a Israel, volta a falar-se de paz