"Quando se entra na ameaça nuclear estamos no limiar da irracionalidade"

O ex-ministro da Defesa e diretor do IPRI da Universidade Nova, Nuno Severiano Teixeira, fala ao DN sobre o apoio militar a Kiev e as ameaças de Putin. É um dos oradores na conferência "A União Europeia e a Invasão da Ucrânia", que decorre hoje no auditório da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Num encontro na base norte-americano de Ramstein, na Alemanha, um grupo de 40 países aliados concordou em analisar todos os meses as necessidades ucranianas de Defesa. É um sinal de que esta guerra está para durar?
Na minha opinião a guerra não será curta, nem terá uma solução a curto prazo. Falhou a estratégia inicial de Putin de guerra-relâmpago, de tomar Kiev, depor o governo, instalar um governo fantoche e depois negociar com ele. Falhou. O que aconteceu foi que encontrou uma resistência, primeiro do exército ucraniano, depois da defesa civil, e finalmente das populações. Isto fez com que já tenhamos entrado no terceiro mês de guerra. O que está em cima da mesa é uma enorme desproporção de meios militares do lado da Rússia e do lado da Ucrânia. Esse apoio dos países que se reuniram em Ramstein significa que a Ucrânia vai ter à sua disposição um conjunto de meios militares que lhe vai permitir continuar a resistir, se não a derrotar a Rússia.

Desde o início da guerra que vários países ocidentais já anunciaram o reforço do orçamento de Defesa. Até onde vão aumentar estes investimentos e será suficiente para enfrentar esta guerra?
Depende de quem estamos a falar. Em tempo de guerra, os orçamentos de Defesa são aqueles que crescem exponencialmente, sobretudo para os países beligerantes. Aqueles que estão em guerra têm que sustentar o esforço de guerra e a guerra é cara. Agora, o que acontece é que mesmo aqueles que não são beligerantes, veem a possibilidade de virem a entrar em guerra. E vão também procurar aumentar a sua capacidade de defesa, prevenindo uma situação em que a ameaça se concretize. É isso que faz com que vários países, nomeadamente na Europa, que não estão em guerra, estejam a aumentar drasticamente os seus orçamentos, em particular a Alemanha.

Berlim não só aumentou o seu orçamento de Defesa como anunciou que vai enviar tanques para a Ucrânia, numa mudança total de política. Como analisa essa decisão alemã?
A Alemanha é, no quadro europeu, o país que fez a mudança mais radical. Uma mudança na política de Defesa, mas também na política externa e isso é muito importante, porque a Alemanha é, no quadro da União Europeia, com a França, um dos países que mais pesa. Em primeiro lugar, a Alemanha mudou o dogma que tinha desde o tempo do chanceler Willy Brandt, da indivisibilidade da segurança europeia. A Alemanha sempre achou que não era possível assegurar a segurança europeia sem a Rússia estar dentro. Alterou completamente e agora está a procurar um quadro de segurança em que a Rússia está de fora. É uma mudança do pensamento estratégico central. Depois, a Alemanha foi sempre um país que, por via da sua própria história e do que tinha acontecido na II Guerra, que nunca teve um grande investimento a nível militar. Era uma grande potência económica, mas não militar. Agora, vai investir e basta gastar os 2% do seu PIB para ser o terceiro orçamento em Defesa mundial. É muito significativo. Finalmente há uma mudança em relação à política energética, que é o que está a demorar mais tempo. A Alemanha viveu sempre uma dualidade, que era depender dos EUA e da NATO no que diz respeito à segurança e depender da Rússia no que diz respeito à energia. Isso também acabou.

A Rússia avisou o Ocidente que o envio de armas à Ucrânia é um ato que ameaça a segurança do continente e causa instabilidade, tendo o presidente Vladimir Putin dito que poderá responder com "ataques relâmpago". Qual poderá ser a linha vermelha do Kremlin e poderá recorrer ao nuclear?
Não sabemos quais são as linhas vermelhas do Kremlin, o que sabemos é que já usou tudo aquilo que representa uma violação do ponto de vista das leis internacionais relativas à guerra e ao direito humanitário. Vamos ver o que dizem os procuradores que estão no terreno a fazer a investigação. Mas naturalmente que a Rússia pode considerar esse apoio militar à Ucrânia como hostil e reagir. Não sabemos o que são os ataques relâmpagos nem a quem são dirigidos esses ataques, mas já não é a primeira vez que faz ameaças do uso de armamento nuclear, mas acho que está no limite da irracionalidade. Até agora, Putin revelou-se um ator racional, dentro dos seus objetivos, mas quando se entra na ameaça de uso de arma nuclear estamos no limiar da irracionalidade. Porque isso significaria um conflito direto entre as duas potências nucleares e se houvesse um conflito nuclear, ninguém ficaria vivo.

Mas há pouco mais de dois meses ninguém acreditava que Putin pudesse invadir a Ucrânia da forma como o fez. Se calhar não sabemos até onde pode ir...
Só quem não queria ver é que não via. Porque tudo começou na Chechénia, nos ataques a Grozny, continuou em 2008 nos ataques à Geórgia, continuou em 2014 com a anexação da Crimeia... Não é nada de novo. Só não viu quem não queria e o Ocidente não quis ver.

E mais de dois meses depois do início da guerra, vê algum caminho para a paz?
As guerras podem acabar de diferentes modos. Ou com uma vitória total e completa de uma das partes e a capitulação da outra, ou com uma situação mais ou menos equiparada em termos de resultados militares que obriga a uma negociação de paz, ou num conflito congelado. Um conflito que se prolonga eternamente, de baixa intensidade. Não sabemos ainda qual será o resultado desta guerra e como termina. Estou convencido que, neste momento, nenhuma das partes quer fazer negociações de paz. Nenhum dos dois beligerantes está em condições de impor ou aceitar as condições da paz. Daí que ninguém esteja interessado em negociações políticas para o final da guerra, enquanto não houver uma posição mais definida do ponto de vista militar.

Como analisa a visita do secretário-geral da ONU, António Guterres, a Moscovo e a Kiev?
É uma viagem corajosa, mas é preciso perceber os limites das competências do secretário-geral. É o funcionário mais importante das Nações Unidas, mas é um alto funcionário que ao abrigo da carta das Nações Unidas, do artigo 99º, pode chamar a atenção dos Estados para os riscos que existem para a paz e segurança mundial. Mas quem faz a paz e a guerra são os Estados e, em particular, os que têm um assento no conselho de segurança e direito de veto. E a presença da Rússia paralisa a ONU. O secretário-geral, já o frisou, não está a fazer um processo de mediação política. Ele está a procurar um cessar-fogo humanitário, que é absolutamente urgente para poder fazer sair os civis que estão presos, não tendo a Rússia ainda dado abertura aos corredores humanitários. Se conseguir essa trégua e retirar os civis de lá é já uma enorme conquista.

susana.f.salvador@dn.pt

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